Recentemente encomendei um antigo livro francês de um especialista em Proust. Um ancião. Não o autor, mas o livro. Veio de 1939. 81 anos! Galhardamente vivera oito décadas, atravessando a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria e todas as demais vicissitudes históricas que bem conhecemos. Sem falar que também um dia voara sobre o Atlântico, talvez até sobre o Pacífico, para chegar ao Brasil. Afinal de contas, não é só a informação da internet que se desloca pelo vasto mundo, haja vista o que nos conta “A longa viagem da biblioteca dos reis”, de Lilia Moritz Schwarcz, viagem que nos trouxe de Portugal o que hoje é a nossa Biblioteca Nacional.

Agora vou ao ponto, senão ao contraponto, do parágrafo anterior. Encomendar um livro antigo, quando se lida com livros, é até normal e prosaico. Ocorre que o meu “ancião” era virgem. Isso mesmo: virgem de leitores. Apesar de rodado desde Paris, era tristemente virgem. Sobre ele já descera a pátina do tempo, mas não uma espátula que abrisse as suas páginas invioladas.

Velhos ou novos, os livros viajam. Podem ser virgens ou não. Têm uma longa vida. O livro é um fetiche da nossa civilização. A morte de um livro sempre tem algo de criminoso. Como se sabe, Proust e Freud foram queimados pelo nazismo. Dois degenerados! O descarte de um livro é sempre dramático. Como disse Umberto Eco, num recado aos silenciosos inimigos do livro, “Não contem com o fim do livro!”. Alguns livros mais zangados talvez prefiram falar como Zagalo: “Vão ter que nos engolir”.

Recentemente, com a pandemia e à sombra das lives em flor, descobrimos que o Brasil é um país de leitores. Enquanto editoras quebram e livrarias fecham, os livros, a acreditar no cenário das lives, enchem escritórios e enriquecem os lares, revelando um país culto e civilizado. Entrevistados, conferencistas, jornalistas e até políticos parece que fizeram um pacto cultural, tipo “Olha, só participo da live ou da entrevista se for na frente dos meus livros”. Um encanto civilizatório! Mas houve uma exceção notável, a do ministro Paulo Guedes, cujas estantes pareciam completamente virgens, logo ele que, na fatídica reunião boteco-governamental de 22 de abril, disse que lia e conhecia no original alguns dos mais doutos autores de sua área. Agora, Guedes quer taxar os livros, pois, ao que parece pelas ditas lives, os brasileiros já têm em casa livros de sobra.

Enfim, um dos grandes méritos das lives, nestes tempos de vida pandêmica, foi nos mostrar que os brasileiros amam os livros e os possuem à farta! Se não me falha a memória, até Bolsonaro eu vi na frente de uma estante abarrotada. Naturalmente, sabemos que todos aqueles livros ele não troca por seu exemplar de “A verdade sufocada”, do Coronel Brilhante Ustra, obra, como se sabe, indispensável à sua cultura militar. Já nós outros, democratas e antifascistas, gostaríamos que o presidente lesse e entendesse apenas um livro: a Constituição. Mas a Constituição não tem sangue nem dor, nem drama, nem nada que sufoque ou atire. É livro pacífico, não obstante se querer, aqui e ali, lhe arrancarem algum tiro de canhão, este “último argumento dos reis”, como disse o velho cardeal Richelieu. Talvez o exemplar da Constituição de Bolsonaro seja como o meu encomendado “ancião” francês: virgem de leitura, tristemente virgem.