Diante da divulgação do acordo de cessar-fogo entre Israel e a organização islâmica Hamas, governante da Faixa de Gaza, o teletexto da televisão suíça RTS publicou: “O Corpo de Guardas da Revolução Islâmica do Irã saudou uma vitória para os palestinos e uma derrota ainda maior para Israel.” No entanto, as demonstrações de alegria e júbilo pela população de Gaza ao anúncio do cessar-fogo talvez mostrem que foram vítimas de um projeto insensato do Hamas, que não previu a violência da resposta israelense.
Não cabe aqui uma discussão filosófica ou política sobre os conceitos de vitória ou derrota, mas apenas uma constatação prática: depois de 470 dias de guerra, a Faixa de Gaza foi destruída, morreram 46 mil pessoas, segundo os cálculos do próprio movimento Hamas; mais de 135 mil, segundo cálculos da ONU, levando em conta as mortes ligadas à situação de guerra na região. E, de acordo com rumores sobre as exigências do novo secretário de Estado norte-americano Marco Rubio, deve-se privilegiar a Autoridade Palestina da OLP no controle da região de Gaza, e não mais o Hamas, após o cessar-fogo ou, um pouco mais além, após o fim dessa guerra.
No fim do ano, o secretário-geral da ONU deplorou a situação existente na região de Gaza, transformada num cemitério para as crianças, e clamou pela necessidade urgente de um cessar-fogo humanitário.
Há uma semana, o comissário-geral da ONU, Philippe Lazzarini, responsável pela administração da UNRWA, agência onusiana encarregada da proteção dos refugiados palestinos, publicou um alerta no The Guardian, reproduzido por outros jornais, alertando quanto às consequências do fechamento da sede da entidade, considerada fora da lei e acusada de cumplicidade com o Hamas. Isso significaria o abandono do apoio à população palestina em Gaza e o fechamento das escolas.
Um relatório divulgado hoje afirma que serão necessários 15 anos para reconstruir Gaza, a um custo de 50 bilhões de dólares.
O acordo de cessar-fogo prevê uma trégua de sete semanas e a libertação pelo Hamas de 33 reféns, seguida de uma libertação gradativa dos 61 outros, retidos nos subterrâneos ou com famílias palestinas. Em contrapartida, Israel libertará cerca de mil palestinos presos.
A sequência desse acordo parece extremamente frágil, assim como as últimas tratativas antes do domingo, quando estão previstas as primeiras libertações de reféns israelenses.
Uma boa interpretação sociológica e política deste momento atual é dada pelo livro Le Bouleversement du Monde – l’Après 7 Octobre, do professor Gilles Kepel, ex-Sciences Po, de Paris. De origem tcheca, tendo aprendido o árabe e vivido anos no Oriente Médio, Kepel publicou 18 livros, dedicados inicialmente ao islamismo e às paixões religiosas responsáveis pelo ataque de 11 de setembro, em Nova York, e pelo massacre dos jornalistas do jornal satírico Charlie Hebdo. Kepel foi um dos primeiros a denunciar a islamização da esquerda e, no seu último livro, trata da emergência do Sul Global.
Para ele, o pogrom ou razzia cometido pelo Hamas levou à hecatombe dos palestinos em Gaza e, nesses meses de guerra, revirou a ordem mundial consequente da Segunda Guerra Mundial. Kepel discute como a extrema esquerda do “woke” e do Sul Global se confundem numa polarização identitária com o populismo de extrema direita, enquanto o termo “genocídio”, usado para designar o crime do qual foram vítimas os judeus, passou a ser usado contra Israel.
Talvez essa seja a única “vitória” do Hamas na guerra que desencadeou, sem imaginar que provocaria o sacrifício do seu próprio povo palestino: a de ter relançado nos nossos dias o ódio religioso antissemita dos séculos passados contra os judeus.
É difícil mesmo decidir vitória e derrota. Israel já começou a guerra derrotado: mesmo que tenha conseguido impedir novos ataques por algum tempo, as vidas não voltam, os estupros e chacinas não se apagam da memória coletiva, “pogroms nunca mais” deixou de ser verdade. E logo dentro do território criado para garantir a segurança dos judeus. Após 15 meses, Israel não foi capaz de trazer seus reféns de volta. Os que voltarão como cadáveres nos próximos meses são o símbolo da derrota.
Como Rui Martins bem finaliza o artigo, Israel (o Estado e o povo judeu) também foi derrotado porque atiçou o fogo do antissemitismo no mundo, essa brasa que queimava morna sob cinzas da memória do holocausto nazista. Quem tinha 10 anos em 1945, agora teria 90, a maioria já se foi ou se calou, as cinzas da memória foram sopradas pelo ventania do pogrom jihadista.
O desastre em Gaza é outra vitória do Hamas. Manejaram a armadilha inescapável. Meses após o massacre continuaram na TV prometendo repeti-lo (fizeram isso ontem de novo!!!) para ter certeza que Israel não voltaria ao 6 de outubro. Pedindo desculpa pela propaganda, só lembro da frase de Golda Meir: “Nós podemos perdoar os árabes por matarem nossos filhos. Nós não podemos perdoá-los por forçar-nos a matar seus filhos. Nós somente teremos paz com os árabes quando eles amarem seus filhos mais do que nos odeiam.” Não importa o que o Ocidente pensa disto, mas é a visão de parte da população israelense, inclusive árabes e drusos.
Há quem defenda que houve vitória porque reduziu-se os riscos de mais ataques no futuro. De fato, desde 1967, a superioridade militar israelense nunca esteve tão clara. De alguma maneira, quando o Oriente Médio aceitar que Israel não vai sair dali, a paz chegará. Calculava-se que morreriam dezenas de milhares de israelenses para reduzir a ameaça monstruosa de 200 mil foguetes do Hezbollah. Com astúcia e destreza, a ameaça iraniana foi derrotada com muito menos sacrifício. A palavra corrente nas ruas árabes é de aceitação definitiva da existência de Israel, a despeito do ódio contra os judeus e de não sabermos a opinião das ruas persas e turcas. Isto pode ser uma vitória não para Israel, mas também para os palestinos. Um segundo estado palestino entre o primeiro (Jordânia) e Israel é muito mais viável se a população de Israel sentir-se menos vulnerável. Isto incluiria Gaza também que certamente o Egito nunca vai aceitar de volta.
Para quem não quer fazer delicados e duvidosos cálculos (ou chutes) de geopolítica que avaliam apenas a força bruta e o poder, só há derrotados nessa história. Derrotada a ideia de progresso. Derrotada a humanidade que, depois de dois mil ou quem sabe três mil séculos de existência conseguiu produzir uma absurda matança geral digna das guerras religiosas da primeira metade do século XVII.
A volta do antissemitismo, e a volta mais geral do nacionalismo xenofóbico, é uma derrota da humanidade. É absurda a ideia de que possa ser uma vitória do Hamas. A dor dos palestinos de terem sido expulso e terem perdido suas terras existia décadas antes da existência do Hamas ou Hizbollah. Hamas lidou com a questão de modo suicida. E o mundo não conseguiu lidar com a questão.
Aliás, diante dessas notícias de aumento do antissemitismo, é preciso voltar à pergunta que se fez uma vez George Orwell: o que é antissemitismo? (Orwell estava examinando antissemitismo na Inglaterra.) Pois ultimamente andou recebendo rótulo de antissemitismo qualquer crítica à política externa do estado de Israel. Até a ONU e António Guterres foram chamados de antissemitas. Ou a Reitora que não quis chamar a polícia para dentro do campus universitário para prender estudantes que se manifestavam pró Palestina. Numa insinuação do Primeiro Ministro Netanyahu, até o Presidente Biden: “vocês (americanos) não reclamaram quando a RAF bombardeou cidades alemãs”. Até o Tribunal Penal Internacional. Foram chamados de antissemitas até aqueles que apenas se manifestaram contra decisões de deixar morrer por falta de alimentos civis palestinos, mulheres, crianças, e bebês palestinos. Quais são as ações que seriam a demonstração de um ressurgimento do antissemitismo? Dizer que as IDF estão matando civis é antissemitismo?