Para compreender o fenômeno das massas, li a obra de Freud, Psicologia das Massas e Análise do Eu, publicada em 1921. Uma obra fundamental, pois Freud, partindo da monumental obra de Gustave Le Bon, A Multidão: Um Estudo da Mente Popular (1895), utiliza conceitos da psicanálise, como inconsciente, identificação, libido e outros, para teorizar sobre as forças pulsionais que movem o sujeito quando capturado por significantes que o fazem imergir na multidão.
Assim, ao ler Massa e Poder de Elias Canetti (1960), era esperado que ele fosse além de suas vastas pesquisas antropológicas e tivesse, pelo menos como rigor metodológico, lido ou citado as obras de Freud, ainda hoje originais e desafiadoras, como O Mal-Estar na Civilização e outras. Obras que definem o pensamento social de Freud, indo além da prática clínica. Para minha surpresa, Canetti passa ao largo da psicanálise e, inclusive, no último capítulo, faz uma análise superficial do caso Schreber, talvez para dar um toque da área da psicologia ao seu trabalho.
A obra
Publicado em 1960, Massa e Poder (Masse und Macht) é a obra do escritor e pensador Elias Canetti, resultado de décadas de pesquisa sobre a psicologia das massas e sua relação com o poder. Canetti, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1981, desenvolve uma análise interdisciplinar que transita entre a antropologia, a sociologia, a história e a filosofia, investigando como os fenômenos coletivos moldam a vida social e política.
O livro parte da premissa de que o ser humano tem um medo primário do contato físico involuntário com estranhos, medo esse que é superado na experiência da massa, onde o indivíduo perde a sensação de separação e se dissolve em um todo indistinto. Canetti diferencia diversos tipos de massas — abertas e fechadas, rítmicas e estáticas, entre outras — e argumenta que elas operam segundo leis próprias, crescendo e se dissolvendo conforme dinâmicas específicas.
Outro ponto central da obra é a análise do poder, que Canetti vincula à necessidade humana de sobrevivência e dominação. Ele investiga como os líderes emergem das massas e como a estrutura de comando se desenvolve a partir do medo da morte. O autor traça paralelos entre as sociedades antigas e modernas, explorando fenômenos como o despótico desejo de acumular e controlar corpos, visível tanto em monarquias absolutistas quanto em ditaduras contemporâneas.
A escrita de Canetti é densa e, em muitos momentos, fragmentada, tornando a leitura, por vezes, enfadonha e repetitiva. Ele usa uma abordagem ensaística e metafórica, repleta de exemplos históricos e mitológicos, o que a torna desafiadora e intrigante ao mesmo tempo. Embora o livro não siga uma estrutura acadêmica tradicional, sua originalidade e profundidade fazem dele uma referência essencial para entender a dinâmica das multidões e os mecanismos do poder.
Massa e Poder é uma obra de difícil categorização, mas sua influência atravessa diversas disciplinas. Suas reflexões continuam relevantes no século XXI, especialmente em tempos de polarização política e crescimento dos movimentos de massas.
Senti, entretanto, que Canetti exagera ao fazer muitas referências ao passado, quase como uma tentativa de nos convencer de suas hipóteses sobre o comportamento humano em sociedade. O autor tenta sistematizar comportamentos de massa e malta, o que nos ajuda a atravessar sua obra, mas tal sistema carece de uma consolidação científica mais rigorosa.
Ler Canetti, contudo, é mergulhar na compreensão das forças pulsionais que têm conduzido a humanidade ao longo da história, forças estas que surgem na pré-história, quando nos reuníamos em bandos para garantir nossa sobrevivência por meio da caça e da coleta, e que continuam subjacentes e resilientes em nossa civilização atual. Basta olharmos para conflitos como o recente ataque indiscriminado de Israel contra os palestinos em Gaza para vê-las presentes.
Não deixa de ser importante também para compreendermos fenômenos sociais em redes de informação, nos quais traços de comportamento primitivos continuam atuando de forma subjacente a tudo que acontece no universo da polarização política, das teorias da conspiração e das fake news.
A indestrutibilidade da pulsão em seu conflito estrutural e infindável com a civilização é a tese central de O Mal-Estar na Civilização, obra seminal de Freud publicada em 1930.
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Bibliografia recomendada
A dinâmica do comportamento humano em grupos, massas e multidões tem sido estudada por diferentes disciplinas, como sociologia, psicologia social, filosofia e política. Aqui estão algumas das principais obras que teorizam sobre esse fenômeno:
Clássicos fundamentais:
- Gustave Le Bon – Psicologia das Massas (1895)
- Uma das primeiras obras a analisar o comportamento das multidões, argumentando que os indivíduos, ao se tornarem parte de uma massa, perdem sua identidade e passam a agir de forma irracional e emocional.
- Elias Canetti – Massa e Poder (1960)
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- Um estudo abrangente sobre a formação e o comportamento das massas, explorando seu vínculo com o poder e suas dinâmicas sociais, políticas e antropológicas.
- Sigmund Freud – Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921)
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- Aplicando conceitos da psicanálise, Freud investiga como os indivíduos renunciam a sua identidade individual ao se integrarem em uma massa, enfatizando a influência da figura do líder.
- José Ortega y Gasset – A Rebelião das Massas (1930)
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- Discute o fenômeno da massificação e a ascensão do “homem-massa”, que rejeita a tradição e a complexidade cultural em favor de uma visão simplificada e autoritária da realidade.
- Hannah Arendt – Origens do Totalitarismo (1951)
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- Analisa como as massas desempenham um papel central no surgimento de regimes totalitários, sendo instrumentalizadas por ideologias políticas extremas.
Obras contemporâneas e influentes:
- Michel Foucault – Vigiar e Punir (1975)
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- Embora não trate exclusivamente de massas, Foucault analisa as relações de poder e controle social, incluindo como multidões podem ser disciplinadas e reguladas.
- Edward Bernays – Propaganda (1928)
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- Discute como a manipulação da opinião pública é possível através da propaganda, explorando o poder da comunicação na formação do comportamento das massas.
- Zygmunt Bauman – Modernidade Líquida (2000)
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- Aborda a fluidez das relações sociais e como as massas se organizam e se dissolvem na contemporaneidade, diferente das estruturas rígidas do passado.
- Wilhelm Reich – Psicologia de Massas do Fascismo (1933)
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- Examina como fatores psicológicos e sexuais contribuem para a submissão das massas a regimes autoritários e totalitários.
- Giorgio Agamben – Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua (1995)
- Analisa como o poder soberano define quem pertence ou não à comunidade política, influenciando a formação e o destino das massas.
Outras abordagens relevantes:
- Jean Baudrillard – Simulacros e Simulação (1981)
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- Explora como a mídia cria realidades alternativas que influenciam o comportamento das massas.
- René Girard – O Bode Expiatório (1982)
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- Investiga a psicologia coletiva e a forma como as sociedades canalizam tensões através de rituais de sacrifício e violência.
- Mark Lilla – O Fim do Liberalismo Americano (2017)
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- Discute o impacto das massas na política contemporânea, especialmente na ascensão do populismo.
- Eric Hoffer – The True Believer: Thoughts on the Nature of Mass Movements (1951)
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- Examina a psicologia dos seguidores de movimentos de massa e como esses movimentos capturam sua lealdade.
Essas obras cobrem diferentes aspectos do comportamento das massas, desde sua irracionalidade e vulnerabilidade à manipulação até seu papel em transformações sociais e políticas.
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