Baleia

Baleia

Uma das primeiras reportagens que produzi, quando ainda estava na faculdade, cursando o último semestre do Curso Superior de Jornalismo da Unicap – Universidade Católica de Pernambuco, tratava de um tema que, na época, já preocupava os ambientalistas, pouco levados a sério pela sociedade conservadora de então. Falava da caça e da morte das baleias, que já eram vistas como “uma espécie fadada à extinção”. Deve ser dito que minha reportagem não tinha qualquer viés de crítica à atividade baleeira – tão somente narrava a grande aventura que era caçar, no meio do oceano, aquelas gigantes do mar – minks, cachalotes, jubartes e a tão cobiçada baleia-azul, algumas delas com peso superior a 100 toneladas.

Como todo estudante pobre, eu trabalhava de dia e estudava à noite. Meu emprego, na época, era justamente numa empresa de origem japonesa – a Copesbra (Companhia de Pesca Norte do Brasil), controlada pela Nippon Reizo, que possuía frotas de navios pesqueiros espalhados pelo mundo e, anualmente, caçava baleias. A Copesbra, “dona” do meu emprego, também estava na Paraíba. Com um navio baleeiro atracado em Costinha, no litoral norte do estado, os japoneses, anualmente, a cada início de agosto, se lançavam ao mar caçando baleias.

Vale a pena lembrar que, bem antes disso, antes mesmo da chegada da Copesbra, já existira, naquele recanto da costa paraibana, uma “armação”, que desde o começo do século XX caçava os grandes cetáceos de forma empírica e primitiva, lembrando um pouco a epopeia de Moby Dick. Mas caçava. Esse período de caça ia do início de agosto até os primeiros dias de janeiro, época em que as baleias-mães procuravam as águas mornas do Oceano Atlântico para ter seus filhotes.

Em Pernambuco, onde estava a sede da Copesbra, havia uma outra pequena frota – três ou quatro navios que chegaram ao Brasil para pescar atuns, mas que então, com tripulação mista de japoneses e brasileiros – sob o comando de um capitão de navio (japonês) e um patrão de pesca (brasileiro) –, passaram a se dedicar à pesca de pargos e ciobas. Tornara-se inviável pescar atuns, o alvo inicial de sua chegada ao Brasil. Uma medida do então presidente Juscelino Kubitschek proibiu a importação de um tipo de sonar que os pesqueiros usavam para localizar os cardumes em águas profundas. Sem isso, a pesca do atum tornou-se inviável. Um desses pesqueiros, o Koio Maru 16, chegava a passar 35 dias em alto-mar e, quando atracava no Cais de Santa Rita, descarregava cerca de trezentas toneladas de peixes.

Pois bem, trabalhando num escritório onde os brasileiros eram minoria e a comunicação só era mais fácil com uns poucos nisseis importados de São Paulo, consegui, com algum esforço, permissão para sair do Recife e acompanhar, na Paraíba, uma das primeiras viagens de caça à baleia que seriam feitas na temporada. Isso aconteceu apesar da má vontade e do gênio ruim do gerente local da empresa, que, felizmente, cumpria ordens vindas dos seus superiores – aliás, uma cultura japonesa que era fielmente obedecida. Dois diretores da Copesbra – Issao Ishigami e Takeshi Komuro – ajudaram a dobrar a má vontade do executivo em João Pessoa, garantindo minha viagem à Paraíba e a rápida aventura no mar largo, na caça às baleias.

O navio baleeiro saía para alto-mar antes das cinco horas da manhã, com o clarão das últimas estrelas e uma ameaça vermelha no horizonte, anunciando que o sol estava prestes a nascer. Fui para a armação de Costinha no final da tarde, fiz hora num boteco de péssima qualidade e, com uma carta de recomendação no bolso, pouco depois da meia-noite, quando chegaram os primeiros tripulantes, me apresentei. O comandante do navio estava ciente de minha presença na tripulação e me deu uma cabine para meu alojamento.

Devo ter dormido cerca de três horas. Acordei em alto-mar, com o baleeiro subindo e descendo as ondas volumosas, que pareciam querer engolir a embarcação. Vomitei tudo o que havia comido e bebido 12 horas antes. Fui até a cabine, lavei a boca e o rosto e voltei para o convés.

Lá em cima, no alto do mastro, sentado num pequeno banco, um japonês feliz da vida esquadrinhava o mar sem fim. Era o gajeiro, o marujo que olha para o mar em todas as direções, à procura do esguicho denunciador de uma baleia. Quando avista, ele grita, toda a tripulação se põe a postos e começa um jogo onde o homem sempre ganha. Entra em campo o tripulante mais importante de toda a equipe, mais importante até do que o próprio comandante: o artilheiro. O homem que maneja o canhão, que atira e mata as baleias, entra em cena quando o alvo aparece à vista.

Eram pouco mais de nove horas da manhã quando se avistou a primeira baleia. Era uma mink, fêmea e adulta, que começou a ser perseguida pelo navio, agora navegando no limite de sua velocidade. Manobrando o canhão como quem dirige um automóvel, o artilheiro procurava o melhor ângulo e o melhor momento para o disparo. Que, enfim, aconteceu, com a fumaça e o cheiro de pólvora invadindo o ambiente. Tiro certeiro. O arpão, que, ao atingir o alvo, imediatamente tingia o mar de vermelho, estava preso a uma poderosa corrente – e, quanto mais a baleia atingida tentava fugir mar adentro, mais suas carnes eram rasgadas pelas garras do arpão, ligado ao navio. Esse calvário não durava mais de dez minutos. A baleia perdia força, parava de resistir e morria aos poucos. O navio começava a recolher de volta o arpão preso à baleia, até que a caça, já nos últimos estertores, encostava no navio.

Com restos de comida no lado oposto, a tripulação tentava chamar um cardume de tubarões, atraídos pelo cheiro de sangue que tingia o mar. Parte dos tripulantes – pois na tripulação cada marujo tinha sua tarefa definida – aplicava enormes injeções de ar na baleia abatida, para que ela pudesse boiar em alto-mar. Um sistema de rádio também era colocado na baleia, necessário para reencontrá-la mais tarde, quando seria recolhida e rebocada na viagem de volta até o porto, onde seria tratada, retalhada e preparada para comercialização.

Essa caçada que acompanhei resultou no abate de cinco baleias (o navio tinha capacidade de abater e rebocar até seis), todas da espécie mink. Na armação de Costinha, “o pessoal de terra” estava à espera da caça, e assim teve início outra parte “enjoativa” do dia: tratar as baleias.

Ainda dormi uma noite em Costinha, cansado e enjoado daquele cheiro pegajoso, e voltei para o Recife no dia seguinte. Escrevi meu texto e publiquei no Jornal do Commercio, embora sequer fosse estagiário dos seus quadros.

No alto-mar, vi como são solidários os tripulantes de um navio de pesca. Conheci um deles, triste e solitário, que, diziam, havia perdido todos os seus parentes, vítimas da bomba atômica de Hiroshima. E nunca mais, como repórter, quis reviver a triste experiência de embarcar num navio baleeiro e ver como cruelmente eram mortas as baleias, muitas delas deixando órfãos seus filhotes recém-nascidos.