Experiências recentes de denúncias de atos de barbaridade, violência e segregação, especialmente praticados contra membros de minorias vítimas de preconceito e rejeição social, instigaram-me a questionar o valor da igualdade e da liberdade para os homens, como sentimento indispensável à sua própria constituição como ser humano, sua identidade, como pertencente a grupos sociais, vivendo em determinada sociedade, onde estabelece relações permanentes de solidariedade e conflitos, de poder e hierarquia de status.
Tradicionalmente, a questão da liberdade individual é remetida à existência da desigualdade social, principalmente no que se refere ao acesso aos bens e à renda. Os cidadãos de segunda categoria e que são frequentemente vítimas de restrições ao pleno exercício da cidadania são os pobres, que são envolvidos em atos de violência.
No entanto, observando as ações sociais que envolvem as relações entre grupos diferenciados pelo acesso ao poder, ao prestígio e à riqueza, percebe-se que o desigual acesso à liberdade se expressa, de acordo com regras sociais pré-estabelecidas, como relações de poder, que fazem com que se considerem membros de alguns grupos como desiguais, diferentes, inferiores e objetos de escárnio e preconceito.
Esse processo de diferenciação ao acesso pleno a suas identidades sociais, que impede um convívio social entre iguais e faz com que esta desigualdade se manifeste como estrutura desigual de poder é analisado por Norbert Elias como um divisor social na formação de dois grupos, em posições opostas e conflitantes: “estabelecidos” e “outsiders”.
Os grupos de estabelecidos atribuem a si características humanas superiores, o que os autorizariam a estigmatizar, menosprezar, marginalizar, perseguir e, até, conseguir, em alguns casos, alterar a própria autoestima de outsiders, que passam a se considerar inferiores; ou, por outro lado, a reagirem e estabelecerem confrontos, de acordo com as características e as tradições sociais.
A amplitude do conceito facilita a compreensão de várias formas de desigualdade estabelecidas socialmente, podendo ser aplicadas desde as contradições da luta de classes, até os preconceitos raciais, étnicos, sexuais e tantos outros.
Buscando exemplos clássicos de violação da liberdade onde pudesse fazer a utilização desse conceito, fui encontrar em duas pessoas públicas, escritores, que por questões diferentes tiveram a liberdade cerceada. Ambos fizeram parte do grupo de estabelecidos – desfrutando reconhecimento público, incluídos economicamente: Primo Levi, químico por formação, com família constituída e cidadão italiano; e Oscar Wilde, escritor, com formação universitária nas melhores escolas do Reino Unido, com espaço de circulação nas elites intelectuais de sua época. Circunstâncias e valores diferentes jogaram os dois na posição de“outsiders”, como conceitua Norbert Elias.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Primo Levi foi atingido pelas leis fascistas italianas e deportado para a Polônia com mais de cem outros judeus italianos, considerados inimigos da pátria. Lá foi enclausurado no campo de concentração nazista de Auschwitz, em 1944, onde passou um ano, tendo voltado à Itália com o fim da guerra. Seu crime? Ter reagido à dominação nazista, participando de um grupo de resistência ao Sul da Itália, quando a discriminação racial tornou o povo judeu excluído dessas sociedades.
E Oscar Wilde, por que se tornou um “outsider”? Artista de gostos e temperamento excêntricos, apaixonou-se por um jovem inglês, filho de descendentes da nobreza britânica, com quem manteve um relacionamento homoafetivo por alguns anos. Em 1895, insatisfeito com o preconceito a ele dirigido, entra em disputa judicial com o pai do seu amante, sendo condenado por desvio sexual. Perdeu e foi condenado pela Justiça Inglesa a cumprir dois anos de prisão, em trabalhos forçados, no presídio de Wandsworth. Confiscaram as suas obras, censurando-as, quando não poderiam sequer serem citadas em sociedade. Perdeu todos os seus bens e já não tinha mais família.
Em “É isto um Homem?” e em “De Profundis”, os dois autores procuram relatar os sofrimentos e a perda de dignidade que as torturas do tratamento imposto aos encarcerados provocam em quem já não tem mais ao que recorrer para se manter na condição humana.
Quando a dor, o medo, o sofrimento, os sonhos reprimidos invadem a identidade de um ser humano, pouco espaço lhe resta para a defesa da sua dignidade. Em sua chegada a Auschwitz, Primo Levi descreve: “Isto é um inferno. Hoje, em nossos dias, o inferno deve ser assim: uma sala grande e vazia, e nós, cansados, de pé, diante de uma torneira gotejante mas que não tem água potável, esperando algo certamente terrível, e nada acontece, e continua não acontecendo nada. Como é possível pensar? Não é mais possível; é como se estivéssemos mortos. Alguns sentam no chão. O tempo passa, gota a gota”.
Em um outro trecho de “É isto um homem?”, Primo Levi lamenta: “”imagine-se, agora, um homem privado não apenas dos seus seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, sua roupa, tudo, enfim, rigorosamente tudo que possuía; ele será um ser vazio, reduzido a puro sofrimento e carência, esquecido de dignidade e discernimento – pois quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo; transforma-se em algo tão miserável, que facilmente se decidirá sobre a sua vida e a sua morte, sem qualquer sentimento de afinidade humana…”.
Como um “outsider” que não se culpa pela quebra de uma regra ditada pelo establishment, Wilde alega que “os deuses são realmente surpreendentes. Não são somente os nossos vícios que eles usam como instrumentos para nos flagelar. Trazem-nos desventuras por meio daquilo que há em nós de bom, gentil, humano, amoroso. Se não fosse pela minha piedade e afeto por você, e pelos seus, não estaria agora sofrendo neste terrível local”, na carta em que escreve ao seu amante e que compõe a obra “De profundis”.
Neste sentido, mesmo se achando injustiçado, ele aceita resignado o castigo pela quebra do que moralmente desobedecera, sentindo-se impotente diante do poder que emana do establishment, que, além de privá-lo da sua liberdade, usa da fofoca, dos comentários ácidos, para desmoralizá-lo ainda mais, acrescentando à pena, o castigo do expurgo social.
Constatando toda a pena a ele submetida pela ordem jurídica inglesa (que fez várias outras vítimas pelo crime de homossexualidade), com a perda da liberdade, confessa que “Após a minha terrível sentença, quando já tinha vestido o uniforme de prisioneiro e a porta da prisão se tinha fechado atrás de mim, sentei-me entre as ruínas da minha vida maravilhosa, esmagado pela angústia, perplexo de terror, estonteado pela dor.”
A exclusão do espaço social se confunde com a estreiteza do espaço onde passa o prisioneiro a ocupar no seu cotidiano. Wilde expressa este sentimento, afirmando que “para nós há simplesmente uma estação, a estação da Dor. O próprio Sol e a própria Lua parecem nos ter sido roubados. Lá fora, o dia pode estar azul, dourado, mas a luz que entra pelo vidro fosco da pequena janela de grade de ferro diante da qual nos sentamos é cinzenta e fraca. É sempre crepúsculo na nossa cela, tal como é sempre meia noite no nosso coração”.
Concluindo as suas observações sobre a mudança na sua vida pela punição sofrida, Wilde tem consciência que os anos de prisão serão a referência de sua pessoa para o resto da vida, e o ostracismo a sua condenação social. Ele afirma que “Todos os julgamentos são julgamentos para a vida inteira, tal como todas as sentenças são sentenças de morte. A Sociedade, tal como a constituímos, não terá lugar para mim, não terá lugares para me oferecer, mas a natureza, cujas doces chuvas caem igualmente sobre os justos e sobre os injustos, terá fendas nas rochas onde poderei esconder-me, e vales secretos em cujo silêncio poderei chorar sem ser perturbado.”
Oscar Wilde morreu em 30 de novembro de 1900, dois anos após sair da prisão, sendo sepultado sem nenhuma glória. Somente após nove anos do seu falecimento é que seus restos mortais foram transferidos para um lugar de honra, em um monumento, no PéreLachaise, sendo sua obra reconhecida como a de um autor de gênio.
Primo Levi voltou para a Itália em 1945, com o fim da guerra, e retomou suas atividades como químico, procurando superar a experiência vivenciada no cativeiro. Em 1987 se suicida.
Quantos outros casos semelhantes de punições aos “outsiders” poderiam ser relatados ainda hoje, por intolerância à diferença, quer esta rejeição se identifique pela cor da pele, opção sexual, machismo, homofobia, política, religião? A forma de combater a violência praticada pelos estabelecidos está no não conformismo dos outsiders e pela luta pela igualdade e respeito social às identidades.
Ester,
Reflexão mais que apropriada para os tempos atuais. Leonardo Boff diz que temos viver com e não viver sobre,
Abraham
Muito forte! O pior de tudo, é saber, que, quem nos pode impingir tamanha crueldade e nos relegar a “um nada”, são outros ditos “seres humanos”(?). Por toda essa barbárie, se não nos conscientizarmos da urgente necessidade de cada um de nós, que habitamos esse lindo Planeta Azul, efetuarmos nossa “Revolução Humana, Revolução Individual”, na qual possamos mostrar, revelar, nosso Eu Maior, Eu Superior, Eu Verdadeiramente Humano e Lúcido, muito em breve, seremos “raça dinossauro”!!! Extintos por si mesmos!!!