Alberto Aggio*
Há quem imagine que já se possa falar na existência de uma “questão grega” que passaria a figurar como paradigma no combate ao capitalismo financista. A vitória alcançada no referendo pelo primeiro-ministro Alexis Tsipras, líder do Syriza, que recusou as condições impostas pela União Europeia (UE) para a renovação dos empréstimos ao país helênico, parece ser o grande marco desse paradigma. A estratégia de Tsipras tinha como objetivo mínimo a manutenção do governo de ultraesquerda e como programa máximo abrir uma contestação incisiva à dinâmica vigente na UE, objetivando sua “reforma democrática”. O primeiro objetivo foi alcançado e o governo sobreviveu. O segundo, não é uma proposta apenas de Tsipras, mas sem dúvida toca no desafio mais profundo da UE.
A vitória do Syriza no referendo colocou em xeque o projeto europeu, uma vez que se poderiam estabelecer elementos disruptivos preocupantes, dentro e fora da Europa. Visto pelo prisma global, atesta-se que o conflito político mundial que pairava latente volta a se acender. Todos os atores envolvidos, mais a observação ativa dos EUA, levaram isso em conta quando se sentaram à mesa para negociar os termos do acordo proposto por Tsipras, depois de aprovado no Parlamento grego. O resultado das negociações foi um programa de austeridade que muitos consideram draconiano, mas que o líder do governo grego foi forçado a aceitar e a defender perante seus concidadãos. Afora as promessas redução e alongamento da dívida, Tsipras ressaltou a importância da manutenção da soberania grega ante o controle dos processos de privatização e enfatizou o prazo de três anos, bem como o montante de recursos que a Grécia irá receber para voltar a ter alguma estabilidade e retomar do crescimento. Aprovadas as primeiras medidas, o Parlamento grego deu um claro sinal aos credores da UE de que deverá seguir aprovando os demais itens do resgate e o risco de uma ruptura da Grécia com a zona do euro estaria afastado, pelo menos dentro das condições acordadas até o momento. Nesse cenário complexo, os agentes envolvidos buscaram atuar a partir de um realismo tão inédito quanto necessário, visando a manutenção não apenas da UE, mas da própria democracia.
Na conjuntura anterior ao referendo, quando era quase impossível qualquer previsão, houve quem apostasse na vitória do “sim” e acabou sendo forçado a rever seus argumentos. Procurando identificar o núcleo central do problema grego, um jornalista econômico insistiu, diante das câmeras, que a dificuldade estava na visão marxista do Syriza que, ao combater o “suposto caráter antidemocrático” da UE, projetava a introdução do socialismo naquele bloco de países. Um reducionismo ideológico sem sentido, apenas comparável à saudação petista ao Syriza pela vitória, “esquecendo-se”, como lembrou Luiz Werneck Vianna em artigo recente, que seu governo implanta no Brasil um programa de austeridade similar àquele que o mesmo Syriza se opôs, pelo menos até o referendo.
Com raras exceções, predominaram confusões e mal-entendidos ao se analisar a crise grega. E pouco adiantou a mobilização dos argumentos de J. Habermas, que há tempos tem anotado que o problema europeu está no descompasso entre a união monetária e a capacidade de garantir uma união política de caráter democrático. Uma avaliação que deve ser compartilhada, embora seja capaz de produzir respostas políticas e realistas ao impasse que marcou a disjuntiva do referendo grego.
De qualquer forma, passado o referendo e os acordos iniciais, o cenário ainda se mantém intrincado e o governo grego segue navegando em águas tempestuosas. Está claro que o referendo serviu muito mais aos propósitos políticos do Syriza de se legitimar externamente do que às opções que constavam na confusa cédula eleitoral. Contudo, o referendo gerou ilusões e, como se viu, produziu pouca sustentação política e credibilidade ao governo grego diante de uma Alemanha que passou a radicalizar mais ainda suas posições em relação ao país helênico, defendendo inclusive sua exclusão temporária da UE. No contexto das tratativas, Merkel buscava transformar a derrota tática em uma vitória estratégica, endurecendo os termos e as condições do acordo. Em nenhum momento a chanceler alemã reconheceu que evitar o referendo, antecipando um acordo mais razoável, como propôs o primeiro-ministro italiano Matteo Renzi (Partido Democrático), seria a coisa mais acertada a fazer.
No pós-referendo, as divisões de Syriza já eram esperadas, visto sua composição ideológica. A recusa de apoio a Tsipras por parte de parlamentares do Syriza resultou na perda da maioria no Parlamento. Registre-se também que houve renúncia de ministros adstritos ao partido e que a maioria do CC do Syriza se colocou contra a aprovação dos termos do ajuste. Explicável, portanto, que nesse contexto tivesse ressurgido o fantasma da traição, uma noção que esteve presente no repertório dos piores momentos da história da esquerda mundial. Uma fórmula reconhecidamente débil e instrumental.
Apesar de condutas muitas vezes paradoxais, Tsipras caminhou, em meio à turbulência, em direção a uma postura de “esquerda de governo”, superando a fase de construção retórica e simbólica de seu partido-movimento. Uma atitude saudada inclusive pelo Podemos, desde a Espanha. Guardadas as diferenciações de época e de circunstância, se Tsipras conseguir se manter no governo por mais algum tempo (já se fala em eleições antecipadas em setembro), terá realizado uma operação à François Mitterand que, depois de ter vencido em aliança com os comunistas, rompeu essa aliança para superar a crise inicial do seu governo. Uma opção que nunca esteve disponível a Salvador Allende, no Chile, décadas antes.
É relevante se pensar, entretanto, nas razões que produziram uma verdadeira idolatria a respeito da vitória do “não” no referendo grego. Mesmo diante de uma situação dramática e quase sem saídas para a Grécia, essa idolatria acabou produzindo uma sensação ilusória de assalto aos céus, alçando o país a um lugar paradigmático e simbólico. Alguns, como Alain Baudiou, anteciparam a necessidade de se criar “brigadas internacionais”, como aquelas que se formaram na guerra civil espanhola, para apoiar o governo grego! Numa versão não tão pedestre, no interior da vertente intelectual que vê de maneira catastrófica a situação da esquerda europeia, cultivou-se a ideia de que um “país atrasado” (para os padrões europeus), com uma economia combalida e ferido de morte por décadas de parasitismo em relação ao Estado e aos recursos da UE, seria capaz de redirecionar, mesmo em estado quase terminal, a estratégia da esquerda mundial ao sinalizar o rumo para o enfrentamento ao capitalismo financeiro. Nessa fabulação extemporânea da teoria das “vantagens do atraso”, o desastre grego foi tomado como uma vantagem para se estabelecer uma via plebiscitária de superação do capitalismo. São argumentos fundados num mimetismo ideológico flagrantemente anacrônico. Quando não se especulou nesses termos, se lançou mão da mitologia grega, exaltando a coragem dos habitantes do país helênico como se cada um deles fosse um Ulisses redivivo. No pós-referendo, visando compreender o que havia conduzido a mudança de rumo de Tsipras, houve quem exumasse o acordo de Brest-Litovisk (1918), no qual os bolcheviques acertaram uma “paz desonrosa” com a Alemanha para defender a Rússia revolucionária, numa atitude intelectual de integral servidão à visão teleológica da história.
A “questão grega” acabou reduzida assim à falácia da democracia direta, que pensa a democracia contemporânea a partir de puros atos plebiscitários. Em suma, essencialmente, portanto, a chamada “questão grega” não é outra coisa senão uma releitura da “revolução”, conduzida por uma esquerda ancilosada ou por aquela que vê tal emblema como um “drama da multidão em atos, numa combinação sincrética de táticas, truques e malandragens”. Isso, somado à cultura nacionalista e corporativa da direita e à sufocante debilidade do “socialismo europeu”, apenas fará com que a desejada “reforma democrática” da UE seja deslocada para as calendas gregas.
* É Professor Titular de História da UNE
Já tinha lido o artigo em O Estado de S.Paulo em 18 de julho, na página de Opinião, com a exceção dos novos parágrafos que se referem a Habermas e Werneck. É interessante tentar entender as manifestações de uma “esquerda” brasileira durante as negociações do Eurogrupo sobre o programa grego. Não creio que os brasileiros que aplaudiram o “oxi” tivessem alguma noção de suas implicações reais para o povo grego. Era só o aplauso de uma imaginada “derrota dos bancos”, assim como o aplauso anti-imperialista de universitários brasileiros no momento em que viram as Torres Gêmeas desmoronando incendiadas depois que os aviões se chocarem contra elas. O “povo grego”, em um caso, e os milhares de mortos no ataque terrorista de 2001 em New York, em outro caso, eram puramente instrumentais, em supostas vitórias contra os bancos, os credores, ou contra o “imperialismo americano”. Na verdade, o simples chamado ao referendo (independente do resultado) alienou os governos europeus mais “compreensivos”, mais dispostos a uma conciliação com a Grécia. Pois a reação foi a de que não podiam aceitar entre eles um governo que estava tentando chantagear os demais.
A revista The New Yorker publicou um perfil de 25 páginas do ministro da fazenda por 5 meses, Yanis Varoufakis: http://www.newyorker.com/magazine/2015/08/03/the-greek-warrior. Parece que Varoufakis caprichou numa retórica com a qual pretendia conclamar os partidos de extrema esquerda na Zona do Euro, para que estes conseguissem algum levante “democrático” das massas em favor de apoio financeiro à Grécia, até com o argumento de reparação pela II Guerra. Na verdade, foi um tiro pela culatra: é bom lembrar que quem primeiro falou em Grexit foi a Slovenia, em 2014, e tinha apoio de vários países menores da Zona do Euro. E eu acho que a gente deveria notar, também, que a Grécia é o país da Zona de Euro que tem os mais elevados gastos militares per capita e como proporção do PIB.