pelos 15 minutos de celebridade, que no meu caso serão eternos. Ser sempre o que o outro quer, já que o outro é a medida da minha existência, já que é o outro quem valida o que sou. Ser é ser o outro e à margem do outro que me vê e me valoriza eu sou apenas a sombra do apagão, um zero. Nada.
Se Caetano Veloso canta que Narciso acha feio o que não é espelho, eu vou além, muito além, e afirmo que Narciso é o próprio espelho, que Narciso é uma criação do outro. O outro é o Big Brother, a mídia, o olhar invejoso do vizinho que quer meu carro importado porque odeia o que tenho e o que tenho é o que sou. O outro é o chefe a quem presto vassalagem para ser o que ambiciono: o executivo sem alma, o astro da mídia, a prostituta que se chama acompanhante ou modelo, o deus do futebol com quem me identifico quando visto sua camisa e majestosamente desfilo pelas ruas como se fosse ele. Se ele me toca, ou rabisca um autógrafo no guardanapo de papel onde o nome dele e o meu se imortalizam, sinto-me como se a mão de Deus sobre mim descesse. É quando sei que sou onipotente. Eu tudo posso. Eu tudo quero.
Sou the hollow man, o homem vazio, o homem oco do poema de Eliot. Não me procurem onde não estou e nunca estive: dentro de mim, pois sou pura forma aparente. Sou o reflexo de uma avenida em cujas margens vislumbro outdoors e clipes publicitários, vitrines que semelham templos onde adoramos o Deus mercadoria, massas errantes rolando por ruas anônimas à procura do que todos procuram: um quinhão de fama, um farelo de notícia que prove ao mundo e antes de tudo a mim próprio a existência dentro de mim anulada. Sou o homem vazio, o homem oco que é pura aparência. Dentro de mim há apenas poeira, um deserto sem água, trapos recobrindo minha nudez vazia e uma angústia sem norte, uma ansiedade sem objeto, um desejo de fuga sem destino, o vazio carente de algo que o preencha.
Mas tudo posso, essa é a voz sedutora do clipe publicitário que me persegue e cativa em tudo que ouço e me cerca. Ela escorre geladinha na garrafa de cerveja. Ou é na bunda deslumbrante da loura gostosa que bebe nos meus braços? Ela me faz crer que sou o dono do banco, não o correntista esfomeado entre o desejo de consumo e a taxa de juros. Ela transfigura minha solidão num harém onde as mulheres mais lindas e inacessíveis estão à distância de um travesseiro na minha cama, dóceis e servis como as mucamas dos engenhos de açúcar coloniais. Eles sobrevivem, os engenhos e seus senhores onipotentes, os engenhos e a escravaria moída pela máquina que sem alma tudo tritura; eles sobrevivem no tipo de capitalismo brutal que criamos, na mídia com seu circo de horrores cotidianos.
Sou onipotente pilotando meu carro que é uma máquina de guerra. Dentro dele viaja submissa a mulher que eu quiser, escrava do meu desejo. Dentro dele, miro com desprezo a massa anônima pendurada no estribo do ônibus, espremida nas janelas de veículos ferventes à luz do verão. Dentro dele, vejo de relance a massa de trabalhadores espremida em trens como se fosse sardinha enlatada. Dentro dele traço a fronteira entre dois Brasis atados mas divididos, cada vez mais se defrontando com surda ferocidade. Um país de todos, mas desiguais. Dentro dele, acelerando como um guerreiro em combate, atropelo o pedestre, ultrapasso sinais vermelhos, excedo todas as velocidades porque a potência do meu carro é instrumento da minha onipotência. Dentro dele estou acima da lei porque a lei e todos os códigos inventados pela sociedade são apenas o que acelero e compro.
Os valores e direitos humanos? Digam-me quanto custam, pois tenho o poder de comprá-los. Amor, delicadeza, ética, respeito, civilidade, compaixão, tudo isso soa como palavra tão vazia quanto o vazio que dentro de mim transporto. Como disse, não me procurem onde não sou e estou. Sou pura aparência produzida pelos poderes aos quais servilmente rendo minha liberdade, um sentido de humanidade e beleza que nunca provei nem me apetece. O que não suporto é a solidão, a hora fatal em que preciso mirar-me não no espelho do outro, não no espelho que é o outro, mas no espelho da parede do banheiro que habito, no espelho da minha casa sem humanidade. Nesses momentos irrompe e me sufoca a solidão dos desertos áridos, a angústia sem corpo e forma, a insatisfação sem repouso. Como explicar essa insatisfação permanente, esse movimento sem pausa, se tudo compro e tudo tenho no shopping que é o templo onde venero meus deuses e realizo minha figuração do céu na terra, céu que é aliás o único, pois que sou eterno? Os publicitários, voz da minha consciência, inventaram a terceira idade e assim aboliram a velhice. Eu, que tudo posso, fui além deles: desinventei a morte e me fiz eterno. Eu sou o outro e sou eterno. Mas por que não paro de me doer? Por que sou a droga sem a qual não suporto o mundo nem me suporto? Por que esse vazio que vai de dentro para fora de mim quando o espelho não é o da mídia, mas o da parede do meu banheiro?
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Fernando:
Seu texto é como um bisturi agudo, dissecando a alma dos “sñoritos” consumistas de hoje. Tão agudo e tão preciso que está inibindo comentários. Esperei um dia para fazer este, para ver se alguém se aventurava, e nada…
Fica porém o meu registro.
Meu caro Clemente: li ontem seu comentário, mas um problema no meu notebook impediu-me de responder de imediato. Escrevo apenas para registrar meu reconhecimento por suas palavras, que são antes de tudo alentadoras. Quando li seu comentário, ninguém aparentemente tinha conferido atenção à minha crônica ficcional, salvo você e Fernando Dourado. À parte a vaidade mesquinha do autor, confesso que fiquei frustrado, pois escrevemos à cata de reconhecimento, que não quer dizer elogio fácil ou lisonja. Refiro-me à expectativa de provocar reação crítica. Por isso me senti frustrado. Seu comentário, sempre generoso, animou-me a continuar escrevendo. Muito grato, Clemente.
Prezado Fernando,
Vinte anos atrás, eu almocei no hotel Novo Mundo, no Flamengo, com o falecido geógrafo Milton Santos e sou grato por essa dádiva. Tínhamos ido ao Rio para dar uma palestra no BNDES e, estimulado pelo bate-papo, eu fiquei atento a tudo o que ele disse naquela tarde. Pois bem, a tese que o professor deslindou – defendida com elegância num ambiente plural e um pouco açodado -, era a de que o consumismo tinha se tornado o mais perigoso dos fundamentalismos vigentes em nosso depauperado planeta.
Confesso que levei mais uns anos para entender o alcance transcendente da visão desse brasileiro de fala mansa e juízos pugnazes. Foi uma revelação, e me permitiu manter uma leitura atualizada e perplexa do que ocorria à minha volta. Mas como a arte permite que se narre um fato sob diferentes roupagens, agradeço seu belo texto que corrobora com virulência o que dizia o falecido Mestre. De lá para cá, onde quer que tenha estado, só vi a confirmação dessa profecia. O consumismo sobrepuja os mais enraizados credos religiosos e gera subseitas.
No diapasão que você tão bem identificou, essas almas enfermiças querem que se dane a compaixão, a dor alheia e a fila de meses para botar uma prótese. Anestesiam-se com automóveis de seis dígitos e casas de sete. O pior é que são engolfadas por um vazio que não conseguem preencher com dinheiro. Então trocam de penteado, de nome, de corpo, de cônjuge e até de avião. Em todas as faixas, a loucura impera. Adolescentes idiotas deixam de comer para botar créditos no telefone. E olham quem está de fora dessa ciranda com ódio talibã.
Em tempo: até pouco tempo atrás, era comum que economistas e, bem entendido, políticos dessem uma ênfase iracunda à expressão “ávidos por consumir”. Quantas vezes não ouvi esse brado ensandecido? É claro que ele faz todo sentido para a logística e a promoção de um produto. Mas ninguém levanta a voz para perguntar o que estava por trás disso. E se essa avidez era realmente saudável? Afinal, quem quer ser o desmancha-prazeres? O resultado está nesses shoppings cheios de almas vazias. Sem dinheiro, elas se deparam com o não-ser.
Abraço,
Fernando
Caro Fernando: Endosso o ponto de vista de Milton Santos e o seu, que de resto reforçam as linhas gerais da minha crônica ficcional. Se eu tivesse vocação teórica ou fosse sociólogo, não obstante os muitos anos de minha vida que gastei ensinando esta disciplina, escreveria um artigo de ambições teóricas. Como não sou, tentei traduzir algo do que penso sobre o assunto em clave de crônica ficcional. Espero que o tom da narrativa vá além da invectiva moralista e, pior, hipócrita Este é o caso de muitos teóricos que estão na moda, angariando fama e fortuna como críticos do narcisismo consumista quando antes de tudo exploram esse solo fértil ao investimento. Ousaria dizer que é o caso de um dos mais ilustres e paradoxalmente lúcidos: Zygmunt Bauman. O consumismo como etapa atual do capitalismo é tão perverso que enreda nas suas malhas onipresentes até os seus críticos mas viscerais.
Em tempo: não preciso dizer, embora diga, que há uma forma de narcisismo universal, diria clinicamente normal. É aquela que Freud designa como narcisismo primário. Este é parte constitutiva da condição humana. O que critico, como você e Milton Santos, é esse já patológico que define a natureza da cultura hodierna. Um abraço, Fernando.
Há analistas (conheço alguns) que recomendam o consumo como terapia. O “compro, logo, existo” é a concepção destrutiva da história. Nem Igarapeba escapou. Parabéns, Fernando Mota.
Dear Cap: também conheço esse tipo. O que há por aí de embuste psicanalítico estremece até as fundações teóricas do nossos vetusto Edilton Disquisições. A Universidade Livre de Igarapeba esteve sempre na vanguarda do atraso. Um abraço, Cap.