Marcelo Barros é um delegado de polícia que escuta Pink Floyd, lê Hannah Arendt e vê os filmes de Lars Von Trier. Por aí já se vê que não é um sujeito comum. Além do mais, é Doutor. Não me refiro ao tratamento de “doutor” que todo delegado de polícia recebe, mas ao título acadêmico que obteve num Doutorado em Sociologia na Universidade de Salamanca com uma tese sobre a tortura na polícia brasileira, publicada agora em livro (Polícia e Tortura no Brasil, Editora Appris, 2015). No subtítulo, Marcelo usa uma expressão para se referir aos colegas torturadores que aqui usei como título: “a caixa das maçãs podres”. Elas estão em Pernambuco, onde Marcelo é delegado e por onde a pesquisa começou, mas estão também em Alagoas, na Paraíba, na Bahia, no Amazonas, em Minas Gerais, em São Paulo, no Mato Grosso e no Rio Grande do Sul, para onde a pesquisa se expandiu. Ou seja: a “caixa” é na verdade um “pomar” do tamanho do Brasil!
A pergunta inicial é aquela já tantas vezes feita: como, “vinte e cinco anos depois da Constituição Federal de 1988”, e mesmo sendo “punida de forma bastante severa em lei penal especial”, a tortura continua “sendo uma prática clandestina nas corporações policiais?”. A resposta mais singela seria: justamente porque não é punida. É uma resposta fácil de ser dada e está ao alcance de qualquer um. Difícil é ir além da névoa das evidências e esmiuçar tais práticas; as condições em que são exercidas; que “cumplicidades” se estabelecem entre os que “metem a mão na massa” e aqueles outros, numerosos, que preferem não saber o que se passa nos porões de suas jurisdições; os que, ouvindo gritos, preferem passar sem parar; ou, surpreendendo um preso com um saco plástico enfiado na cabeça, virar o rosto. Para fazer um trabalho como o de Marcelo é necessário, em primeiro lugar, ter acesso a essas práticas e a essas pessoas; ser, por assim dizer, “de dentro”. Os estudos sobre o assunto, no Brasil e na América Latina de um modo geral, dão voz aos torturados, praticamente nunca aos torturadores. Cito o autor: “Além da dificuldade para obter testemunhos confiáveis, alguns consideram que se o pesquisador tentar conhecer as razões do torturador ou o que o leva a cometer tais atos, poderia resultar ‘contaminado’ por sua violência ou inclusive ajudar a justificá-la”.
Obviamente, não se trata disso. Trata-se, no caso, de um exercício corajoso de “compreensão” de ações de pessoas que, mesmo praticando “monstruosidades”, não são psicopatas – ainda que pelo menos um dos entrevistados seja um “sádico”, como qualifica o próprio autor. De um modo geral os torturadores, ao contrário do que pode imaginar o senso comum, são funcionários públicos praticando uma ação racional. Como diz Marcelo, “busco o que leva pessoas ‘comuns’, ou que se aproximam de um padrão de ‘normalidade’, a torturarem”. Para aqueles que, nos nossos departamentos de sociologia e ciências afins, são vidrados por essa história de Marco Teórico, eu diria que o trabalho de Marcelo é um belo exercício de combinação da “sociologia compreensiva” de Max Weber com a “banalidade do mal” de Hannah Arendt – tudo isso com competência, mas sem ostentação…
A exiguidade deste texto (que não aspira a ser mais do que uma breve notícia) não permite estender-me sobre as várias qualidades do livro que comento. Aduzo apenas que, conhecendo de dentro a “caixa das maçãs”, o autor está melhor do que ninguém em condições de “apresentar proposições que ajudem no combate à tortura” – tema do capítulo final do livro. São proposições, digamos, científicas. Saem os discursos indignados, tantos e tão inócuos, e entram propostas pouco espetaculares, propostas de gestão, que devem ser conhecidas de um público maior do que aquele que seu livro mereceu até agora: seus colegas, alguns dos quais o incentivam, mas em número menor do que aqueles, “muitos”, que o vêm como um “traidor” que ousou romper a “lei do silêncio”.
Marcelo Barros é um policial que em determinado momento da sua vida percebeu, como ele diz, “a dimensão da monstruosidade que estava a alguns centímetros dos meus olhos” (o que terá visto Marcelo?…). O que ele fez? Sem complexo de inferioridade, foi atrás da sociologia, da psicologia social, da história e da antropologia para tentar compreender o que via. Fez a sua parte. A outra parte já não está sob sua jurisdição. Quero dizer: é hora de os cientistas sociais brasileiros, sem complexo de superioridade, lerem com atenção, respeito e reconhecimento o que um policial tem a lhes dizer.
Luciano Oliveira não teve medo, escreveu sobre um tema muito difícil. E não teve medo dos mal-entendidos, que acontecem facilmente nesse tema. Parabéns, anotei e vou procurar o livro.
Prezado Luciano,
Não vejo a hora de ler o livro. Vou pedir para que alguém compre um exemplar para mim e me envie do Brasil. Ainda mais agora, depois de ver um Deputado Federal fazer apologia a um torturador durante seu voto no processo do impeachment e descobrir, ao ler um artigo na revista Piauí (http://revistapiaui.estadao.com.br/questoes-da-politica/entre-os-mais-ricos-bolsonaro-lidera-corrida-presidencial/), que este mesmo parlamentar é o preferido dos 5% mais ricos do país para ocupar o cargo de Presidente da República. Entender a psicologia social do torturador pode, acredito, nos ajudar a entender o tipo de pensamento conservador que está ganhando hegemonia no Brasil (Deus, família e tortura?).
Abs.,
Jorge Alexandre