Boa parte da música do Classicismo e do Barroco possui um estilo que não pode ser facilmente classificado como de um único país; os estilos e formas eram disseminados internacionalmente. No século XIX, porém, os músicos começaram a se identificar pela sua nacionalidade, bem como os estilos ou gêneros em que trabalhavam.
A política europeia no século XIX foi marcada pelos movimentos nacionalistas, que tinham dois perfis. Havia povos unidos por uma língua comum, como italianos e alemães, cujo objetivo era formar estados-nação autônomos, enquanto outros povos – por exemplo, húngaros, tchecos e irlandeses – eram dominados por estrangeiros e buscavam a independência. A música, ao lado da língua e da literatura, tornou-se um veículo para suas aspirações. O exemplo mais cristalino de nacionalismo musical, contudo, não surgiu num país governado por um império opressor. A Rússia em si era um grande império, mas historicamente sentia-se inferior à Europa ocidental em matéria de cultura. A música europeia fora importada para a Rússia por e para a aristocracia; a única música autenticamente russa era a tradição popular.
O catalisador da mudança na Rússia foi Mikhail Glinka. Sua ópera Uma vida pelo czar lembrava Rossini no estilo, mas evocava as melodias folclóricas que ele ouvira na infância. O chamado “Grupo dos Cinco”, surgido em meados do século XIX, radicalizou o nacionalismo russo. Mily Balakirev compôs um poema sinfônico, Rússia, e Aleksandr Borodin escreveu Na Ásia central. Um terceiro membro do grupo, Modest Mussorgsky, não era um músico formalmente treinado; sem familiaridade com as formas ocidentais, compôs música que fez amplo uso de harmonias populares. Mais tarde, compositores como Nikolai Rimsky-Korsakov também fariam uso de melodias populares e influenciariam futuras gerações de compositores, entre eles Igor Stravinsky.
Os compositores nacionalistas tchecos eram menos antiocidentais que seus pares russos. Pretendiam afirmar sua diferença cultural em relação ao Império Habsburgo austríaco, que dominara a Boêmia e a Morávia durante séculos, suprimindo a língua e a cultura tchecas. Bedrich Smetana, Antonín Dvorák e Leos Janácek contribuíram para o desenvolvimento do estilo musical nacional de seu país. Má Vlast, ciclo de poemas sinfônicos de Smetana, é não apenas o retrato da paisagem tcheca, como também uma evocação da cultura e da história do país. A seção “Tábor e Blanik” inclui um coral tcheco hussita (do movimento protestante fundado por Jan Hus no século XV), “Aqueles que são guerreiros de Deus”. A situação húngara difere da tcheca na medida em que sua música folclórica fora representada (ou mal representada) pelos compositores românticos, como Franz Liszt, Johannes Brahms e Joseph Joachim. Apenas no século XX, Béla Bartók e Zoltán Kodály começaram a coletar música folclórica húngara mais sistematicamente e a fazer uso dela de forma mais autêntica.
Laços políticos e culturais entre países germânicos e escandinavos eram tradicionais; o dinamarquês Niels Gade, por exemplo, passou um bom tempo estudando e, depois, regendo em Leipzig. Ficou a cargo de Rikard Nordraak e Edvard Grieg (que também estudaram em Leipzig) criar uma arte musical peculiarmente norueguesa. As suítes Peer Gynt, de Grieg, foram compostas como música incidental para uma peça de Henrik Ibsen. Na Finlândia, a música de Jean Sibelius mostra tendências nacionalistas quando cita a música folclórica finlandesa.
Na América do Norte, grande parte da música do século XIX ignorou o material folclórico, embora a Indian Suite de Edward MacDowell fizesse uso de melodias indígenas norte-americanas. Charles Ives era um compositor mais caracteristicamente norte-americano, e suas citações musicais desse universo fornecem um retrato bastante evocativo e peculiar de sua infância na Nova Inglaterra. Mais tarde, Aaron Copland iria criar uma música norte-americana facilmente identificável, apropriando-se de estilos populares como o hoedown em Appalachian Spring.
Um renascer da música folclórica deu-se simultaneamente na Espanha e na Inglaterra no início do século XX. Compositores como Enrique Granados e Isaac Albéniz na Espanha e Ralph Vaughan Williams na Inglaterra usaram a música popular de seus respectivos países sob formas nostálgicas similares.
Principais compositores
Mikhail Glinka (1804-1857) é considerado o pai da música russa, tendo produzido a primeira ópera russa bem-sucedida. Ao rejeitar as formas e a harmonia tradicionais alemãs em prol de uma música desenvolvida a partir de melodias à moda popular, suas obras mostram exuberância rítmica, cromatismo com toques orientais e clareza vigorosa das texturas orquestrais, modelos de uma sonoridade russa que inspirou sucessivas gerações de compositores. As óperas Uma vida pelo czar e Ruslan e Ludmila são seus trabalhos mais famosos.
Nikolai Rimsky-Korsakov (1844-1908) também buscava desenvolver uma arte musical autenticamente russa. Sua música, em grande parte baseada em temas do folclore russo, é famosa por sua orquestração brilhante e colorida. Foi mais tarde um professor importante, tendo Sergei Prokofiev e Igor Stravinsky entre seus alunos. A suíte Sheherazade, em quatro movimentos, e a peça orquestral Capricho espanhol se destacam na sua produção.
A música de Bedrich Smetana (1824-1884) tornou-se sinônimo do nacionalismo tcheco e influenciou imensamente gerações posteriores de compositores, entre eles Dvorák. Nascido na Boêmia, então controlada pela Áustria, Smetana escreveu diversas óperas e um magnífico ciclo de poemas sinfônicos descrevendo sua terra natal, chamado Minha pátria. Seu estilo musical, embora de clara tradição romântica, é sedutoramente melódico e direto.
De todos os nacionalistas do século XIX, Antonín Dvorák (1841-1904) talvez tenha sido o mais bem-sucedido na absorção de elementos da música folclórica nacional num sofisticado idioma clássico. Enaltecido como paladino da música eslava, também passou vários anos nos EUA, onde suas ideias sobre música nacional tiveram profundo impacto em uma geração de compositores. Suas obras mais conhecidas são a Sinfonia nº 9, em Mi menor, que recebeu o apelido “Do novo mundo”, o Concerto para violoncelo e orquestra e as belas Danças eslavas.
Edvard Grieg (1843-1907) é, sem dúvida, o maior compositor da Noruega, sendo responsável, ao lado de Sibelius e Nielsen, por colocar a Escandinávia no mapa musical. Sua exploração da música folclórica norueguesa e colaborações com escritores conterrâneos ajudaram-no a desenvolver um estilo abertamente nacionalista em espírito. Em geral mais à vontade nas formas de pequena escala, escreveu canções, peças para piano e obras de câmara. Na sua produção se destacam o popular Concerto para piano e orquestra e as famosas suítes Peer Gynt.
Carl Nielsen (1865-1931) foi um dos compositores sinfônicos mais importantes do século XX, e decerto o compositor dinamarquês mais famoso da história. Desenvolveu um estilo composicional bastante pessoal, ora romântico e apaixonado, ora agressivo e quase atonal, mas sempre profundamente carregado. Além de seis sinfonias, compôs três concertos, duas óperas, quartetos e um conhecido quinteto de sopros.
Jean Sibelius (1865-1957) alinha-se ao lado de Mahler e Nielsen como um dos mais importantes sinfonistas do século XX. Suas primeiras obras, geralmente fervorosamente nacionalistas, tinham um idioma romântico maduro, mas nos últimos anos desenvolveu uma linguagem musical bastante original, caracterizada por uma harmonia lenta e peculiar e, às vezes, rigorosa orquestração. Compôs diversos poemas sinfônicos baseados em temas nórdicos, como Kullervo, Tapiola e Finlândia. Sua Sinfonia nº 5, Op. 82, é a mais conhecida e acessível.
Para muitos, Edward Elgar (1857-1934) é associado ao otimismo imperial britânico do fim das eras vitoriana e eduardiana. Porém suas obras são mais complexas do que parecem. Sua música abrange não apenas a sonoridade confiante de suas obras populares, como a efusão espiritual e íntima de um músico profundamente sensível. A marcha Pomp and Circumstance, o Concerto para violoncelo e as variações Enigma são suas obras-primas.
Claude Debussy (1862-1918) surgiu como um inovador radical, mudando sozinho o curso da música francesa. Dissolvendo regras e convenções tradicionais numa nova linguagem de possibilidades insuspeitadas em harmonia, ritmo, forma, textura e timbre. Debussy criou um rico acervo de obras que deixou marca indelével na música do século XIX, como Estampes, Prélude à l’après-midi d’um faune, a ópera Pelléas et Mélisande e La Mer.
Na trilha de Debussy, Maurice Ravel (1875-1937) criou um estilo francês original que rompia com o conservadorismo romântico. Um misto de refinamento sóbrio e exotismo luxuriante, sua obra caracteriza-se por uma elaboração requintada. Tal marca por vezes ofuscou o caráter comovente de suas melodias. Além do Bolero, sua obra mais famosa, destacam-se os balés La Valse e Daphnis et Chloé e o Concerto para piano em Sol maior.
Ottorino Respighi (1879-1936) é o primeiro compositor italiano depois de Alessandro Scarlatti cuja fama não reside principalmente na ópera. Foi importante membro da chamada “geração de 1880” que tentou revitalizar a música italiana, remontando a suas origens no Renascimento e no Barroco. Os poemas sinfônicos Pini di Roma, Trittico Botticelliano e Fontane di Roma e a suíte orquestral Gli uccelli são suas obras-primas.
Incrivelmente prolífico, Heitor Villa-Lobos (1887-1959) era um personagem exuberante. Fez um profundo estudo da música folclórica brasileira, que assimilou num estilo musical eclético. Esse conhecimento veio a constituir a base das reformas do sistema de educação musical no Brasil sob o governo nacionalista da década de 1930. Na sua produção se destacam Os Choros, o Concerto para violão, os Cinco prelúdios para violão e as Bachianas brasileiras.
Joaquín Rodrigo (1901-1999) está entre os compositores espanhóis mais importantes do século XX. Seu estilo acessível trazia fortes ecos do folclore espanhol. A influência de Rodrigo foi grande e, embora tenha composto em vários gêneros, é lembrado, sobretudo, pela música para violão. Cego desde a infância, sua prodigiosa obra foi escrita em braile. Suas obras-chave são o magnífico Concierto de Aranjuez e a Fantasía para um gentilhombre.
Um dos primeiros compositores dos Estados Unidos a firmar seu nome fora do país, Edward MacDowell (1860-1908) era considerado o mais importante compositor norte-americano da época. Como pianista e professor, fundou o Departamento de Música da Universidade de Colúmbia, e, com a mulher, a colônia de artistas MacDowell, que ainda existe. A Suíte nº 2, chamada Indígena, e a série Woodland Sketches para piano são suas obras-primas.
Outros mestres da música nacionalista também merecem destaque pela valorização da arte de seus países e regiões, como Alexander Borodin (russo, 1833-1887), Modest Mussorgsky (russo, 1839-1881), Leos Janácek (tcheco, 1854-1928), Alexander Scriabin (russo, 1872-1915), Sergei Rachmaninov (russo, 1873-1943), Max Bruch (alemão, 1838-1920), Hugo Wolf (austríaco, 1860-1903), Isaac Albéniz (espanhol, 1860-1909), Max Reger (alemão, 1873-1916), Carl Orff (1895-1982), Ralph Vaughan Williams (inglês, 1872-1958), Gustav Holst (inglês, 1874-1934), Camille Saint-Saëns (francês, 1835-1921), Gabriel Fauré (francês, 1845-1924), Emmanuel Chabrier (francês, 1841-1894), Pietro Mascagni (italiano, 1863-1945), Ferruccio Busoni (italiano, 1866-1924), Ruggiero Leoncavallo (italiano, 1857-1919), Enrique Granados (espanhol, 1867-1916) e Manuel de Falla (espanhol, 1876-1946).
O próximo e último artigo sobre a história da música abordará a produção musical a partir de 1900, desenvolvida numa ampla variedade de estilos, muitos deles fortemente influenciados por mudanças ideológicas, sociais e tecnológicas. Embora os primeiros compositores tenham tentado adotar e elaborar estilos consagrados, grande parte da música do século XX aponta – pelo menos na superfície – para uma ruptura com o passado.
(*) Frederico Toscano trabalha no Ministério da Ciência e Tecnologia, tem mestrado em Administração e é autor do blog Euterpe (http://euterpe.blog.br), especializado em música clássica.
Muito bom, seu escrito, Frederico Toscano,(desculpe a intimidade). Em meio a tantos e atuais artigos sobre “as lambanças” de nossa democracia e de nossos sempre democratas dos dois lados; um artigo para aliviar. Traga mais. Leitores agradecem.