Helga Hoffmann

De hoje, 27 de janeiro, até 2 de fevereiro, os chineses celebram seu Ano Novo. É uma celebração da família. Tradicionalmente era um festival da primavera, celebrava-se o início de um novo ciclo das tarefas na lavoura, e desejava-se uma boa colheita. Hoje em dia é a celebração de um novo ano de trabalho e deseja-se lucro e sucesso nas diferentes vocações. Mas continua uma ocasião de encontro da família. E assim é sempre um período de deslocamento de multidões, as estações ferroviárias cheias de gente indo de um lado para outro para visitar parentes, e muitos viajam para o campo ou a aldeia. A ceia da véspera de ano novo, de reunião da família, é a refeição mais importante do ano.

Ruas e casas são decoradas de lanternas vermelhas. E neste Ano do Galo, imagens e bonecos do animal estão por toda parte. O vermelho é considerado cor que afugenta a má sorte. E se aqui há quem ache que é preciso começar o ano de roupa nova, vi este ano, na China, propaganda de calcinha e sutiã vermelhos, pois convém entrar no ano novo de roupa íntima vermelha. Trocam-se presentes, da maneira que lembra o hábito dos presentes natalinos em países ocidentais. Mas (e não sei se é tradição ou pragmatismo) há o costume de presentear um envelope vermelho com algum dinheiro, só para crianças e aposentados, considerado presente inadequado para adultos que têm o seu trabalho. Será comum em 2017 o presente de uma moeda de ouro puro com a figura do galo, de um lote cunhado na Austrália para a ocasião.

Este ano os presentes que mais chamam a atenção de todo o mundo são os que o americano Donald Trump está dando a seu colega chinês Xi Jinping. O primeiro presente à China foi dado no primeiro dia de trabalho do Presidente Trump, quando este assinou decreto encerrando a participação dos Estados Unidos na Parceria Transpacífica (TPP na sigla americana), um amplo acordo comercial negociado com mais de uma dezena de nações. A TPP ainda não havia sido submetida a voto no Congresso americano e as perspectivas de aprovação eram ínfimas.

O populista que não chegou a candidato, Bernie Sanders, havia se juntado a Trump na campanha eleitoral, descrevendo a TPP como projeto da elite contra o americano comum, e no fim também Hillary Clinton se pusera a criticar o pacto comercial. A Câmara de Comércio dos Estados Unidos defendia a aprovação do acordo não só pela criação de empregos, mas por impor barreiras às ambições da China, que ficara fora da TPP. Era parte de uma estratégia de reafirmar a influência americana na Ásia contrabalançando a da China. Reduzia tarifas, e ao mesmo tempo implicava o cumprimento de rígidos padrões internacionais nos contratos de mão de obra e da propriedade intelectual. Segundo o ex-presidente Obama, que passou anos negociando a TPP, com especial apoio do Japão e da Austrália, os Estados Unidos não deviam deixar que a China ditasse as regras da economia global.

Ao abandonar a TPP os Estados Unidos permitem à China preencher o vazio. Desde a eleição de Trump, as Filipinas, Singapura e Malásia já passaram ao acordo alternativo proposto pela China, a Parceria Econômica Abrangente Regional, que também reduz tarifas, mas não tem as mesmas regras da TPP, e redireciona o comércio na direção da China. É bem possível que alguns dentre os demais países tomem o mesmo caminho. Como disse o Primeiro Ministro da Nova Zelândia (país depositário do acordo) no momento em que Trump anunciou a saída dos EUA: “Não temos a opção que a América tem. Seu tamanho lhe dá a possibilidade de sobreviver vendendo coisas para si mesmo.” Vale o mesmo para o Chile e o Peru, vizinhos do Brasil que são signatários da TPP. Especialistas em Washington usaram palavras mais duras: o grande “negociador”, unilateralmente, de graça, entregou à China uma grande vitória.

O decreto seguinte, de imediato, não tem nada a ver com a TPP ou diretamente com a China. Mas leva à renegociação do NAFTA, o Acordo de Livre Comércio do Atlântico Norte, que reúne Estados Unidos, Canadá e México. O fim do NAFTA mudaria os fluxos de comércio, mesmo que não acontecesse da noite para o dia. Como já observaram os mexicanos, “tudo o que compramos dos Estados Unidos podemos comprar noutra parte”, por mais doloroso que seja isso, dados os velhos laços e a proximidade com os Estados Unidos. Questão de preço e custo do transporte. Em 25 de janeiro, Trump assinou um decreto que determina o início da construção do muro entre os Estados Unidos e o México, e outro com medidas de policiamento para identificar e apreender imigrantes sem documentos e deportá-los.

Por ora o pedaço de muro que resta por ser fechado, a um custo estimado de 11 bilhões de dólares, ainda não tem previsão no orçamento nem projeto, mas aos jornalistas o Presidente Trump declarou que a construção começa em poucos meses e que de algum modo conseguirá cobrá-la dos mexicanos (até as remessas dos imigrantes foram lembradas). Estima-se que há uns 11 milhões de imigrantes sem permissão de residência, então se pode imaginar o quociente de medo aumentando com as declarações de que os imigrantes são criminosos e com a afirmação de Trump, no seu primeiro encontro com congressistas, que ele teria vencido no voto popular se não fossem os milhões de imigrantes não autorizados que teriam fraudulentamente votado em Hillary Clinton.

Não surpreende, assim, que autoridades mexicanas, pela primeira vez, já falem em sair do NAFTA. O Ministro da Economia Ildefonso Guajardo declarou na TV “Se é para negociar algo que é menos do que temos, não faz sentido permanecer.” O governo mexicano vinha colaborando com os Estados Unidos no combate aos cartéis da droga e contendo os imigrantes que vêm de países mais ao sul e da América Central (que agora, além de tudo, ainda acumula os milhares de cubanos que pretendiam chegar aos Estados Unidos por terra antes que fosse anulada a lei que dava tratamento especial aos que emigravam de Cuba).

O presidente Enrique Peña Nieto pretendia tratar comércio, imigração e segurança de forma interligada, e levar a Trump evidência de que um muro não conseguirá conter o tráfico de drogas, que tem usado caminhos legais. Até porque um prolongado processo de renegociação do NAFTA, pelo período de incerteza que introduz, já traz mais prejuízos para o México que eventuais vantagens a serem negociadas. Agora sofre pressão popular para cancelar sua visita oficial aos Estados Unidos, marcada para 31 de janeiro, e Trump já escalou a agressão ao dizer que, se não vai pagar o muro, o presidente do México não precisa vir. Jorge Castañeda, ex-Ministro das Relações Exteriores, que tem estudos sobre o tema “guerra às drogas”, afirma que o muro dos americanos teria que substituir tudo o que os mexicanos estão atualmente fazendo para ajudar os Estados Unidos nessa área.

Nos Estados Unidos, o comentário crítico mais benigno foi o do militar que lembrou que, se for construído um muro de 8 metros de altura, vai aumentar muito a venda de escadas de 8 metros. De um ex-colega de ONU que ficou em Nova York veio o comentário entre amargurado e brincalhão: “while they commemorate the Year of the Rooster, we here are starting the Year of the Elephant, with de new President acting like an elephant in a china shop”. Quero transmitir a ironia (do humor tristonho de quem sempre defendeu o multilateralismo), mas ela se perde na tradução, pois “china” (com minúscula) é porcelana. Além de que a desordem, a violência e a quebradeira que remetem às patas pesadas do elefante numa loja de porcelanas não afetará apenas as relações dos Estados Unidos com a China. Depois de retirar os Estados Unidos de tratados comerciais, o Presidente Trump se dirige às organizações multilaterais, desde à OTAN até à ONU, com o intuito de subordiná-las à sua agenda ou abandoná-las.

Não para aí o ataque à ordem multilateral. Trump retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris sobre mudança climática que entrou em vigor em novembro do ano passado. Em casa, liberou a construção de oleodutos que haviam sido barrados por proteção ao meio ambiente (e determinou que as tubulações não podem ser importadas). E assim reforçou a liderança global que a China já vinha assumindo nas questões climáticas: a China, como o maior emissor de CO2 (sobretudo por causa do uso do carvão), tem responsabilidade global com o clima, mas é também o maior investidor em infraestrutura sustentável e líder em energia limpa. Cinco das seis maiores fabricantes de painéis solares fotovoltaicos são chinesas e cinco das 10 maiores manufaturas de turbinas eólicas são chinesas. Ano passado os investimentos da China em energia renovável foram os mais altos do mundo. Sua capacidade de construção, segundo uma autoridade como Nicholas Stern, é espantosa: está instalando em média uma nova turbina eólica por hora.

É compreensível, portanto, que Xi Jinping, o primeiro presidente chinês a comparecer ao Forum Econômico Mundial em Davos, tenha se destacado ali como defensor do acordo do clima de Paris e tenha feito um apelo por mais cooperação internacional para enfrentar os problemas globais de hoje. É compreensível, e reflete ao mesmo tempo o avanço e a modernização da China, pois há poucos anos os chineses ainda eram os que mais insistiam em tratamento diferenciado e obrigações menores em todas as reuniões ambientais da ONU.

Ausentes os principais dirigentes dos países desenvolvidos, Xi Jinping foi a estrela do encontro anual de Davos. Em uma “ironia de primeira ordem” (Eric Li, empresário e cientista político de Shangai, no Financial Times), a elite do mundo liberal, defensora da globalização e da integração comercial, está tão perplexa com a maré montante do populismo nacionalista, com as ameaças ao livre comércio de bens e serviços, que convidou o Presidente da China para fazer a apresentação principal. Em contraponto a Trump (sem menção direta) e à intensificação evidente do protecionismo e do abandono do multilateralismo nos Estados Unidos, o presidente da segunda maior economia do planeta destacou-se como o grande defensor da globalização. Globalização econômica, convém lembrar, e sobretudo defesa de regras acordadas para o comércio internacional e os investimentos: “… ninguém sairá vencedor em uma guerra comercial.” E mais: a China não pretendia desvalorizar o seu câmbio. Insistiu que a globalização, um fenômeno econômico, não podia ser responsabilizada pela turbulência regional e as ondas de imigrantes que estavam preocupando a Europa.

É cedo para entender a China como o novo líder mundial da globalização. Já começou a enxurrada de artigos de Foreign Affairs, por exemplo, tratando de nos explicar porque a China não pode ser líder global. E apesar de a China ter sido durante os últimos 16 anos um membro da Organização Mundial do Comércio tão bem ou tão mal comportado quanto qualquer outro, os países do Ocidente e o Japão se recusaram a reconhecer a China como “economia de mercado” como tinham prometido quando a China festejou, nacionalmente, sua entrada na OMC em dezembro de 2001. Está claro que essa recusa a aceitar a China como economia de mercado não vem de uma discussão teórica do que seja, rigorosamente, uma “economia de mercado”, e sim, da resistência a tratar as exportações chinesas em igualdade de condições nas regras da OMC sobre dumping.

De todos os modos, a ideia de globalização dos chineses não é necessariamente a mesma que a das elites liberais em Davos. Fato é que há pelo menos vinte anos ouvimos que a globalização beneficia o conjunto da população, em cada país e no mundo, mas que há setores que ficam para trás, que há fábricas que desaparecem, e que há perdedores. Em nenhum outro país a globalização foi aproveitada como na China para tirar 600 milhões da pobreza. Em tese, a cooperação internacional permitiria compensar os perdedores da globalização. Demorou demais? Neste momento agudo de transição há muitos palpites sobre o futuro do sistema internacional. Por enquanto, o que está claro é que a ordem global está fora de ordem.

***