Elimar Pinheiro do Nascimento (*)
Para alguns ele sempre foi execrável. Absolutamente inaceitável. Por sua trajetória, por sua simulação, por seus compromissos e seus segredos. Dele, estes nada esperavam. Era o aprofundamento do desastre, o caminho da destruição de bens maiores, como a democracia.
Para outros, era a única saída. A última esperança institucional. O risco menor, a possibilidade de se obter o rumo perdido. Apesar de sua trajetória, de seus amigos e de seus segredos. Não contava tanto a esperança, a expectativa, mas a possibilidade de evitar o pior, evitar o desastre. Mas sempre em dúvida. Seria realmente possível?
Finalmente, para outros, era a mudança possível e necessária. A possibilidade de introduzir as reformas indispensáveis e sempre proteladas. Sua antipatia era uma vantagem, sua impopularidade, um trunfo. Impopular por impopular, que fizesse o que tinha que ser feito, na esperança do reconhecimento posterior. Era o homem da reforma, apesar dele mesmo, de sua trajetória e de seus segredos. As circunstâncias o levavam à porta da História.
Alguma destas imagens tem possibilidade de persistir no tempo? Aparentemente não. A História nos dirá. Ou talvez revele o principal papel, o motivo maior, não explicitado. Afinal, ele nunca foi talhado para grandes responsabilidades, nunca foi treinado nas grandes estratégias. Nunca foi eleito a cargo majoritário. Dirigiu por anos um partido ônibus, com fortes dirigentes regionais, e poucos nacionais. Mas solidários em suas diferenças, pois vencia sempre o interesse maior, de guardar pedaços do poder e deles se beneficiar. Benefício que se estendia a todo o generalato partidário, embora de maneira desigual. Afinal, também entre os generais existe hierarquia.
Por enquanto, a trajetória é simples a contento. Uma direção econômica que parece dar seus primeiros resultados positivos, longe da recuperação da boa dinâmica econômica, mas pouco a pouco distante do percurso ladeira abaixo, com PIB cada vez mais negativo, se afirma. Uma luz parece despontar no fim do túnel, mas tênue, sempre ameaçada pela crise política.
A trajetória é arriscada. Uma direção política que visa a manter a maioria no Parlamento, para assegurar as reformas prometidas, por enquanto é garantida. Mas com seus custos, não apenas de desgaste interno, mas na opinião pública, a arena que o mandatário entende e controla menos. De toda forma, a imagem do reformista parece desenhar-se.
Persistem, contudo, fortes ameaças no horizonte. A possibilidade da crise que nasce do Parlamento, em especial na Câmara dos Deputados, com a perda da maioria e as votações contrárias, por enquanto, está afastada, mas sem ancoradouro firme. Qualquer passo em falso, qualquer nova tempestade pode ressuscitá-la, com todas as suas consequências. Embora, neste campo, o mandatário tenha escola, tenha habilidade reconhecida. No entanto, em determinadas circunstâncias, a habilidade, por maior que seja, pode ser insuficiente. Pois não basta conduzir o Parlamento, é preciso driblar o Judiciário e o Ministério Público, e sobretudo, a mídia e a opinião pública. Basta o arranque da economia não pegar, os escândalos aumentarem, as ruas se manifestarem, e os atores começam a assumir outros papéis.
O perigo principal, para o nosso personagem, está nas ruas, alimentadas pela mídia e, particularmente, pelos desacertos provenientes da malandragem política, para salvar a si e aos amigos das denúncias, dos processos, da condição de réus. Conta a seu favor a lentidão clássica, estudada e praticada há muitos anos, da Corte Suprema. O silêncio de outros personagens, a covardia de alguns outros. Mas também a formação, nas instâncias superiores, de uma aliança contra o inimigo principal, o combate à corrupção, da qual sempre viveu a classe política, pois sem ela não pode sobreviver. Por trás desta trajetória visível esconde-se hoje esta batalha, mais importante, essencial à sobrevivência, não apenas do mandatário ou de seus amigos, mas de sua classe política. Por trás da aparência dos fatos mais publicizados da luta pela recuperação da economia e pela realização de reformas, necessárias a ela, esconde-se a verdadeira luta, aquela que interessa à sobrevivência desta classe política. E da qual o mandatário maior do País foi ungido como condutor, por situação e oposição. E talvez seja com esta roupagem que ingresse na História.
Por trás do combate reformas x não reformas, que reproduz a clássica contradição entre liberais e conservadores da época imperial, estes agora reforçados pela velha esquerda, que o senador Cristovam Buarque prefere denominar de exquerda, esconde-se algo mais essencial, a possibilidade ou impossibilidade da renovação política. Não apenas de pessoas, de atores, mas da maneira de se fazer politica, da própria definição do campo da política: espaço de representação dos interesses da Nação e de resolução legitima dos seus conflitos, fortalecendo as regras democráticas, as instituições e a coesão social, versus a maneira de ganhar dinheiro, malversar os recursos públicos, privatizar o Estado, aprofundando a desigualdade. A vitória do combate à corrupção é a derrota da classe politica dominante, sua morte, como segmento corporativo.
O mandatário parece jogar um jogo perigoso, mas necessário aos seus interesses, optando por impedir que a lavagem do campo politico se faça e, para isso, reunindo amigos e adversários. Afinal, todos os grandes partidos e grandes chefes políticos estão hoje interessados em encerrar este capítulo “desagradável” que se chama Lava Jato. E a urgência se faz presente, pois sua defesa se enraíza na sociedade, e os atores dispostos a levar a luta às suas últimas consequências tendem a reproduzir-se no País, no âmbito da Justiça, da Polícia Federal e do Ministério Público, desbordando para o campo político. É preciso destruí-la, antes que os “Moros” se multipliquem e a opinião repudie esta classe politica envelhecida e corrupta.
Assim, duas metas convivem no seio do atual governo: dar um rumo à economia e destruir a luta contra a corrupção. Esta é a frente principal, o objetivo central, mas sem a primeira não se realiza. Esta disposição de objetivos, implícitos e explícitos, explica certos atos aparentemente contraditórios do mandatário supremo. Afinal, a nomeação do amigo ao cargo de ministro e de outro amigo ao assento no Corte Suprema são atos absolutamente coerentes no combate principal. E de seu ponto de vista está correto. Afinal, para ingressar na História como o Presidente Reformista, é preciso sobreviver como político. E, para isso, vale tudo. Sobretudo quem tem a chance de ingressar na História, não como o salvador da Pátria, mas de sua classe. Um papel que não esperava, mas a sorte lhe entregou nas mãos. Terá a sagacidade suficiente? Aparentemente sim, na medida em que, tendo ao seu lado os maiores lideres políticos, de forma clara ou na surdina, seja possível dividir a opinião pública, neutralizar as manifestações de protesto, e assegurar as eleições em 2018, que reproduzirão o aparato existente. Salvo se…
(*) Sociólogo, professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília
Destruir a luta contra a corrupção salvando a classe política é o preço para estabilizar (se estabilizar) a economia e fazer as reformas ditas necessárias? Que encruzilhada, heim Elimar?
Muito bom artigo, Elimar. Bem escrito e com uma análise perfeita das contradições do momento político brasileiro. Diante das “duas metas” que, segundo sua análise, convivem no atual governo – “dar um rumo à economia e destruir a luta contra a corrupção ” – penso que nossa posição tem sido e deve ser (1) apoiar as reformas que ele está promovendo no Congresso e que podem são fundamentais para recuperar a economia (de imediato e urgente a reforma da previdência); (2) se engajar na defesa da Operação Lava Jato no combate à corrupção que tomou conta do pais mesmo com o risco de desestruturar o jogo político no Brasil e inviabilizar ou adiar as reformas. Não existe primazia nas duas posições. São paralelas e podem até ser contraditórias mas são a base para a reconstrução do Brasil.
Faço coro ao comentário de Sérgio. Não adianta especular sobre a inviabilidade ou a incompatibilidade das linhas de ação e as metas traçadas. Não há alternativa digna do nosso empenho e do nosso esforço.
Eu gostei do artigo. Define dilemas. Mas…E como entra nessa narrativa o pessoal que está ao mesmo tempo contra as reformas e contra o combate a corrupção, o pessoal que está aí a difundir a tese de que quem criou a recessão e o desemprego foi o governo Temer? Esse pessoal que acha que não há um problema fiscal, de excesso de gasto público, que até hoje não entendeu a anatomia do desastre do Brasil, não entende que a maior recessão da história econômica do Brasil, um desemprego de mais de 12 milhões, foram gerados e agravados pelos erros de política econômica e política pública em geral dos últimos governos do PT? O Estado brasileiro está inclusive pagando as viagens de Madame Rousseff para atacar o governo Temer no exterior. Esse pessoal é ao mesmo tempo contra a Lava Jato e contra as reformas, são os fãs de Lula e José Dirceu, que ainda acreditam que os “heróis do povo brasileiro” extorquiram a burguesia para permanecer no poder e ajudar o povo. Ainda não percebem a relação entre corrupção em escala inédita e incompetência, desordem orçamentária, e falta de avaliação e controle de resultados de políticas públicas.
Quando vejo a movimentação política do “fora Temer”, a qualquer pretexto (até mesmo suas ideia tradicionais a respeito do papel da mulher na criação dos filhos e da compra de alimentos) , eu chego a pensar que talvez quem estivesse certo à época era o Senador Aloysio Nunes quando, ainda contrário ao impeachment, disse “deixa sangrar” no momento em que apenas uns poucos mais radicais já pediam o impeachment da mais incompetente e/ou mentirosa dentre todos os Presidentes que o Brasil já teve. Pois só defendi o impeachment depois que Joaquim Levy saiu do governo, e conclui que a permanência de Madame Rousseff só ia levar a um fundo de poço ainda pior, que mais do mesmo só podia resultar em mais do mesmo, isto é, as políticas da Nova Matriz Econômica só podiam resultar em recessão ainda maior e quantidade ainda maior de desempregados.
Se o impeachment da Presidente petista, depois de todo o doloroso processo (doloroso para o país, bem entendido) no fim das contas resultar apenas em “fora Temer” e a recuperação do prestígio de Lula, terá sido inútil o impeachment de Madame Rousseff, que defendi apenas porque a permanência dela significaria um desastre econômico ainda maior do que o que vivemos em 2016. Nesse sentido há uma ordem de prioridades, na minha visão, que é a de conseguir a aprovação, no mínimo dos mínimos, antes de mais nada, da reforma da Previdência tal qual apresentada (ainda que eu preferisse um projeto que incluísse um teto imediato para as super-aposentadorias). As reformas não são pró-governo, como entendem alguns. As reformas são pré-condição para o Brasil voltar a crescer.
O combate à corrupção vai continuar, devagar como é o Judiciário brasileiro, respeitando as leis vigentes, que ainda mantêm o absurdo do foro privilegiado e da prisão especial, e tem mais recursos e liminares que pernas de centopeia (ainda mais agora que o Judiciário interfere sem pejo em áreas que não são de sua competência, por exemplo, ao defender pichadores ou decidindo que empresas aéreas não podem cobrar para transportar mala ). O combate à corrupção continuará, à medida que novos casos são revelados e à medida que se perceba que um Estado desorganizado favorece a corrupção. E em favor de reformas e de modernização do Estado, é bom relembrar que corrupção sempre começa pelo Estado, quando funcionários públicos com poder criam dificuldade para vender facilidade. Um Estado em que a avaliação de políticas públicas seja a norma, em que cada serviço de responsabilidade do Estado tenha prazos de aprovação e de execução respeitados e transparentes (o que impede a “venda” de aprovação mais rápida), um Estado cujo funcionamento não seja um emaranhado de regras e exceções que permitem interpretações divergentes, um Estado menos arbitrário e com regras menos ambíguas e menos exceções às regras, trará consigo menos corrupção e menos contravenção.
Depois de quase dez dias em que não tive tempo para me deleitar com os bons artigos de “Será?”, aproveitei essa manhã de sexta-feira para ler as matérias da semana que se encerra. E nenhuma me deixou tão perplexo quanto a de Elimar. Confesso que achei os comentários que se seguiram – especialmente os de Helga – muito mais percucientes do que o tratamento que o autor deu ao personagem central – que custei muito a entender que era de Michel Temer que se tratava, apesar da foto. Senão, vejamos.
“Para alguns ele sempre foi execrável. Absolutamente inaceitável. Por sua trajetória, por sua simulação, por seus compromissos e seus segredos. Dele, estes nada esperavam. Era o aprofundamento do desastre, o caminho da destruição de bens maiores, como a democracia”. Ora, Michel Temer nunca pontuou alto na escala dos execráveis. Trata-se de uma palavra fortíssima para definir um constitucionalista que, 30 anos atrás, fazia um bom feijão com arroz em São Paulo, tendo criado a Delegacia da Mulher, e dado um freio de arrumação, dentro do possível, ao desmantelo da segurança pública.
Ademais, foi um Presidente da Câmara lhano e correto (de onde o professor tirou que ele nunca ocupou posições de relevo?),cioso das liturgias da função e, se execráveis havia, e posso dar o nome de uma centena, Michel Temer jamais pontuou alto nessa escala. É uma desproporção que sequer a busca de um efeito literário explica. Sem nunca ter sido vestal, jamais foi um biltre. Logo, é incompreensível tanto fel que, não sendo pessoal, só posso atribuir à busca “manquée” de uma boa introdução.
Diz ainda Elimar no parágrafo seguinte que o atual Presidente era para muitos “absolutamente inaceitável”. Pala própria natureza do personagem, ele não combina com esse termo oco. Pelo contrário, a letalidade de Michel Temer reside justamente nesse mimetismo que o ungiu a uma inverossímil vice-presidência por dois mandatos, estando o governo comandado, aí sim, por gente execrável. Se dele ninguém esperava nada – outra inverdade – é bom que se saiba que o PT dele esperou tudo até onde teve juízo.
Como explicar de outra forma que o tenha trazido para sua nau com o fito de criar um mínimo de interlocução com o Congresso? Não fosse Temer e a força de seu partido – uma agremiação lamentável, é verdade, em que o oportunismo campeia – estaríamos afundados no caos com “c” maiúsculo. Imagine uma chapa puro sangue, com um Vice do PT? Estaríamos vivendo um estado de insurreição e sério impasse.
Logo os três primeiros parágrafos falham como introdução confiável ao que se segue. Eles regurgitam uma adjetivação mal calibrada, desculpe dizer. O segundo parágrafo, aliás, gravita em torno de truísmos. É evidente que ele era a única saída. Ou para que serve uma Constituição, mesmo uma Constituição de quinta categoria? Menos mal que o professor admite que o rumo estava perdido. No terceiro parágrafo, por fim, alude à antipatia como trunfo. Isso dá bem o que pensar.
Michel Temer nunca foi antipático a ninguém nesse mundo. Não questiono seu maquiavelismo e sua capacidade de ousar além do que recomenda a boa norma para preservar o capital político de sua agremiação. A ele podemos imputar erros crassos na informalidade excessiva da posse do novo gabinete e em ter apontado um ministério caseiro para tocar a transição. Mas ninguém no Brasil nem no mundo dirá que Michel Temer peca por falta de traquejo pessoal ou social.
Aliás, à “porta da História” ele sempre esteve. Foi a incúria de Dilma Vana que o levou a ser protagonista e a atravessar o umbral. Não quero cansar o leitor com o adensamento dessas reflexões. Mas nunca foi tão difícil terminar um artigo de um respeitável pensador quanto dessa vez. Os três primeiros parágrafos, se brotados da lavra de um de seus examinados de banca, já teriam valido um convite de que este recomeçasse a pesquisa e voltasse com um mínimo de senso de proporção para o próximo exame.
Cordialmente,
Fernando Dourado
Fernando, seus comentários são absolutamente procedentes, e lhes faço coro, como fiz aos de Sérgio. Eu até percebi o que você critica, mas me preocupei mais com as conclusões do trabalho, que não são invalidadas por esses aspectos acessórios. Sobretudo com o dilema final, abordado por Sérgio, e posto em seus devidos termos.
O comentário de Helga e o seu contribuem para enriquecer o tema aflorado pelo autor. E isso é muito bom!
Já que o debate continuou, vou esclarecer em que sentido eu disse que, se a mudança de governo não funcionar para mudar as políticas públicas, talvez estivesse certo o Senador Aloysio Nunes com sua tirada emocional “deixa sangrar”. Traduzo um trecho de opinião no The Economist da semana 28 de março a 3 de abril de 2015, quando Joaquim Levy ainda tentava botar ordem no orçamento. O título desse pequeno editorial é Dealing with Dilma, e sua última frase é a seguinte:
“As instituições do Brasil estão funcionando para detectar e punir crimes que foram cometidos pelo grupo de poder dominante. O impeachment poderia transformar-se em uma caça às bruxas que enfraqueceria tais instituições ao politizá-las. Ms Rousseff e o PT precisam assumir a responsabilidade pela bagunça que fizeram no seu primeiro mandato, ao invés de se tornarem mártires do impeachment. Os brasileiros também estão pagando pelos erros dela. Mas, ao ter Ms Rousseff no cargo, serão mais capazes de perceber que a culpa é das suas velhas políticas, e não das novas. Essa é uma lição importante.”
Talvez. No fim das contas o impeachment foi votado. O que teria sido não é possível saber. Não sabemos se, caso Dona Dilma tivesse sido mantida, a população em geral teria entendido melhor a necessidade de ordenar as finanças públicas e mudar a política econômica. Lembremos que o governo do PT distribuía muito dinheiro do orçamento para “jornalismo”, para “propaganda” e para “cultura” chapa branca. O que está ficando bem claro é que a estratégia atual do PT é exatamente a de se fazer de mártir e obscurecer o sentido das reformas propostas pelo governo Temer.