Duas pesquisas, realizadas e divulgadas recentemente em mídia impressa e em redes sociais, me chamaram a atenção e me motivaram a escrever este artigo, dado que intrínseca e sutilmente relacionam-se com minha linha de pesquisa acadêmica.
Uma delas, feita pela Fundação Perseu Abramo, criada pelo PT (www.fpabramo.org.br), foi elaborada com moradores da periferia de São Paulo, e espalhou-se rapidamente nas redes sociais, ironicamente, não pela mão dos seus autores, mas pelos defensores do liberalismo econômico. Em um desses textos, amplamente compartilhado com o sugestivo título de A Curiosa Pesquisa que Assustou a Esquerda, o autor[1] exulta: “ Acredito que o lulopetismo no Brasil formou mais liberais que toda a Escola Austríaca e a de Chicago juntas.”
Exageros à parte, não deixa de ser surpreendente que, numa amostra de indivíduos que votaram no Partido dos Trabalhadores de 2000 a 2012, com renda familiar mensal de até 5 salários mínimos , tenham sido identificadas percepções político-institucionais tais como (retirada da própria pesquisa): A igualdade de oportunidades deve ser ponto de partida e a defesa do mérito é linha de chegada; o mercado é uma instituição mais crível que o Estado e a esfera privada mais relevante que a pública; ainda assim reconhece-se a importância de um Estado eficaz para reverter impostos em serviços de qualidade e na redução das desigualdades.
A pesquisa ressalta ainda que “….no imaginário desta população , o ‘inimigo’ é em grande medida o próprio Estado ineficaz e incompetente, o que abre espaço para o liberalismo popular, com demanda de menos Estado. “ Finalmente, quase que como uma bela cereja sobre um dulcíssimo bolo, aparece a escola ou os ‘estudos’ desempenhando um papel fundamental, especialmente entre os mais jovens, que consideram a mesma a chave do sucesso para ‘ser alguém na vida’, o que os autores da pesquisa infelizmente classificam como uma sobrevalorização do mérito.
Neste contexto, o morador da periferia paulista vai além: aspira a ter o seu próprio negócio, mas reconhece ser ainda uma realidade distante e, pasmem, como causa desta barreira que sente ao seu empreendedorismo, “assume” – conclusão dos pesquisadores da Fundação Abramo – o diagnóstico das ‘elites’ e ‘classes médias’, e aponta como causas a burocracia e os altos impostos.
Na mesma semana, em Pernambuco, uma pesquisa do Instituto ligado à UNINASSAU, focada no tema de eleições presidenciais e intenções de voto, foi divulgada, introduzindo, na minha avaliação, interessantes elementos ao debate do liberalismo econômico. Números expressivos apontaram Lula em Pernambuco (65%), especialmente no Sertão (90%), como líder absoluto das intenções de voto, se a eleição presidencial hoje ocorresse.
É minha a conclusão, a partir de resultados tão expressivos, que é o Estado forte oposto ao liberal – personificado atualmente na figura do Lula – o que ainda querem (ou de que precisam?) os pernambucanos. Sem conhecer detalhes metodológicos da pesquisa levada a cabo pela UNINASSAU, a partir apenas dos seus resultados finais divulgados amplamente na mídia local, passei a refletir sobre a distância, neste momento, entre a visão do pernambucano e o liberalismo popular identificado nos jovens moradores da periferia paulista..
Longe de querer que essa diferença de pensamento instigue algum conflito, ou justifique classificações simplórias, tais como ricos e pobres, modernos e arcaicos, direita e esquerda, paulistas e nordestinos – esta última completamente inócua, já que grande parte da população da periferia paulista é de nordestinos que para lá migraram, ou deles descende – pretendo medi-la pela régua do pensamento econômico.
Marcada pela colonização ibérica, paternalista e centralizadora, de caráter familiar e patrimonialista, além de por fortes desigualdades em relação a renda e educação, é natural que nossa sociedade não tenha adotado o liberalismo como cultura dominante. Por aqui, o pensamento liberal, ao contrário das sociedades mais igualitárias, sempre foi carimbado como elitista. Se apenas os mais abastados têm acesso às reais oportunidades, não surpreende que este pensamento tenha sido visto como elitista até agora.
A política intervencionista e pró-Estado continua e continuará sendo vista como a tábua de salvação na ausência de reais oportunidades, que só um desenvolvimento econômico sustentável traz. Em Pernambuco, especialmente nas regiões do Agreste e Sertão, para falar em desenvolvimento econômico necessariamente temos que falar em Recursos Hídricos. No nosso Estado, a água é um fator escasso e limitante para o desenvolvimento.
Grandes investimentos públicos em obras de infraestrutura hídrica têm sido realizados, desde os açudes do DNOCS, a grande maioria com recursos federais, e são necessários – a tal reversão dos impostos para diminuir as desigualdades mencionada no liberalismo popular (social?) dos jovens de São Paulo. O caso dos projetos de irrigação é ilustrativo. Sessenta e sete por cento dos projetos de irrigação do Nordeste são públicos, contra apenas 6% no restante do país. Isto devido aos altos custos de investimentos em infraestrutura, derivados das condições mais difíceis de acesso à água.
Atualmente, a maior obra hídrica de Pernambuco em construção, a chamada Adutora do Agreste, para a qual recentemente foram liberados recursos, bem como transferidos outros realocados do Ramal do Agreste (http://blogs.ne10.uol.com.br/jamildo/2017/04/05/ministro-confirma-transferencia-de-recursos-do-ramal-para-a-adutora-do-agreste/), deverá interligar três importantes bacias do Estado – Capibaribe, Ipojuca e Una – -e levar as águas do São Francisco a 68 municípios pernambucanos.
Essas obras de engenharia hídrica viabilizam e regularizam o suprimento do recurso, temporal e espacialmente, e constituem-se numa estratégia conhecida como gestão de oferta, extremamente necessária no nosso Estado, mas não suficiente.
Em economias de maturação da água, caracterizadas tanto pelo aumento da escassez quanto pelo aumento da quantidade de transferências de água, a gestão de demanda, através da otimização do seu uso, torna-se mais importante.
Recente relatório do Banco Mundial (WORLD BANK GROUP, 2016) sobre os impactos das mudanças climáticas na segurança hídrica aponta, como uma das políticas prioritárias para auxiliar os países e regiões a desenvolver economias resilientes a mudanças do clima e à escassez hídrica, a identificação do ótimo uso da água, através de um melhor planejamento e incentivos adequados.
Esta otimização, segundo o mesmo relatório, vai requerer as melhores formas de alocar os recursos hídricos escassos entre os setores econômicos, transferindo-os para usos que agreguem um maior valor para a sociedade, ao mesmo tempo assegurando acesso aos menos favorecidos e protegendo o meio ambiente. Para isso, planejamento e regulação especialmente usando instrumentos econômicos serão importantes. Fazer isso não é trivial, e dependerá em grande medida da credibilidade das instituições, das leis e especialmente das políticas públicas de águas estabelecidas. Muito dependerá de como tais políticas serão desenhadas e implementadas.
Estas políticas devem ser avaliadas em função das implicações econômicas derivadas das decisões de alocação de água que incentivam. Por exemplo, no caso da agricultura irrigada, recentes resultados de modelos econômicos globais vêm mostrando que a escassez de água local pode ser intensificada por meio de exportações de produtos agrícolas, especialmente daquelas culturas intensivas em água, ou atenuada por meio de importações das mesmas (Biewald et al., 2014). Os resultados mostraram que países onde o comércio internacional piora a escassez têm preços de água para a irrigação não compatíveis com sua disponibilidade local.
Além da decisão de alocação da água entre culturas, incentivos econômicos podem influenciar na alocação do recurso entre os diferentes setores produtivos. Assim, setores mais intensivos em água podem ser inviabilizados diante de políticas públicas que valorem adequadamente o recurso escasso, a menos que invistam fortemente em tecnologias que aumentem a eficiência no uso. Ao mesmo tempo, setores menos intensivos em água, tais como turismo e tecnologia, podem passar a ter vantagens comparativas. O exemplo da Califórnia, o Estado com maior renda per capita americano e ao mesmo tempo mais seco, mostra que, aliando-se uma infraestrutura hídrica a uma gestão de demanda adequada, pode-se incentivar a agricultura irrigada a adotar culturas não intensivas em água, como a uva, bem como favorecer setores pouquíssimo intensivos em água, como tecnologia e entretenimento.
O “sonho” do pesquisador paulista Miguel Nicolelis, de implantar escolas de ciência no semiárido e usá-la – a ciência – como agente de transformação social, se “sonhado” fosse por nordestinos e suas lideranças, poderia viabilizar o desenvolvimento, não só de uma economia agrícola com bases científicas, mas também de polos de tecnologia na região, mesmo com pouca água. “O talento humano existe em todos os lugares, o que não existe são as oportunidades para que esses talentos possam mostrar suas aptidões.”
Bom, parece-me que, a partir da fala do Prof. Nicolelis, voltamos ao ponto de partida: o da existência ou não de oportunidades para uma mudança de paradigma. Semana passada, boas novas vieram da periferia de São Paulo. Se soubermos gerir adequadamente a valiosa água que virá do Velho Chico, no futuro elas poderão vir de Pernambuco, mais precisamente do semiárido…
[1] Heitor Machado em 28 de Março de 2017, disponível no blog do Instituto Liberal.(www.institutoliberal.org.br/)
Algumas certezas e alguns sonhos. Um belo texto de Márcia Alcoforado.
Obrigada Helga, vindo de vc me sinto bastante lisonjeada !Abs.