Morreu enfim meu imortal preferido: Antonio Candido. Foi tão longevo e lúcido que já me parecia ser de fato imortal. Devo a ele o mais importante encontro intelectual de minha vida. Foi quando o visitei em 1995. À época era amigo de muita afeição e circunstância de Walnice Nogueira Galvão, a mulher mais culta e erudita que já conheci. Antonio Candido deixou uma legião de discípulos de alta qualidade intelectual, mas os dois mais importantes são sem dúvida Roberto Schwarz e ela. Por isso muitas vezes falamos com admiração sobre ele: eu apenas sobre a obra, tão decisiva na minha vida que determinou minha migração das letras para a sociologia da literatura, e ela sobre o homem e a obra. Difícil, talvez impossível, decidir entre o que ela mais venerava e venera. Poderia ter chegado a ele através de Walnice. Mas um certo tipo de timidez ou insegurança sempre anulou qualquer desejo expresso de minha parte.
Por fim, anos mais tarde, acabei visitando-o graças à mediação de José Luiz Passos, sempre à vontade para procurar e seduzir os que admirava e desejava conhecer. Conversamos durante 4 ou 5 horas. Ele e d. Gilda me deixaram tão à vontade que conversamos em tom espontâneo e prazeroso, pelo menos para mim, levados pelo fluxo arbitrário da interlocução associativa. Impressionaram-me seus modos cavalheirescos sem qualquer vinco de afetação ou gosto de brilhar. São assim os que de fato sabem no sentido plenamente intelectual e ético do termo, isto é, aqueles que convertem o conhecimento em experiência ou modo de ser. Antonio Candido prescindia do gosto de impressionar porque era o que era, era o que se tornou de forma lúcida, harmoniosa e coerente.
Devido às razões acima sugeridas, Antonio Candido foi um dos raros intelectuais que me impressionaram não só através da obra, que já conhecia de muita leitura e releitura, mas através da sutil apreensão de uma correspondência entre o autor e a obra, entre o texto e a vida, expressão que dá título a um dos vários volumes de ensaios enfeixados com o propósito de prestar-lhe justa homenagem.
Aludindo de passagem a alguns pontos que retive na memória do nosso encontro, lembro-me do meu desconcerto quando me declarou que a obra que gostaria de ter escrito era Casa-Grande & Senzala. Alongou-se em comentários sobre Gilberto Freyre, inclusive de caráter pessoal, num momento em que a reavaliação da obra deste não estava ainda consolidada, sobretudo nos arraiais uspianos. Neste contexto, não podia deixar de animá-lo a evocar memórias dos modernistas e intelectuais uspianos que conheceu intimamente: Mário e Oswald de Andrade, Drummond (este com muita reserva, pois era por temperamento quase inacessível), Paulo Emílio, Décio de Almeida Prado e Ruy Coelho. De Mário revelou-me algo que me causou forte decepção, pois então era o intelectual brasileiro que eu mais admirava, tanto a obra quanto o autor e o homem desvelado pela vasta correspondência e outras fontes íntimas.
Segundo Antonio Candido, no auge da perseguição política que Agamenon Magalhães moveu no Recife contra Gilberto Freyre, um dos mais veementes e corajosos críticos do interventor em Pernambuco, Sérgio Buarque de Holanda tomou a iniciativa de encabeçar um movimento de abaixo-assinados como instrumento de pressão política em defesa de Gilberto Freyre. Mário de Andrade recusou-se a assinar o documento. Isso me causou grande decepção no momento em que ouvi a história narrada por Antonio Candido.
Tão à vontade estava que lá pelas tantas incorri numa séria inconveniência. Somente a civilidade e a discrição do casal explicaria o silêncio discreto com que ouviram o que passo a relatar. Falando livremente de livros e escritores que influenciaram minha experiência de leitor, mencionei a admiração que dedico a Paulo Francis e Millôr Fernandes. De passagem, assinalei o significado que o semanário O Pasquim exerceu sobre a minha juventude no auge dos anos de chumbo da ditadura. Ora, poucos anos antes de 1995 houve um incidente intelectual que com certeza feriu Antonio Candido de forma talvez irremediável.
Situando o incidente, um grupo de intelectuais uspianos, todos discípulos de Antonio Candido, gravou e publicou na revista Remate de Males uma longa entrevista, mesclada a passagens de livre debate, sobre a emergência de um conjunto de romances de cunho realista renovado pela experiência da ditadura e da abertura política e cultural. O entrevistado era Davi Arrigucci Jr. Também participavam João Luiz Lafetá, Carlos Vogt e outros que agora esqueço. Comentando essa produção inusitada, que incluía Em câmera lenta, Quatro-olhos, O que é isso, companheiro?, Davi deteve-se na crítica severa a Cabeça, romance inaugural da trilogia de Paulo Francis. Este prontamente veio a público com um dos seus artigos mais brutais e injustificáveis que o leitor possa imaginar. Além do tom grosseiro, partiu para o ataque em tom puramente pessoal. Seu alvo, que nada tinha a ver com a história, era precisamente Antonio Candido. Soltou os cachorros em tom totalmente inqualificável. Antonio Candido e seus discípulos silenciaram. Que mais restaria dizer contra um polemista que por vezes chegava às raias da brutalidade possessa?
Somente alguns dias depois da visita, refletindo sobre ela, dei-me conta do quanto fui desastrado. Como já frisei, Antonio Candido e d. Gilda ouviram-me em silêncio. Depois a conversa retomou seu tom ameno, novamente prazeroso. Retirei-me já depois das 19h. Chovia uma chuva imprevisível em São Paulo. Prontamente, Antonio Candido me deu um guarda-chuva novinho de presente. Insisti em recusar, aleguei não haver necessidade. Sorriu com aquele ar doce e sereno, porém firme e enérgico, quando necessário, e me disse: “É para você. Tenho aqui outros justamente para presentear meus visitantes imprevidentes”. Despedi-me de alma leve e lavada e continuei lendo e relendo a obra única de Antonio Candido. Tenho-a, aliás, integralmente nas minhas prateleiras. Sua obra crítica é sempre agudamente plástica, inteligente e sensível. Ela está à altura da melhor crítica que já li em algumas línguas escrita pelos melhores críticos de muitas nacionalidades que já li e prosseguirei lendo enquanto tiver vida e lucidez. Antonio Candido é uma das mais belas expressões singulares do Brasil que sonhei possível.
Recife, 12 de maio de 2017.
Pequenas coisas que fazem a vida grande, como gosta de dizer Ivanildo Sampaio.
Fernando: Quem tem a sensibilidade do viajante etnográfico, como você, sabe da importância das pequenas coisas. Antonio Candido, também dotado desta virtude, também a demonstra de forma admirável no belo livro que dedicou à cultura caipira: Parceiros do Rio Bonito.
De Antonio Candido eu não sabia praticamente nada. Assim, foi importante ler o belo depoimento de Fernando Mota Lima. A sinceridade em cada vírgula.
Helga Hoffmann: Muito grato pela leitura tão generosa. Pensei em incluir na crônica um dado geracional que por certo importa para você. Diria mais ou menos o seguinte: Antonio Candido era talvez o último sobrevivente de uma geração formada por valores humanistas avessos à especialização que tanto estreita e deforma os intelectuais do presente, inclusive quase todos os melhores. Postei hoje no Facebook um artigo dele sobre os dez melhores livros para se conhecer o Brasil. Nenhum é do campo propriamente literário, embora Antonio Candido fosse antes de tudo um crítico e historiador da literatura. O mesmo poderíamos dizer de Gilberto Freyre, Mário de Andrade, Sérgio B. de Holanda, Celso Furtado, Darcy Ribeiro…A universidade contemporânea, não apenas a brasileira, suprimiu o intelectual humanista compreendido no sentido acima sugerido.
Fernando consegue nas sua memórias falar da literatura que é falar da vida;da própria vida e a dos outros, da felicidade e da dor. O gesto do guarda-chuva de Antônio Cândido e a sua lembrança desse gesto, elevam os dois implicados e faz dessa narrativa um testemunho de amor ao homem. Podemos também usar o mesmo guarda-chuva, como uma boa metáfora para atingir o arrogante Paulo Francis .
Minha querida Liliane:
Dona Fidélia, vigilante do meu bairro, leu seu comentário e suspirou decepcionada: “Como gostaria que essa senhora fosse minha parceira de profissão. Com esse guarda-chuva, que para nada serviu, a gente ia dar muita bengalada nos arrogantes da cultura pernambucana. Mas antes a gente dava umas vassouradas nesse tal Paulo Francis”. Imagino as vassouradas que meu amigo Sérgio Longman não levaria se fosse casado com dona Fidélia. Que alívio saber que ele é casado com você, Liliane.
Nunca pensei que houvesse tanta poesia e imaginação em um guarda-chuva. Verdade que não se trata de uma guarda-chuva qualquer. Era um objeto adquirido por um homem e ser humano excepcional para presentear os que o visitavam… O Brasil, que já não anda bem das pernas há algum tempo, ficou mais pobre e mais árido. Fernando consegue em poucas linhas traçar um retrato singelo e bonito a respeito deste grande brasileiro.
Foi muito prazeroso e instrutivo ler o seu texto. Que beleza. Parabéns meu amigo.