Foi em 1965, ainda estudante e estagiário, sob a ditadura do marechal Castelo Branco e coberto de má vontade, que fui escalado para fazer uma reportagem sobre a presença do Peace Corps em Pernambuco ou, como o grupo era conhecido, os “Voluntários da Paz”, a quem a esquerda mais radical, sem provas e sem fundamentos, apontava como “agentes da CIA disfarçados”, e “informantes do DOPS” – o temido Departamento de Ordem Política e Social, a quem competia prender e torturar aqueles que se opunham ao regime em vigor. (Deve-se dizer que não era privilégio meu, estudante e estagiário, produzir e assinar reportagens nas Revistas de Adolfo Bloch: Helena Beltrão, Frederico Vasconcelos, Rosalvo Melo e outros colegas da Universidade, todos estagiários, também assinaram belas reportagens, principalmente na Manchete e na Fatos&Fotos). Meu companheiro de tarefa seria o fotógrafo Raimundo Costa, paraense, radicado no Rio de Janeiro há muitos anos e transferido para o Recife como reforço à equipe local da Sucursal da Bloch, que tinha jurisdição desde Alagoas até o Maranhão. Uma Sucursal em Belém cobria todo o Norte do País; outra, em Salvador, ficava com os Estados da Bahia, Sergipe e Espírito Santo. Raimundo Costa, novamente levado para o Rio depois de quatro anos no Recife, morreria, algum tempo depois, ainda a serviço da Bloch, atropelado por um ônibus, na Rua do Catete, quando produzia uma fotonovela para a Revista Sétimo Céu, uma das tantas publicações da Editora.
Nossa primeira dificuldade foi descobrir quantos eram, quais os seus nomes e onde atuavam os bravos rapazes norte-americanos do Peace Corps, já que não tinham qualquer ligação com o consulado local, eram uma instituição criada pelo presidente John Kennedy em março de 1961, através de ato do Congresso Nacional, que colocava, entre outras atribuições, a de “trabalhar pela paz mundial e a causa da amizade”. Tinham que ser maiores de 18 anos e cidadãos estadunidenses de nascença. E estiveram presentes em 139 países, entre eles algumas nações africanas colocadas entre as mais miseráveis do Planeta. Falava-se, também, que muitos haviam se engajado no Peace Corps para fugir da Guerra do Vietnã, que começava a ceifar, cada vez mais, jovens soldados norte-americanos. Em Pernambuco, como veríamos depois, os Voluntários se espalharam por alguns municípios da Região Metropolitana do Recife e pequenos distritos de cidades da Zona da Mata, orientando para uso de melhores técnicas agrícolas, noções básicas de higiene e saúde, prevenção contra doenças sexualmente transmissíveis e proteção ao meio-ambiente.
Foi num bar que funcionava como apoio do TPN – Teatro Popular do Nordeste, criação genial de Hermilo Borba Filho, onde conheci um “ex-Voluntário”, que deixou a instituição e passou a dar aulas particulares de inglês, numa época em que, na capital pernambucana, os cursos estabelecidos desse idioma eram poucos e proibitivos. Era o Bar Aroeira, na Avenida Conde da Boa Vista, centro do Recife, parada obrigatória às sextas-feiras para quem, como eu, estudava na Universidade Católica de Pernambuco.
O ex- Voluntário descobriu o sabor da “caipirinha”, chegava cedo nas noites de sexta-feira, ficava até sair o último freguês. Foi numa dessas noitadas que ele me revelou a condição de ex-membro do Peace Corps, de ter deixado a instituição porque não acreditava mais que o trabalho seu e de seus companheiros iria modificar costumes de vida que eram praticados ao longo de gerações, embora, apesar de tudo, respeitasse posições contrárias de outros membros da equipe, composta por pouco mais de uma dezena em Pernambuco. Morava numa pensão modesta na Rua Barão de São Borja, bairro da Boa Vista – e na segunda-feira bati à sua porta: queria o endereço de dois ou três Voluntários que atuassem no Recife, através deles eu tentaria chegar a outros, principalmente os que atuavam no Interior do Estado. “Mr. Caipirinha” – foi assim que eu e Raimundo Costa batizamos o moço – relutou um pouco, mas cedeu: falou que o grupo não gostava de publicidade, alguns eram muito religiosos, outros haviam deixado a Universidade para retomar os estudos quando voltassem para os Estados Unidos, enfim… traçou mais ou menos o quadro de como vivia o grupo, sem revelar quanto ganhavam e como recebiam a remuneração a que tinham direito.
Nosso primeiro contato “de campo” foi no extenso bairro de Casa Amarela, com uma população maior do que a de muitos municípios do Estado. Esse Voluntário morava sozinho, num pequeno casebre, numa área marcada pela pobreza e pelo abandono. Algumas vezes, ajudava aquela gente humilde na construção de suas casas, devia ter alguma noção de engenharia, porque insistia no cuidado com as fundações, em terrenos algumas vezes situados à beira de encostas. Outras vezes, distribuía leite em pó com famílias mais necessitadas – leite esse conseguido através de instituições norte-americanas com presença no Estado, entre elas a USAID – sigla essa que já não lembro o que significa. Passamos uns três dias seguindo, passo a passo, as atividades de nosso personagem. Como ganhamos sua confiança, ele nos deu nome e endereço de outros Voluntários que atuavam na Zona Da Mata do Estado, sob desconfiança de lideranças trabalhadoras que haviam sido expulsas de seus Sindicatos, quase todos sob intervenção depois que foram desbaratadas as Ligas Camponesas, logo após o Golpe de 1964.
Na Zona Rural do município de Vitória de Santo Antão, encontramos mais dois Voluntários, altos, louros, de olhos azuis, ensinando a algumas famílias que cultivavam pequenas propriedades a melhor maneira de plantar e irrigar. Eles se destacavam, no meio daquela gente mirrada, a pele tostada pelo sol, a miséria rodeando os casebres humildes cobertos com palhas de bananeiras.
Devo dizer, por fidelidade aos fatos, que nessa altura nossa má vontade para com os rapazes de Tio Sam já havia sumido: o que víamos ali era um exemplo de solidariedade que desconhecíamos, um caso concreto de abnegação que nada tinha a ver com os boatos espalhados sobre os integrantes do Peace Corps – em nenhuma das humildes residências que eles ocupavam havia transmissores clandestinos informando à Matriz o que ocorria na zona canavieira do Estado, propaganda norte-americana, nada, nada…
A revista Fatos & Fotos, então dirigida por Cláudio Mello e Souza, um dos grandes profissionais de sua geração, publicou em quatro páginas nossa reportagem, com o sugestivo título de “Eles Buscam na Terra uma Missão de Paz.” Algumas das dezenas de fotos feitas por Raimundo Costa falavam por si: os rapazes com os pés na lama, ensinando aos camponeses como semear a terra. Outras, mostrando um Voluntário ajudando a levantar um casebre, subindo uma escada com um balde de cimento numa mão. Por conta disso, ganhamos, eu e Cláudio, da velha e radical esquerda, a pecha de estarmos a serviço do Governo norte-americano. Logo eu, coitado, que nunca aprendi uma palavra do inglês.
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