Ninguém mais se espanta com as descrições dos crimes do regime stalinista nas três décadas de terror na antiga União Soviética. Mas até hoje é surpreendente e mesmo incompreensível que milhões de pessoas no mundo inteiro aceitassem, justificassem e até apoiassem os julgamentos, as torturas, a humilhação e o fuzilamento de todos os líderes da revolução russa, exceção de Lenin, morto prematuramente (ou envenenado?) e de Leon Trotsky, assassinado no exílio por um stalinista catalão infiltrado.
Por que voltar agora ao assunto, tanto tempo depois da queda do muro de Berlim e mais ainda das denúncias dos crimes do stalinismo por Nikita Kruchov? São reflexões da leitura do excepcional romance histórico “El hombre que amaba a los perros” do escritor cubano Eduardo Padura, que narra as vidas paralelas de Leon Trotsky e do seu assassino, Ramón Mercader, até o encontro fatal em Coyoacán (México). O narrador é um escritor cubano que amargava o silêncio e o ostracismo devido ao controle burocrático da literatura em Cuba, até encontrar, nos anos 70, um velho misterioso com dois galgos russos de quem ouve o relato da vida trágica de Mercader.
Estimulado pela conversa, o escritor-personagem pesquisa a história esquecida do assassinato de Trotsky e decide escrever a trajetória política e humana da vítima e do seu algoz, mas buscando, antes de tudo, entender como “tinha se pervertido a maior utopia que alguma vez os homens tiveram ao alcance das suas mãos, mergulhando nas catacumbas de uma historia que parecia mais um castigo divino que obra de homens embriagados de poder, ânsias de controle e pretensões de transcendência histórica…” (tradução livre do espanhol).
Como um romance histórico, Eduardo Padura mergulha na alma humana tentando penetrar nos sentimentos secretos dos personagens, explorar as angustias, emoções e ideias que sustentaram a vida de Trotsky no exílio, assim como o fanatismo e o ódio de Mercader mesclados com suas dores e sua solidão. Mesmo cercado, perseguido e separado da historia e dos aliados (“o profeta banido”, na expressão de Isaac Deutscher) Trotsky continuava incomodando Stalin com seus artigos e seu empenho em organizar a oposição na URSS. Enquanto isso, Mercader se preparava para a eliminação do inimigo, disfarçado e com documentos falsos que permitiram se aproximar e penetrar no refúgio do exilado. A narrativa de Padura alterna a vida de degredo e isolamento de Trotsky, com os movimentos de Mercader, o sofrimento do profeta impotente diante dos Processos de Moscou, da morte e humilhação de velhos companheiros e do assassinato de seus familiares, especialmente seu filho Liova, com a trajetória do comunista catalão na sua missão de membro da KGB.
Mesmo assassinado, Trotsky deixou sua marca na história mundial como brilhante pensador russo e líder revolucionário internacionalista; Mercader foi preso e depois deportado para a URSS mas, enquanto viveu, carregou na memória o grito de dor e repulsa do velho revolucionário golpeado de morte, impressões definitivas da traição e covardia do assassino. No final da vida, desprezado por todos, inclusive antigos comunistas e stalinistas, Mercader percebeu, com repugnância que tinha sido apenas um instrumento de Stalin, ele também vítima do fundamentalismo e da mentira stalinista; passou à história como executor desprezível do maior crime político do totalitarismo stalinista, enquanto o profeta continua lembrado e comemorado em todo mundo como um dos grandes líderes revolucionários da história contemporânea.
Artigo publicado no Jornal do Comércio no dia 12 de Outubro de 2012.
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Sérgio C. Buarque
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Excelente artigo, se mostrando à altura da obra. Ressalta a importância da literatura na reinterpretação da história. Parabéns