No filme Amadeus de Peter Shaffer, dirigido por Milos Forman, se constrói uma relação de amor e ódio de Salieri por Mozart. A principal fonte do ódio de Salieri deve-se ao fato que este, desde pequeno, havia se oferecido celibatariamente a Deus, abrindo mão de todos os prazeres terrenos para que, em troca, Deus lhe desse o dom da música. E assim foi por certo tempo. Salieri acreditava ser o escolhido e estava muito bem instalado como diretor musical do Rei da Áustria, gozando de todos os privilégios, dentre os quais o reconhecimento e a fama. Até que…entra em cena Mozart, que já era conhecido como menino prodígio e, agora adulto, havia sido contrato para a mesma corte. Mozart é um personagem totalmente hedonista, sem nenhum limite quanto aos prazeres do sexo e da boemia. Entretanto, compunha uma música que aos olhos (neste caso, ouvidos)de Salieri era a máxima perfeição da expressão do divino na terra.
Um ódio crescente e obsessivo se instala no espírito de Salieri passando a conviver, simultaneamente, com a paixão deste pela música de Mozart.
O filme começa com Salieri em um manicômio, atormentado pela culpa de ter sido o responsável pela morte de Mozart. A um padre Salieri conta toda a história de amoródio dele em relação a Mozart.
O grande mérito do diretor, acredito, onde reside a principal força do filme, foi colocar Salieri como um intermediário entre nós, o público, e a obra de Mozart; explicando de forma sublime e apaixonada a beleza da criação de Mozart.
E onde entra socialismo nesta estória toda?
Eu, assim como muitos da minha geração, sofria da mesma paixão cega de Salierei, só que com relação ao socialismo.
Há uma corrente histórica muito forte que vem seguindo há séculos esta Utopia. As comunidades dos primeiros cristãos, os socialistas utópicos -Robert Owen, Saint Simon e outros-, o socialismo científico teorizado por Marx e posto em prática por Lênin, todos sofrendo do mesmo mal: uma celibatária e cega “certeza religiosa” nas ideias socialistas e no determinismo histórico de que a humanidade, tão sangrenta de injustiças, enfim haveria de atingir a perfeição instalando uma sociedade socialista.
Acreditávamos sermos os escolhidos pela história, assim como Salieri acreditava ter sido escolhido por Deus para compor as mais belas e expressivas músicas que a humanidade jamais ouvira.
O capitalismo evoluiu, ao longo deste período, movido pela amoral e infinita ambição humana em obter lucro e riqueza, explorando sem limites, o outro.
Está aí o nosso Mozart!
Como? O capitalismo, sem ter uma pauta humanitária em seus cânones teóricos, consegue construir a riqueza e avançar com força inovadora sobre a história, transformando nossas vidas e compondo as mais importantes composições que regem a economia e a sociedade,
Destrói assim, de forma dolorosa, o narcisismo que sustentou gerações e gerações de Salieris por todo o mundo. A queda do muro de Berlim, em 1989, descortinou a última base histórica e material que dava suporte ao imaginário das utopias socialistas.
No final do filme, sai Salieri com um sorriso demente e, de forma melancólica, passeia com sua cadeira de rodas pelos corredores infectos e cheios de doentes mentais, acorrentados feito animais, se autoproclamando o rei dos medíocres.
Foi esmagado, tragicamente, pela força criadora do gênio Mozart.
Algo semelhante ocorre com o socialismo em relação ao capitalismo. Sucumbe, diante da poderosa força transformadora da realidade que o capitalismo possui, toda experiência histórica que demonstraria que nossa “cegueira religiosa” tinha, enfim, fundamento.
É evidente que a ameaça, durante certo período da história, do socialismo, forçou a modernização do capitalismo. É muito forte também a convicção e o respeito por milhares de Salieris que se sacrificaram e se imolaram, alguns com a própria vida, outros com seu intelecto, em uma busca incessante de construir uma sociedade socialista.
A estes, os salva o poeta luso “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”, uma forma sublime de dizer que o sacrifício não foi em vão.
Mas, e hoje? Quando estamos vivendo os primórdios (pasmem) da sociedade da informação, onde o capitalismo se renova numa velocidade assustadora, impedindo até mesmo de teorizarmos sobre seus impactos transformadores em nossas vidas. O que cabe a nós, Salieris desse novo tempo? Sim, uma vez Salieri, sempre Salieri. Acho que é algo do DNA da história: não tem cura.
Primeiro, saber lidar com esse narcisismo histórico ferido. Sair dos corredores pútridos que a história nos colocou. Alguns países e algumas mentes, jovens ainda, estão acorrentados neste manicômio do imaginário utópico do socialismo, onde a ração diária é o passado sem nenhum vestígio de razão, nem possibilidade de pensar o futuro.
Segundo, é compreender que essas correntes históricas têm agora uma função crítica dos abusos do capitalismo; porém para isso se faz necessário um esforço razoável para se pensar onde inserir a Utopia humanitária nessa nova e célere sociedade da informação.
***
Referência :Filme Amadeus de Peter Shaffer
DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com
João Rego
[email protected]
Este texto é de responsabilidade do autor.
Todo o conteúdo da Revista Será? poderá ser publicado em outros meios, desde que citada a fonte e o endereço do nosso website, que é www.revistasera.info
Perdão, João Rego, mas fiquei na dúvida : a sua relação amor-ódio “salieriano” é pelo capitalismo? O jovem socialista, que acreditava numa utopia de sociedade justa e igualitária, que fazia um pacto de santidade com Deus para ser o grande protagonista da história se sente avassalado pela obra prima consumista do capitalismo? A dor do antagonismo amor-ódio decorre do fato de o socialista ser ignorado e, até, ridicularizado pelo capitalismo? Ou será que ele ainda acredita que vai escrever o réquiem pelo capitalismo, mantendo, ainda, uma admiração profunda por esta forma de arte da vida?
Cara Ester:
A admiração profunda pelo socialismo ainda persiste, para o bem ou para o mal, tanto que me incluo entre os Salieris.
Minha crítica é contra esta paixão e certeza religiosa que nos impede de sermos mais eficazes como força histórica e antagônica ao capitalismo.
É com esta limitação intelectual de “certas esquerdas” que o capitalismo goza. Ninguém estudou mais profundamente o Capital na época do que Marx, pois este antevia uma mudança radical do capitalismo.
Hoje, qual o socialista que estuda, com a mesma profundidade de Marx na época, as complexas forças criadoras/destruidoras do capitalismo moderno? Teria que se compreender, de início, as estratégias e tecnologias revolucionárias de um Google, uma Microsoft ou de uma Apple, para citar algumas. E sobre elas envolver a visão de mundo humanitária do socialismo.
É este o cerne do meu artigo.
Doí? Sim, muito. Mas é preferível este desafio angustiante da incerteza do que uma “verdade frágil” que nos aprisiona nos corredores do manicômio saleriano.
Excelente texto. A comparação é exata. Quanto melhor a composição, mais o músico sublime é odiado. A Internet, invenção aplaudida como revolucionária pelos antiamericanos, foi CRIADA nas forças armadas americanas. A vontade de negar o capitalismo faz os socialistas de hoje adotarem o relativismo cultural e alinharem-se a regimes medievais, apenas porque estes são antiocidentais. Aí vem o capitalismo e seduz os jovens oprimidos por aqueles regimes!
Muito instigante a critica de João Rego ao filme Amadeus refletindo sobre a utopia socialista a partir de uma abordagem psicanalista da relação conflituosa de Salieri com Mozart, mistura de admiração e inveja, ódio e amor. Mas, como todo texto instigante, estimula a algumas interrogações e dúvidas, proposta central da Revista Será? Então, alguns comentários críticos á análise de João Rego:
1. O que caracteriza a paixão de Salieri é o ressentimento diante do sucesso de Mozart que ressalta a sua limitada criatividade. Este sentimento não tem nenhuma relação com a utopia transformadora que mobilizava/mobiliza os socialistas diante do lado destrutivo do capitalismo. O texto passa uma impressão errada de que os socialistas são ressentidos e que o projeto socialista teria sido/é uma utopia de ressentidos que admiram/amam e rejeitam/odeiam o capitalismo. Como teria expressado Nietzsche, identificando ressentimento da genealogia da moral judaico-cristã, a proposta socialista seria a expressão de um ressentimento diante do capitalismo.
2. É certo que se alimentava entre os socialistas o que se chamava de “ódio de classe” nos termos que João qualifica o “ódio crescente e obsessivo” de Salieri por Mozart; mas esta revolta é completamente diferente, na medida em que Salieri expressava um sentimento pessoal (mais apropriado à psicanálise), enquanto que os socialistas tentavam refletir uma visão coletiva (embora existissem Salieris com ódio, amor e inveja).
3. A identificação de Mozart com o capitalismo também perde consistência, a meu ver, quando fala da evolução deste último “movido pela amoral e infinita ambição humana em obter lucro e riqueza, explorando sem limites, o outro”. Mozart não parecia interessando em lucro e riqueza, mas sim na liberação da força criativa, Neste aspecto, sim, pode ser feita uma comparação: a energia criativa também carrega uma força destrutiva: o gênio de Mozart, semelhante ao mercado capitalista, combina criação e destruição.
4. A análise de João, comparando a relação Salieri-Mozart com socialismo-capitalismo, carece de um componente externo fundamental, que talvez saia do terreno da psicanalise: a presença do Estado. O Rei da Áustria no meio dos dois (Salieri/Mozart) e o Estado moderno no capitalismo contemporâneo; este atua, com diferentes níveis, no equilíbrio das forças de criação e destruição do mercado, pelo menos no sistema socialdemocrata e, refletindo o jogo de poder, procura exercer um papel de regulação – facilitando a força criativa, mas contendo e moderando seus impactos negativos e destruidores.
Resta a pergunta final: SERÁ que os conceitos e os métodos da psicanálise são úteis e aplicáveis à critica social?
Caro Sérgio
Sua crítica está, como sempre, bem estruturada. Vai exigir de mim ou pouco mais de tempo para responder. Aguarde
Abraços
Nossa, por onde começar… primeiramente fui chamada à atenção por se tratar de um dos meus filmes preferidos. Do qual assisti várias vezes por estímulos de meus pais. A descrição do sentimento de amor e ódio de Salieri é muito boa. Depois a analogia feita, deixa o artigo ainda mais intrigante. A comparação foi perfeita. Nunca tinha observado o capitalismo dessa maneira, e é bem isso. Chegou com tudo! Pode ser todo errado, como Mozart e seus devaneios, mas da mesma forma é fascinante, como o músico.
.
Parabéns João pela coragem de tocar em assuntos que para se sustentar recusar-se a fala.A psicanálise sempre vai ter um lugar seja como for no campo social,pois ela foi erguida no conflito humano.
Sobre o artigo do João Rego.
Meu primeiro sentimento: quem se interessa ainda por socialismo? O mundo das pessoas com quem convivo, estudantes de pos graduação em desenvolvimento sustentavel não têm o mínimo interesse por estas questões de socialismo e capitalismo. Em geral são criticos do capitalismo, pelo consumismo que nos induz e as crises que contém, mas sem qualquer crença no socialismo. São críticos sem utopia. E não eoncontram nenhuma consistencia na utopia socialista. Nem aqueles que são simpáticos do PT ou partidos ditos de esquerda. Socialismo é coisa do passado, uma historia estranha e distante. Para eles.
Segundo: Mozart é um gênio, o capitalismo – um desastre anunciado. Sem duvida produtor de bens e conforto, mas perverso em alguns de seus resultados – desigualdades, pobreza, fome, violência, crises… um mundo essencialmente doentio.
Terceiro: socialistas com ciúmes do capitalismo porque “deu certo”e o socialismo “morreu”? Devem existir, mas são esquisitos. Masoquistas? O socialismo nunca existiu e a “vitória” do capitalismo é sua derrota. Não no sentido de que vai acabar….mas porque perde sua adesão ideológica e resiste por sua adesão consumista…mas porque eu estou falando sobre estas coisas?
abraços e parabens pela argumentaçao inusitada.
(desculpem a falta de acentos e outras gralhas mas de onde escrevo mal consigo enxergar o que estou escrevendo)
João,
Aproveito para parabenizar a equipe pelo lançamento deste espaço democrático onde teremos boas discussões.
Instigado por você li o texto. Evidentemente, cada leitor faz sua compreensão baseado em sua história, em seus valores, em sua área de atuação. Você mais ligado à psicanálise, eu à Economia Política. Nesse sentido tenho algumas discordâncias. Quero ressaltar três.
A primeira é quanto ao conceito implícito de Satisfação no Capitalismo. Há, pelo menos, dois conceitos subjacentes. Primeiro que os Fins justificam os Meios. O Sistema é AÉTICO, como Mozart é definido no filme, mas teoricamente permite a realização. Sem dúvida isso não faz parte dos valores que sempre defendemos. O outro está ligado a uma visão individualista em que a grande maioria é excluída, mas, “evidentemente porque não ousaram, por incompetência”.
A segunda está atrelada ao Tempo Histórico. O seu texto vê a débâcle do socialismo quando da Queda do Muro. Não confunda conjuntura com coisas estruturais. Lembro que logo após a 1989 o discurso era que tínhamos um mundo unipolar, coordenado pelos Estados Unidos, que teria todas as condições para a prosperidade. Ninguém previa o fenômeno China e muito menos as enormes crises das economias centrais que vêem mostrando todas as mazelas do Sistema. As coisas mudam rapidamente.
A terceira está ligada ao próprio conceito de Socialismo que usa. Com certeza não é o de Marx, nem dos Utópicos. É aquele que foi chamado de “Socialismo Real”, marcado por uma Burocracia Corrupta que não percebeu a evolução do Paradigma Tecnológico e que se impregnou pelos valores do próprio capitalismo. Não é esse o Socialismo que defendemos e que Marx, com muita razão chamou a atenção para o caráter dialético de sua construção, onde haveria avanços e retrocessos até chegar a um sistema que defendesse os reais interesses da ampla maioria da população. Que se balizasse no conceito muito bem definido por Leonardo Boff:
“O ser humano vive eticamente quando renuncia estar sobre os outros para estar junto com os outros”
Saudações fraternais.
Caro João:
Conheço algumas pessoas responsáveis pelo blog Será? e sou amigo de Teresa Sales. Gostei muito da analogia que você fez entre a fé no socialismo e a fé de Salieri. Só daria mais um passo além do que você disse: fui também Salieri, mas isto não fez parte do meu DNA. Acho mesmo que não faz parte do DNA de ninguém. Qualquer um pode livrar-se da doença desde que tenha disposição para navegar no mundo das ideias sem bússola. Desde que dê mais importância à sua razão do que à sua imagem. Com efeito, são raras as pessoas que reconheceram o equívoco e assumiram uma posição independente sem medo do julgamento dos Salieri. Mas elas existem. Disse que são raras pensando apenas no meu círculo de amizades, mas talvez até sejam numerosas. Não têm obrigação de sair dizendo que aquilo tudo não passava de um delírio, mas eu digo: foi um delírio e continua sendo sobretudo para professores e uma minoria de jovens que estão na universidade. Digo que foi um delírio e lamento tê-lo cometido. Apesar de tudo, agora me sinto bem com a guinada que dei na minha vida dedicando todo o meu tempo à literatura. Não há perigo de ser mais uma canoa furada porque esta não tem fundo, quem entra já sabe que vai ter que nadar o tempo todo e sem bússola. Guiando-se talvez pelas estrelas. Um abraço.
César Garcia
Excelentes artigo e comentários.
Adiciono, apenas, um curto comentário:
O capitalismo parte do pressuposto que o homem é imperfeito e a sociedade resultante será necessariamente também imperfeita.
O socialismo, ao contrário, cria um modelo de homem para ser parte de uma sociedade perfeita.
Atte a todos
Aproveito para cumprimentá-lo pelo texto “O Socialismo e a Síndrome de Salieri”, oportuno, lúcido e bem desenvolvido.
Clemente.
Mozart era o socialismo