Outubro de 1968. Guerra no Vietnam; hippies pregando paz, amor e liberdade; endurecimento da ditadura militar brasileira, que culminaria com a decretação do Ato Institucional número 5 na fatídica sexta feira 13 de dezembro daquele ano.
Estamos a caminho de São Paulo. Do Brasil inteiro, jovens se deslocam de ônibus para a cidade bandeirante. Do Recife, por decisão coletiva e votada em assembléia, sairíamos preferencialmente em casais, em dias previamente escalados, tal um viajante qualquer. Numa das primeiras paradas, alguns de nós, que vínhamos em ônibus separados, descemos para lanche e banheiro. Humberto Câmara, da Medicina, dirige-se com gestos efusivos para um abraço, quando se lembra de uma das recomendações da referida assembléia. Muda a expressão do rosto, faz cara de nada e se vira para o outro lado, ainda de braços abertos, parecendo um magro Jesus Cristo no teatro de Nova Jerusalém.
(Cinco anos depois, no mesmo mês de outubro e então com vinte e seis anos de idade, Humberto foi torturado e assassinado por agentes da Ditadura Militar brasileira no Rio de Janeiro).
Não consigo me lembrar por quantos dias ficamos vagando, eu e meu parceiro de viagem, a buscar senhas e endereços onde dormir em residências da alta classe média no bairro dos Jardins, antes do destino final no sítio em Ibiúna para o Congresso da UNE. Passamos também pelo Conjunto Residencial da USP e fizemos uma viagem para nada até Taubaté, uma cidade no Vale do Paraíba. Em São Paulo, entramos na estratégia traçada pelo comando do Congresso, sob a batuta de Zé Dirceu. Do planejamento recifense já tínhamos feito o primeiro pouso de disfarce no bairro de Santa Teresa no Rio de Janeiro. Lá ficamos uma noite no apartamento de Rosa Sales e Plínio Soares, minha irmã mais velha e meu cunhado. Mariana era recém-nascida e meu nome de guerra na Ação Popular era esse, Mariana, muito antes de ela nascer.
“Que não se afastem do perímetro vigiado desse local, ou correm risco de vida”, foi como nos recepcionaram, na entrada do sítio, os companheiros armados que estavam à frente da organização do Congresso. Também desse tempo não contabilizo os dias de espera para o início da sua primeira grande assembléia, a aguardar a chegada de todos. Nessa, as discussões tomaram todo o primeiro dia, apenas nas preliminares dos assuntos que seriam tratados. No fundo, começava a luta pelo poder, onde contariam mais as definições partidárias clandestinas prévias, do que a capacidade de convencimento pelas discussões que se seguiriam. E que ficaram apenas nesse primeiro dia.
Para azar nosso, São Paulo entrou numa de suas ondas de frio e chuva fora de época. Por sorte, eu havia levado um bom casaco emprestado por uma tia de minha colega de classe Solange Souza. O dinheiro para a minha viagem foi conseguido pela contribuição voluntária de meus colegas da Escola de Sociologia e Política, da qual eu era a presidente do Diretório Acadêmico. Consegui ficar com esse casaco, mesmo sujo de lama, até o final. Mas quando a tropa de Fleury nos deu ordem de prisão, eu, que calço 35, estava com um chinelo 42 em um pé e o meu tênis no outro, carregando a mochila e o cobertor que tinha me abrigado às noites nas escadarias de madeira do circo improvisado para as assembléias, um dos locais de dormida. Os mesmos cobertores que, esgotado todo o estoque do pequeno município de Ibiúna, iriam nos denunciar para as tropas do governo.
Não posso negar como foi saboroso o pão francês, mesmo sem manteiga nem queijo, distribuído em grandes cestos na praça principal de Ibiúna. Os paulistas fazem, hoje sei disso, o melhor pão de padaria do Brasil, tirante aqueles artesanais dos estados do Sul. Não sei se algum meio de imprensa fotografou aquele bando de maltrapilhos avançando no pão ainda fresquinho, depois de doze quilômetros de caminhada em terra batida e lama e depois de dois dias de limitada ração. Na véspera, coubera-me uma barra pequena de chocolate e água.
Com o chinelão num pé e o tênis no outro, eu estava voltando do banheiro, que ficava afastado do circo das assembléias, com alguma dificuldade para me equilibrar na lama. Foi quando ouvi os tiros. A tropa de Fleury chegou atirando para cima. Eu comecei a tentar andar mais depressa para chegar junto aos outros, quando deslizei e caí na lama. Pensei que um tiro havia me atingido e eu tinha morrido. Que morte besta! foi o que pensei na hora. Foi uma fração de segundos e me dei conta do dinheiro caído do bolso, olhei pra frente e estava quase chegando. Para mim, o grande objetivo estratégico naquela hora era estar junto de todos. Afinal, éramos mais de setecentos.
Também perdi a conta dos dias no presídio Tiradentes em São Paulo. Do camburão, da cela fétida com apenas meia parede separando-nos da latrina, fomos aos poucos sendo acomodados em salas maiores, de onde foram soltos ladrões e prostitutas para dar lugar ao batalhão de estudantes. Mesmo dormindo em jornais no chão frio, a situação era melhor do que a cela dos primeiros dias de prisão. E fomos recebendo roupas, sapatos e agasalhos da tradicional família paulistana, assistência médica e remédios. Os últimos dias na prisão e a volta de ônibus foram suficientes para o antibiótico que o médico me receitou para uma bronquite e, quando o ônibus nos despejou na Praça do Derby, no Recife, eu já estava curada.
Fomos um dos primeiros grupos a sair da prisão. Nilo Coelho, então governador do estado, mandou um ônibus fretado especialmente para nos trazer de volta. Afinal, naqueles idos de finais dos anos de 1960, a universidade brasileira era ainda privilégio das classes média e alta. E ali estavam filhos da elite brasileira.
Não esqueço a minha emoção quando, na saída do presídio, lá estava minha irmã, Rosa. Só mesmo ela, com sua intuição apurada, seu senso de proteção e sua imensa capacidade de manobra, para descobrir meu paradeiro, em meio a informações desencontradas que recebera desde que chegara a São Paulo. Enquanto o ônibus aguardava uma autorização para partir, ainda houve tempo para receber dela uma fotografia de Mariana e dinheiro suficiente para os restaurantes do caminho.
Muito bom!!!
Lembranças semelhantes tenho do Congresso da UNE em Valinhos, na Fonte Sonia (Serra presidente). Éramos muito jovens, no início da Faculdade mas quando ocorreu Ibiúna me lembro de ter me sentido “muito velha”, parecia uma nova geração a de Ibiúna, o tempo já havia passado.
Necessário este registro pessoal e histórico de suas lembranças, Teresa!
Ainda estudante secundarista em 68, a partir do ano seguinte, comecei a acompanhar a resistência do movimento estudantil universitário em Recife. Lembranças esparsas mas ainda bastante vivas de Humberto – a suavidade das feições associada à firmeza das opiniões: em nossas conversas, sempre enfatizava a certeza de que Marx era insuperável…
Dos bem mais violentos anos de chumbo que se seguiram, o relato de um acontecimento tardio mas triste, muito triste:
Morrer aos poucos
O técnico de computadores Carlos Alexandre Azevedo morreu no sábado (17/02), após ingerir uma quantidade excessiva de medicamentos. Ele sofria de depressão e apresentava quadro crônico de fobia social.
Era filho do jornalista e doutor em Ciências Políticas Dermi Azevedo, que foi, entre outras atividades, repórter da Folha de S. Paulo.
Ao 40 anos, Carlos Azevedo por fim a uma vida atormentada, dois meses após seu pai ter publicado um livro de memórias no qual relata sua participação na resistência contra a ditadura militar.
“Travessias torturadas” é o título do livro, e bem poderia ser também o título de um desses obituários em estilo literário que a Folha costuma publicar.
Carlos Alexandre Azevedo foi provavelmente a vítima mais jovem a ser submetida a violência por parte dos agentes da ditadura.
Para ler a continuação:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/radios/view/gt_gt_obituario_lt_br_gt_gt_gt_para_nao_esquecer
E mais esta matéria, publicada em 2009, na Revista ISTOÉ:
“A ditadura não acabou”
Filho de militantes de esquerda, Carlos Alexandre foi preso e torturado quando era bebê. Cresceu agressivo e isolado. Aos 37 anos, ele ainda sente os efeitos dos anos de chumbo: vive recluso, sem trabalho nem amigos – sofre de fobia social
Para ler a continuação:
http://www.istoe.com.br/reportagens/46424_A+DITADURA+NAO+ACABOU+
concordo com a cmpanheira emilia a ditadura nao acabou passamos da militar para do dinheiro e quem esta no poder nao vai fazer nada? como esta o nosso povo!
Grande Tessinha, maravilha de escrita!!! O título “…Miúda” é simpático mas talvez não expresse o grande significado, que é maiúsculo, do seu texto e de sua memória/reflexão. Ou ainda o que permite pensar sobre a proposta de se fazer um Congresso clandestino, fora do locus universitário/estudantil. Ou ainda que concepção de mundo estava refletida por aqueles que ganharam a proposta de realizar um Congresso de uma entidade estudantil, de maneira isolada e fora do seu espaço natural. Lembro que havia divergencias de propostas e que uma delas defendia a realização de um Congresso na USP, aberto e de massas, deixando aos donos do poder o ônus de uma invasão e repressão ao Movimento Estudantil que é um Movimento de Massas. Beleza de texto, continue o seu brilhantismo.