João Alfredo Correa Prado >

Repressão militar contra manisfetantes em defesa da democracia - 1964

Repressão militar contra manisfetantes em defesa da democracia – 1964

 

No ano de 1964, ingressei na Escola de Engenharia, egresso do Ginásio Pernambucano, onde já existia uma atividade política bastante desenvolvida. Na Universidade, acompanhei  desde o início toda  a efervescência política que estava ocorrendo no Recife e no resto do Brasil

Na primeira semana de aula participei de um curso extracurricular de economia, dado pelo Professor Antonio Baltar, cujos ensinamentos ajudaram a alicerçar as minhas convicções políticas, ainda embrionárias. Naquela oportunidade, na primeira semana de março de 1964, o mestre já alertava para o perigo que corria a democracia, devido à ação dos grupos reacionários que não concordavam com as reformas de base que estavam sendo implantadas pelo governo popular de João Goulart.

Os presságios do nosso saudoso Professor Baltar se confirmaram na madrugada do dia 31 de março, com o anúncio do deslocamento das tropas de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, comandadas pelo General Olímpio Mourão Filho.

No Recife, o General Justino Alves Bastos, que se definia como legalista e empenhara a palavra ao governador de Pernambuco de que cumpriria a Constituição, mudou de lado e resolveu aderir ao golpe, àquela altura já vitorioso, pois o presidente João Goulart tinha abandonado o país para evitar um derramamento de sangue.

Pela manhã do dia primeiro de abril, o Diretório Acadêmico de Engenharia, juntamente com o Diretório Central dos Estudantes – DCE, convocou uma assembléia geral, onde seriam discutidos assuntos políticos que estavam ocorrendo em todo país e, principalmente, em nosso estado. A assembléia, realizada na Escola de Engenharia, em clima bastante tenso, foi dirigida pelo Presidente do D.A. de Engenharia, na época o colega Drumond Xavier. Contou também com a presença de diversos dirigentes universitários, principalmente os colegas da Medicina, Direito, Arquitetura e Agronomia. Lembro-me das palavras dos colegas mais experientes, que pediam calma e alertavam para os perigos que corríamos, pois nossa Escola já era bastante visada pelos órgãos de repressão.

No meio da assembléia, chegou-nos a notícia da prisão e destituição do governador Miguel Arraes, pois o mesmo tinha se recusado a renunciar ao mandato conferido pelo povo pernambucano. Logo uma proposta foi lançada a todos os presentes, para que fôssemos em comissão ao Palácio do Campo das Princesas, com a finalidade de dialogar com os militares e libertar o nosso governador. Apesar dos dirigentes universitários mais experientes alertarem para a gravidade da situação, e tentarem impedir a saída dos estudantes, o clima emocional já havia superado a razão. Ninguém os atendeu, e, em passeata, saímos em direção ao Palácio do Campo das Princesas para dialogar com os militares.

Da Rua do Hospício, tomamos a Rua da Imperatriz e a Rua Nova. Durante o trajeto, palavras de ordem eram lançadas, e a simples idéia de dialogar com os militares para que o governador fosse liberado transformou-se, quase que de imediato, em planos de “libertar o Dr. Arraes das mãos dos golpistas e reacionários”. Nesta fase, os estudantes já tinham a companhia dos bancários, comerciários, funcionários públicos e de populares mais esclarecidos.

Nas proximidades da pracinha do Diário de Pernambuco já estava havendo um comício, comandado pelos aguerridos ferroviários, cujo sindicato era bastante forte naquela época. A chegada dos estudantes, bancários, comerciários e do povo em geral foi bastante festejada, pois o pequeno número de estudantes que saiu da Escola de Engenharia tinha aumentado bastante com a adesão de populares, durante o trajeto nas ruas Imperatriz e Nova.

Tão logo terminou o comício, acatando as palavras de ordem dos oradores, partimos em direção ao Palácio do Campo das Princesas, para “soltar o Dr. Arraes”. Ao chegarmos na esquina da Avenida Dantas Barreto, antiga rua das Florentinas, defronte do antigo prédio da SUDENE, deparamo-nos com um contingente da polícia militar impedindo nossa passagem para o Palácio do Governo. O povo que formava a comitiva que pretendia “soltar o Dr. Arraes”, revoltado com aquela proibição de prosseguir com a passeata, começou a gritar palavras de ordem contra os militares, e, abrindo a bandeira brasileira e entoando o hino nacional, resolveu prosseguir em sua marcha.

Foi quando o oficial que comandava a tropa naquele instante, que de longe não deu para verificar a sua patente, posicionou-se por trás da tropa por ele comandada, e, sacando um revólver, fez mira por cima dos soldados e efetuou o primeiro disparo contra o povo.

Este momento foi registrado de forma bastante clara em jornais da época, cuja foto, feita por alguém posicionado em cima da marquise do antigo prédio da SUDENE, mostra claramente a iniciativa do oficial comandante. Este primeiro tiro desencadeou um verdadeiro massacre contra o povo desarmado, pois os populares se haviam posicionado exatamente no meio da rua das Florentinas, sem nenhuma proteção, uma vez que ninguém imaginava, naquela época, que os soldados atirariam contra o povo desarmado.

Neste instante, eu me encontrava sobre a calçada da antiga sapataria Remilet e deitei-me no chão logo após o tiro do oficial comandante e pouco antes dos soldados dispararem seus fuzis. Após os disparos, o povo se dispersou, com exceção de dois participantes, que feridos mortalmente, permaneceram deitados.

Imediatamente, um deles foi socorrido pelo nosso colega Aécio Gomes de Matos e colocado em um jipe que se encontrava nas proximidades. Eu, que estava bastante perto dos acontecimentos, presenciei o atendimento de um desses feridos e, para meu desespero, reconheci o meu colega da faculdade, que tinha permanecido na passeata devido a minha insistência.

Com esse fato, voltamos à Escola de Engenharia, quando então relatamos ao presidente do D.A., Drumond Xavier, que havia também retornado à Escola, a morte do nosso colega de engenharia, a qual foi confirmada com as notícias dadas por estudantes de Medicina, de que o Hospital do Pronto de Socorro de Recife, na época situado na Praça Osvaldo Cruz, atendera a dois baleados, ambos trazidos da pracinha do Diário de Pernambuco, mas que não resistiram aos ferimentos.

Horas depois, através dos colegas de Medicina, tivemos conhecimento dos nomes dos mortos da pracinha do Diário: eram os estudantes secundaristas Ivan Rocha de Aguiar e Jonas José de Albuquerque Barros. Apesar da triste notícia do bárbaro assassinato desses dois heróicos estudantes, que se tornaram as primeiras vítimas fatais da ditadura militar no Estado de Pernambuco, não posso esconder que houve um clima de alívio meu e de meus colegas, pois afinal eu havia me enganado, e nosso colega (que tinha permanecido na passeata devido a minha insistência) estava bem.

Voltando para casa à noite, conversei bastante com o meu pai, que era militar reformado do Exército. Mesmo não concordando com as minhas idéias, ele ficou bastante preocupado com o meu estado e confortou-me com os seus conselhos.

Desse tempo na Escola de Engenharia, não me esqueço e lembro com saudades alguns diálogos que mantive com o nosso saudoso colega Rui Frazão (Rui Frazão foi assassinado pela ditadura militar, após ter sido preso em Petrolina, em 27 de maio de 1974, e seu corpo nunca foi encontrado). Com seu jeitão diferente, em função da sua magreza e altura, com um sotaque bastante carregado para um nordestino do Maranhão, ele mantinha uma postura carismática impressionante. Sempre nos animava e encorajava, quando dizia que as gerações passam, mas o Brasil continua, e um país não se transforma apenas com o trabalho de uma geração.

Hoje, fico a pensar como ele, tão atencioso com as pessoas, educado, afável e bastante sensível, deve ter sofrido, após sua prisão pelos órgãos de repressão, pois certamente, nessa hora, deve ter imaginado qual seria seu destino. Nós, que o conhecemos de perto, sabemos que o Brasil perdeu uma promessa de grande líder, e que ele, se vivo estivesse, certamente ocuparia um lugar importante no cenário nacional.

Neste momento, e passados quase 50 anos, fica válida a pergunta: será que todos os nossos esforços e as vidas que foram ceifadas prematuramente em busca da justiça social, não foram em vão?

 

Este texto é parte da Série 1964 – Memórias de Abril, um resgate coletivo e fragmentado da história.

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