Importar médicos de outros países ou melhorar as condições hospitalares? Esse é um falso dilema. A situação é caótica nos dois lados. Os hospitais estão a perigo, faltam equipamentos e faltam hospitais. E também faltam 54 mil médicos, segundo o Ministério da Saúde. O Brasil tem em média 1,8 médicos para cada mil habitantes, atrás dos países europeus (Espanha 4; Por tugal 3,9; Alemanha 3,6) e até de vizinhos latino americanos (Cuba 6; Argentina 3,2). Dentro do Brasil, a proporção de médicos por habitantes reflete as nossas desigualdades regionais: o Maranhão, por exemplo, tem somente 0,58 médicos por mil habitantes; o Amapá 0,78 e o Pará 0,77. O Governo Federal acaba de lançar o programa “Mais Médicos” com o objetivo de ampliar o número de médicos por habitantes e a sua distribuição no território, resposta pontual e isolada às demandas das manifestações de rua. Aumentar o número de médicos no sistema público de saúde é correto e não importa de onde venham. Como diz com seriedade o gozador José Simão, “se eu estivesse morrendo no interior do Ceará, eu queria um médico humano. Tanto faz paulistano, cubano ou marciano”. Mas as entidades médicas têm razão quando afirmam que o mais grave problema da saúde no Brasil não está na quantidade dos médicos, reside principalmente na dramática deficiência de instalações, equipamentos e materiais do sistema hospitalar. Neste sentido, o programa governamental é mais uma meia sola e não parece fazer parte de uma política estrutural e de longo prazo para ofercer saúde de qualidade para a população. O governo parece uma “unidade de emergência do Hospital Brasil” atendendo, como pode e em condições precárias, às carências e necessidades urgentes da sociedade.
Conselho Editorial
Editores da revista, porque apoiar indiscriminadamente idéias sem conhecer melhor a realidade, de certo modo se contradizendo, como as próprias entidades médicas? Levanto alguns pontos para vocês refletirem melhor esta questão:
1. Há falta de médicos, sim, considerando o país globalmente, senão não estaríamos citando os outros países; entretanto, o pior mesmo é a distribuição desigual. Entretanto, diante de tantos problemas existentes, porque não apoiar uma resposta transitória do governo e paralelamente pressionar para o aparelhamento e melhoria das condições hospitalares?
2. Sabem a diferença entre medicina primária e terciária antes de apoiar quem pede mais equipamentos e hospitais, apenas, esquecendo que cerca de 90% dos problemas de saúde de um país, sobretudo no terceiro mundo, se resolvem com ações primárias de saúde, de mais baixo custo, com equipes multidisciplinares de formação básica?
3. Sabem que há muitos médicos no país que não distinguem estes níveis ou não se importam em conhecê-los pois só aprenderam a enxergar modelos que só funcionam com recursos elevados?
4. Sabem que atualmente muitos médicos não escutamos, olhamos, auscultamos ou tocamos nos nossos doentes, escudados mais em radiografias, ultrasom, topografias e rssnonâncias, exames complementares que passaram a ser mais prioritários do que a consulta?
5. Não imaginam que este modelo de exercício passe assim em branco, quero dizer, sem diversas repercussões individuais e coletivas, não é?
6. José Simão brinca e Adib Jatene também diz seriamente a mesma coisa, que precisamos de médicos especializados em gente, não poderíamos pensar que ambos podem ter razão? Aliás, felizmente as mazelas do sistema de saúde americano, bom para quem tem muito dinheiro, hoje já foram escancaradas; sabem que infelizmente é ainda o modelo mais imitado em nosso país?
7. Já leram sobre a diferença que faz um agente de saúde, sem nem nível superior, em regiões mais remotas?
8. O que acham da opinião das entidades médicas quanto à obrigatoriedade de mais dois anos na atenção básica por acharem que os novos médicos não tem condições de clinicar se saímos dos seis anos de faculdade e temos mesmo o direito de clinicar em qualquer lugar ou serviço do país?
9. Sabiam que as vagas em residência médica no país correspondem somente à metade do número de médicos que se formam anualmente, ou seja, que metade dos médicos entra no mercado de trabalho exatamente como todos os que irão trabalhar nestes dois anos extras?
10. Já refletiram porque os médicos só comparecemos às ruas depois, notem bem, depois da referência do governo à chamada de médicos de fora, o que realmente atingiu nossa categoria? Onde estávamos quando as ruas estavam lotadas de gente protestando, reivindicando? Não já sabíamos o que falta na saúde de país? Melhior exiigir tarde do que nunca, mas por que só protestar quando nos atingem? Não é o povo o mais atingido pelo que falta? Estamos realmente fazendo reinvidicações para o povo?
Bom, a lista de questões seria bem maior, mas levantei superficialmente alguns pontos para, de raspão, tocar no fato de que os problemas da saúde no país passam por vários outros além dessa questão do número de médicos e do aparelhamento de hospitais. Mesmo discordando de respostas atabalhoadas à grita das ruas não consigo aceitar críticas nitidamente pouco fundamentadas, até mesmo pelas entidades médicas; estas, prevalecesse o espírito coletivo, estariam empenhadas em negociações para efetivamente melhorar estas ações recentes, que poderiam, com uma boa contribuição dos médicos, deixar de ser somente apaga-incêndio para se tornarem ações mais definitivas, se bem planejadas. Entretanto, estamos assistindo mesmo é a uma cana-de-braço desnecessária e cujo foco não é em absoluto a população, pobre dela, longe de ter quem lute por uma política estrutural e de longo prazo para lhe oferecer saúde de qualidade, como corretamente reivindica o editorial.
Dra.Maria de Fátima: Com todo meu respeito, lhe digo que já posso morrer amanhã, porque até que enfim apareceu um raio de lucidez nisso que você chama de cana-de-braço. Na verdade, trata-se de um duelo entre a voracidade do corporativismo médico que quer reservar o PNB pra eles e a insensibilidade do Poder Público pra resolver os graves problemas de saúde que persistem em nosso país, notadamente nas suas regiões mais pobres. E é exatamente na questão da desigualdade que se identifica a genetriz do processo: Coisa de pobre! Lá nos grotões mais remotos, longe da vista dos mauricinhos e patricinhas da vida, reside uma grande parcela da população. Veja a contradição terrível que você levanta e que os Cremepes fingem desconhecer. “NOVENTA POR CENTO DOS PROBLEMAS DE SAÚDE DE UM PAÍS SE RESOLVEM COM AÇÕES PRIMÁRIAS DE SAÚDE” e procuram desculpar os seus profissionais com o pretexto esfarrapado da falta de equipamentos no interior. A despeito da objetividade do seu texto, permita-me colocar ainda algumas inocentes perguntas dirigidas à classe médica. a) porque os médicos não se recusam a trabalhar nos hospitais da Região Metropolitana, igualmente carentes de equipamento, como é sabido? b) Como exemplo, o Hospital das Clínicas (hospital-escola da Universidade Federal de Pernambuco) pode até ter equipamentos médicos de última geração mas tem funcionando apenas 3 (três) dos seus 9 (nove) elevadores obrigando a uma aberrante promiscuidade de condução dos operandos com o lixo hospitalar? c)porque o CREMEPE abandonou a sua competência originária para transformar-se em braço do Sindicato da categoria? d) Alguém tem notícias de alguma de suas famosas “blitz” (sempre acompanhando o sindicato) que tenha anotado em seus relatórios qualquer observação sobre má-conduta dos médicos? c)Será que o CREMEPE ignora que “o exercício profissional da medicina” envolve sobretudo a má-conduta, o descaso, a desídia, a irresponsabilidade, o erro de qualquer origem cometidos pelos médicos? e)Quando a mídia “denuncia” a falta de atendimento nos hospitais públicos por inexistência de médicos nos plantões, porque não se investiga e representa contra os médicos faltosos? f)Será que os órgãos responsáveis ignoram que a falta dos médicos em sua escala de plantão está enquadrada no Código Penal como “omissão de socorro” e dá cadeia? g)Será que os doutores ignoram que receber uma remuneração (salário) sem entregar uma mercadoria (trabalho) é ROUBO? h)Será que alguém neste pobre país ignora que os únicos profissionais que exigem o pagamento antes da entrega do trabalho são os anestesistas que, da forma mais grosseira, além de não aceitarem qualquer plano de sáude dirigem-se ao quarto do paciente, na hora da operação,com o recibo na mão e ameaçando que só executam o procedimento se receberem? i) Será que os profissionais da medicina já ouviram falar num tal de CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA, mesmo por ouvir dizer? Agora é com o Poder Público!: j) Se todo mundo é consciente dessas inocentes indagações, porque somente agora o Poder Público despertou para a grande realidade de que o fulcro da questão é a falta de médicos e não de equipamentos? k) Será pela força e prestígio da categoria, sabido que o Deputado Federal do PT Arlindo Chinaglia, médico paulista e na ocasião Presidente da Cãmara e hoje Líder do Partido, é autor do Projeto de Lei nº 65/2003 (pra quem quizer consultar no site da Câmara)que propunha a proibição da criação de novos cursos de medicina e também a ampliação do número de vagas nas escolas de então. Estamos pagando o preço até hoje? l)Porque o preconceito com os médicos estrangeiros sobretudo o inexplicável questionamento da medicina cubana uma vez que todo o médico está careca de saber que Cuba detém os melhores índices de saúde do mundo (dados da ONU), a começar pelo da mortalidade infantil que nem o impiedoso bloqueio americano conseguiu impedir? m) Porque os médicos não abrem o jogo e explicam que a razão primordial de suas permanências nas cidades grandes é a possibilidade de somar matrículas em diversas instituições que somam mais do que as 24 horas do dia e para isso sempre se dá um jeitinho? n) Porque ninguém pensa no interesse da população, como Dra. Fátima denuncia. Só porque é coisa de pobre? Parabens, Dra. enquanto existirem pessoas como a senhora, temos a necessidade de acreditar no Brasil e deixar à margem os egoistas que só lutam pelo seus interesses. Com todo o respeito, um grande beijo no coração. Ivan Rodrigues
Cara Maria de Fátima :
Creio que sua intervenção em muito enriquece o tema levantado pelo Editorial, trazendo informação complementar e, através da controvérsia, esclarecendo nossos leitores, objeto final da Revista Será?
Parabéns a você, como médica, ter profunda visão e sensibilidade sobre o papel do médico e da medicina na sociedade.
João Rego
Meus parabéns, Fátima. Que bom ler você. Fui às ruas na primeira manifestação, indignada com estes falsos dilemas que nos são colocados.
Um abraço
Sonia Marques
Atordoado por ler todos os comentários fiquei achando que “Sera?” levantou uma grande lebre. São tantos e diversos os argumentos de 1 a 10!
Parabéns para a Revista.
Acho, modestamente, botando lenha na fogueira, que:
1) O busílis é saúde pública. Saneamento básico, nutrição adequada, educação profilática, mudança do que se ensina nas Faculdades da área de saúde, sobretudo a de Medicina.
2) A falta de formação humanística desde antes dos processos de ingresso na graduação e nesta, pior ainda, reduziu a percepção holística da saúde. O fetichismo tecnológico incapacita o diagnóstico do médico de maleta na mão, batendo em seus dois dedos na barriga do paciente e ouvindo-o em anamnese empática. Nada contra a tecnologia, por favor.
3) Um novo modelo de prestação de serviços de saúde pelo Estado deve ser pensado e não sei qual é. O americano está se debatendo entre republicanos e democratas; o inglês, instituído pelos Trabalhistas no após guerra – aquela a segunda mundial— capengou depois da Dama de Ferro e da falta de grana quando do desnudamento da especulação financeira quebrou a fantasia dos Irmãos Lechman. Cuba, sem a URSS e o finado Chávez, precisa exportar seus profissionais.
4) Deveria ser perseguido o velho Desenvolvimento Econômico. Lembram-se disso?
É do tempo de Celso Furtado. Caiu em desuso depois das políticas compensatórias. A magistral Naíde Teodósio (ver Google.com) contou-me sobre uma comunidade na Zona da Mata de Pernambuco em que crianças, engatinhando, iam para o terreiro onde havia pés-de-pau de Umbu se abastecer de nutrientes como cálcio, ferro, proteínas. fósforo e vitaminas. Sem ninguém mandar.
5) Esse lance demagógico de obrigar a servir ao SUS por dois anos é inconstitucional.
6) A classe média que tem acesso à Faculdade de Medicina quer Albert Einstein, Sírio-Libanês ou, quem não pode, o chamado Polo Médico Pernambucano. Apesar de Prefeituras de cidades menos votadas oferecerem dez mil mensais para recém-formados quase todos não aceitam. Mesmo os advindos de Serra Talhada, Moreilândia ou Limoeiro.
7) (Quem sou eu para chegar em 10)? Fico por aqui.
No meu modesto entender o problema é muito mais complexo. Claro que faltam médicos, hospitais, equipamentos, medicamentos e outros, mas falta mesmo é planejamento de verdade, vontade de fazer certo.
Quando a “presidenta” fala em grotões, tremo na base. Como simplesmente aceitar que existam comunidades vivendo em grotões? O interior do Brasil é maravilhoso, viver longe das metrópoles pode ser muito bom, vive-se mais devagar, melhor. Precisamos distribuir melhor as oportunidades de emprego, apoiar o crescimento de cidades médias, que devem ter pequenas comunidades ao seu redor, mas nao grotões! Falta transporte de qualidade dessas comunidades para as cidades médias. Bem distribuídas, essas cidades teriam universidades, hospitais de alta complexidade, equipamentos de lazer, condições de se morar bem e de atender às comunidades vizinhas. Os grandes centros agradeceriam também. Não é trazendo médicos que se submetam ao sacrifício de viver nos “grotões” que o problema da saúde vai ser resolvido. Falta tanta coisa no nosso Brasil, que sem uma decisão firme e séria de repensar o Pais, de se planejar a longo longo prazo, ficaremos sujeitos à modismos, imediatismos e atitudes eleitoreiras que só ajudarão à existência de mais grotões!
As questões levantadas por Maria de Fátima Amorim polemizaram e esclareceram o parágrafo provocativo que escrevemos. Nessa semana o editorial de nossa revista atingiu seu objetivo em grande estilo: o de questionar o senso comum, provocar discussão, pois é dela que nasce compreensão, necessária para as políticas públicas. A dúvida que nomeia nossa revista – Será? – foi o motivo maior que nos levou à aventura de inventá-la, e ficamos amplamente compensados (aqui, não tenho dúvida que expresso o pensamento de nós cinco) quando podemos ler e aprender num debate desse quilate. Compreender por Maria de Fátima as nuances da medicina primária e terciária. Ler Ivan Rodrigues pegando essa bola para arremessar em outros campos (do corporativismo médico, por exemplo), com a perspicácia de quem, não sendo médico, tem a sensibilidade do gestor público. David Hulak, com a leveza de sua escrita contraposta ao rigor de sua análise, entrou no jogo enumerando sete pontos, dentre os quais a importante questão da saúde pública. E Maria Elizabeth Freire joga a bola em outro campo ainda, incomodada com os “grotões” apregoados pela presidente. Que venham mais comentários.