Hoje no hospital como acompanhante, há dois anos como paciente. A mesma cena: ou você liga a televisão em alto volume para ficar com seu som privado, ou é obrigado a ouvir a conversa alheia. Enfermeiras, faxineiras, pacientes, acompanhantes, como se o lugar fosse uma feira. Será que sempre foi assim? Nos hospitais de antigamente, os corredores eram brancos, as portas azuis e, por toda a parte, um quadro pendurado na parede: a figura de uma mulher (freira ou enfermeira?) com o dedo na boca dando ordem de silêncio.
Outro dia, na Livraria Cultura. Ia comprar o jornal Valor Econômico, mas estava com tempo para um passeio pelos livros. Com meia dúzia deles, sentei-me para folhear. Nesse agradável mergulho nas letras, eis que se planta na minha frente uma moça para resolver questões de seu trabalho ao telefone celular. Aquilo me deu imensa revolta e me senti impotente, até descobrir, tal como se descobrem na humanidade soluções frente às dificuldades, até descobrir como fazer para não ser atrapalhada. Comecei a ler alto, numa altura maior do que a fala dela ao telefone. Essa passou a ser minha arma.
A nossa transformação de país rural para urbano veio acompanhada de ruídos. Fazem parte de nossa cultura tropical. Na Garanhuns de minha infância e adolescência, éramos obrigados a ouvir os alto-falantes colocados em pontos estratégicos da cidade, com músicas e propagandas. Um deles ficava em frente à minha casa e eu costumava ir ler no fundo quintal, onde o silêncio se misturava ao vento, cachorro, galinhas, passarinhos.
Na sexta feira da paixão não tinha propaganda e tocava música clássica. Como o dono das músicas em Garanhuns só possuía o disco “Lago dos Cisnes”, éramos obrigados a ouvi-la de manhã à noite. Dr. Mário Matos, meu professor de biologia, contava de sua terra, Serra Talhada. Quando foi lançada a música Cintura Fina cantada por Luiz Gonzaga, o pároco achou-a indecente e proibiu. Um tempo depois, o padre foi substituído por outro mais moço. Consultado sobre a prévia proibição, disse não ver problema com a música. Naquele dia, Cintura Fina tocou o dia inteiro.
Um ingrediente novo no ruído urbano, captado no filme de Kleber Mendonça Filho, não anula os anteriores, mas a eles se acresce: a tecnologia. O barulho do mar foi capturado há muito pelo som da música, que na verdade não passa de um ruído de mau gosto nas praias urbanas do Brasil, sobretudo do Nordeste, mais tropical, mais barulhento. Corremos para as praias silvestres com alguma esperança, até que chegam uns boys, abrem o porta-malas do carro e disparam o ruído.
A televisão é o maior vilão. Não existe mais sala de espera de qualquer repartição, consultório médico, laboratório, sem a TV ligada e as pessoas hipnotizadas em frente à telinha. Ou conversando ainda mais alto para serem ouvidas. Uma cena na histórica Olinda: as pessoas com cadeiras na calçada, à brisa do mar que chega ali em todas as ruas. Outrora, a conversa do fim do dia, uma confraternização de familiares e vizinhos. Desde a universalização da televisão, a conversa fragmentada, apenas nas propagandas do intervalo.
Não é somente o hipnotismo da tela colorida. É o domínio da Rede Globo. Isso é preocupante. O mundo dos interesses privados invadindo quase todos os lares brasileiros.
A palavra de Deus, no medievo tão silenciosa e bonita nos Cantos Gregorianos, virou gritaria, com alto-falantes voltados para quem quer e quem não quer ouvir. E nós vamos, assustadoramente, virando minoria. “Os incomodados que se retirem”, parece nos dizer a maioria barulhenta. Para onde vamos?
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