Aécio Gomes de Matos

Já me habituei à crescente degradação das nossas cidades na Região Metropolitana do Recife. Quando volto de pequenas viagens a outras cidades, sempre fico chocado ao ver o lixo espalhado nas nossas ruas e praças, buracos na pista, falta de sinalização clara, carros e caminhões estacionados em locais proibidos, em fila dupla, a precariedade das calçadas. Um caos. Eu tenho mesmo me esforçado para não ver, não olhar pra essas coisas negativas. Sei que não é bom para a saúde se fixar nos aspectos negativos do cotidiano. Haja estresse. Tenho vontade de voltar pro Crato, pra minha pequena cidade limpa e florida e ficar só batendo papo nas praças e achando graça das presepadas dos amigos.

Mas nem sempre esse esforço de evitar sentir as coisas negativas dá certo. A gente termina surpreendido com novas façanhas que aparecem na vida urbana, cujos significados não são tão evidentes. Vejam vocês que, aos poucos, fui começando a notar a presença crescente dos caminhões caçamba nas ruas do Recife. Primeiro, porque eles são muito agressivos no trânsito. Grandes, pesados e imprudentes, terminam amedrontando e tomando as iniciativas na ocupação dos espaços, inibindo os motoristas comuns. Depois, porque cada vez eles estão em maior número no cotidiano Metropolitano. É impossível não notá-los. Quando vejo um, já tomo minhas precauções, reduzo a velocidade, mudo de faixa, me inibo, como todos.

Mas, além da intranquilidade no trânsito, essa movimentação de caminhões tem outras consequências, das quais dificilmente nos damos conta num primeiro momento. Só aos poucos eu mesmo fui me questionando e pensando com meus botões: – pra onde vai tanto barro, tanto entulho? De onde vem? Percebi então que essas questões apontavam para uma lógica urbana perversa que me passaria despercebida, não fosse a exuberância desses gigantes a me incomodar como motorista.

De fato, além do que aprontam no trânsito, a circulação dessas figuras mastodônticas tem repercussões mais graves sobre a vida urbana do que a vã filosofia pode mostrar. As montanhas de barro, areia, restos de construção, deslocadas ao sabor de interesses privados, servem para nivelar um terreno, fechar uma vala, reduzir um curso d’água, aterrar uma área de mangue. Além disso, é preciso se dar conta também que, tão grave quanto o depósito indevido dessas cargas, é a falta que esse material faz no lugar de onde vem sendo retirado. O corte de um morro ou a dragagem de um rio podem trazer consequências graves ao meio ambiente, à sustentabilidade dos solos urbanos e rurais. O certo é que a topografia vai mudando ao sabor de interesses localizados, em arrepio das determinações dos planos diretores das cidades, dos códigos ambientais. Uma mudança que vem cada vez mais em prejuízo, tanto dos locais onde se extrai barro e areia, como nas ruas, terrenos e habitações urbanas que ficam alagados com as chuvas ou aterrados no desmoronamento de morros. Tudo vai ocorrendo no dia a dia como se as autoridades não enxergassem as mudanças cotidianas do ambiente, da mesma maneira que nós, vis mortais, as sentimos na crescente degradação nas cidades e no campo. São toneladas e toneladas de material de aterro que mudam de lugar todos os dias nas caçambas desses caminhões que carregam pelo menos dez toneladas a cada viagem. A topografia dinâmica da região metropolitana vai assim sendo delineada ao sabor desses movimentos, aparentemente sem controle.

Sem controle? Será que essas caçambas carregadas circulam como formigas escondidas por baixo da grama, pela falta de um olhar atento das autoridades? Essa cegueira, é bem verdade, parece acometer também a maioria da população. Não vejo ninguém se queixando dos riscos dessas mudanças na topografia metropolitana. Nem mesmo na época das chuvas, com a invasão das águas e os desmoronamentos, as pessoas se questionam sobre as alterações topográficas resultantes desses movimentos de terra e barro. Existiria alguma relação entre a falta de controle das instituições públicas e a falta de sensibilidade da própria população para esses fenômenos? É possível.

Passei algum tempo me perguntando se essa minha impressão da falta de controle era verdadeira, ou se era apenas uma reação ao meu incômodo no trânsito. Para dirimir essa dúvida, tive o cuidado de procurar a legislação que regula a extração e transporte desse tipo de material e fiquei impressionando com os níveis de exigência e dispositivos de controle a cargo das agências federais, estaduais e municipais. Considerando, por outro lado, o padrão informal da identificação dos caminhões que eu vinha observando na rua, fiquei matutando, … até que ponto aquelas exigências legais e normativas estariam sendo consideradas na prática.

Pensei em fazer uma pesquisa rápida, mas para isso precisaria pegar informações de quem não teria interesse em dar conhecimento do que se passava na prática. Foi aí que encontrei um estudo do inicio da década passada onde a própria CPRM (Serviço Geológico do Brasil, antiga Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais) – Projeto Singre II, constatava que “As empresas cujas atividades têm registro … compõem uma parcela pouco representativa … um número expressivo de lavras opera de forma clandestina, principalmente as extrações de barreiras de argila, estas para uso em aterro”. Em estudo mais recente, de 2012, essa mesma conclusão foi sustentada por Eduardo Paes Barreto em artigo publicado na Revista UFPE, ressaltando o caráter informal predominante na extração de areia e argila na RMR.

Ora, não há transporte legalmente regular de material extraído do solo se a jazida de origem não é regular, seja um morro, um rio, uma mina. E agora? Apesar da existência de todo um sistema de controle ambiental e urbano altamente sofisticado, com leis de uso do solo, planos diretores e com exigências de projetos sofisticados sobre qualquer intervenção urbana, aparentemente o que predomina é a informalidade e a falta de controle.

… e o grandes caminhões caçamba se tornam invisíveis. Haja oculista.