Teresa Sales 

O nosso país vizinho, o pequeno e bravo Uruguai, teve três destaques importantes no cenário mundial a partir da primavera desse ano. Na 68ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, o presidente José Mujica pronunciou um discurso de mais de 40 minutos, de grande repercussão pelo seu caráter humanista. Foi motivo de nosso editorial de quatro de outubro, “O profeta que veio do Sul”.

Ouvi de novo pelo Youtube, com a mesma emoção da primeira vez. Discurso de estadista, aborda a política para além do jogo de poder cotidiano. Como na passagem em defesa da luta pela tolerância para com os distintos, como pressuposto para se viver em paz. Ou quando preconiza que “nem os estados nacionais grandes, nem as transnacionais e muito menos os sistemas financeiros deveriam governar o mundo humano, mas sim a larga política entrelaçada com a ciência”.

Meses depois, o presidente uruguaio volta a colocar o seu país em destaque, dessa vez com um tema altamente controverso. Promulgou a lei que institui e regula o mercado de maconha no país. Aprovada pelo Senado uruguaio no dia 10 de dezembro, a lei foi assinada por Mujica na véspera do natal, conforme afirmou à agência norte-americana de notícias Associated Press o chefe de gabinete do presidente, Diego Canepa, notícia reproduzida pela nossa imprensa local.

Houve intensa mobilização dos movimentos sociais, desde a discussão do projeto de lei no Congresso uruguaio. Uma multidão fez vigília no Senado, na sessão que legalizou a maconha. Na camiseta de um dos manifestantes lia-se “no more drug war”.

Esse foi um dos motivos que levou o presidente a sancionar a lei. Ele diz que é contra o uso da maconha, mas o considera um mal menor diante do narcotráfico. Para ele, o narcotráfico é pior do que a própria droga. Nosso conselho editorial já se manifestou sobre o assunto em editorial, por ocasião da aprovação da proposta do governo pela Câmara dos Deputados. “O governo uruguaio entende, corretamente, que o problema das drogas não reside no seu consumo, mas no tráfico e no controle ilegal da produção e da comercialização, o que gera toda forma de violência”.

Com essa lei, o Uruguai passa a ser o primeiro país do mundo, ainda segunda a Associated Press, a manter um mercado legal da erva que regulamenta e controla desde o cultivo até sua venda ao público, a ser realizada por uma rede de farmácias ainda a ser instituída. Cada pessoa pode comprar até 40 gramas de maconha por mês. A lei também autoriza cada família interessada a plantar e colher até 480 gramas de maconha por ano. Ainda é preciso definir alguns detalhes práticos do mercado de maconha no Uruguai. A expectativa é de que ele comece a funcionar já no primeiro semestre de 2014. Com a promulgação, porém, cidadãos uruguaios que quiserem plantar Cannabis já podem iniciar o cultivo dentro dos limites legais.

A questão central que levou o governo uruguaio a chegar à etapa final do projeto de lei parece residir, portanto, no fracasso da guerra contra as drogas pela via da proibição e da repressão. A experiência de mais de 20 anos mostra que a guerra às drogas, que se espraiou da era Bush II para outros países, tem sido uma guerra perdida. Até agora só favoreceu ao tráfego organizado. A seriedade da questão já fez com que dois ex-presidentes da estatura de estadistas, Fernando Henrique Cardoso e Bill Clinton, tomassem posição pública a favor da descriminalização da maconha.

Finalmente, o terceiro destaque do Uruguai no cenário internacional é a sua escolha, pela Revista The Economist, como o país do ano de 2013. Essa escolha decorreu não apenas dessa corajosa discussão na sociedade que resultou na lei que institui e regula o mercado da cannabis no país. A matéria refere-se também à figura do presidente Mujica. “Franqueza incomum para um político. Vive em uma casa modesta, dirige um Fusca antigo e voa na classe econômica”.

A revista há muitos anos defende uma mudança nas políticas de combate às drogas baseadas na repressão, por considerar que fracassaram. E conclui o editorial numa exaltação ao Uruguai: “Modesto, mas corajoso, liberal e amante da diversão, o Uruguai é nosso país do ano. Felicitações!”

Nesse artigo, porem, não quero ficar apenas no elogio ao país irmão. Gostaria de levar adiante uma discussão sobre a questão da descriminalização da cannabis. Tentar responder a indagações sobre o que viemos escrevendo em nossa revista, sobretudo questionamentos de nosso colaborador e leitor atento Fernando da Mota Lima.

Pelo que venho acompanhando da discussão sobre a descriminalização da maconha, acho que a questão tem outros aspectos além da ineficácia das políticas de combate às drogas baseadas na repressão dos envolvidos no tráfico e consumidores.

O narcotráfico é um dos principais motivos da violência em nossa sociedade. Que é decorrência do próprio tráfico e sua repressão. Não no consumo em si da maconha. Refiro-me aqui, repito, apenas à maconha. A violência doméstica, por exemplo, violência contra mulheres e crianças, está frequentemente associada ao consumo “lícito” de bebidas alcoólicas. Igualmente acidentes e morte no trânsito.

A maconha é droga de paz e amor. Na “viagem” divertida e alegre de seus consumidores. Às vezes, no prazer criativo. Uma bem sucedida iluminadora de teatro de São Paulo, refletindo sobre sua experiência pessoal: o consumo de cocaína, por exemplo, é capitalista em seus efeitos, ao contrário da maconha, droga anticapitalista. O consumo de cocaína é até simuladamente estimulado em certos ambientes de trabalho no meio artístico, quando existe limitado prazo para a entrega de determinadas tarefas. Trabalha-se com prazer, incansavelmente. Já a maconha, tudo ao contrário. Puro lazer no devaneio prazeroso.

Sabe-se, por estudos da medicina, que tem os mesmos efeitos maléficos quanto aos riscos de doença de pulmão. Mas ninguém fuma maconha com a intensidade do fumo careta. Na medida da legislação uruguaia, é suficiente com folga para as viagens de lazer propiciadas pelo consumo da erva.