Recife, 22 de março de 2014.
Ao meu amigo David Hulak que teve parentes
incinerados nos fornos crematórios, durante o holocausto.
Peço licença aos leitores para apresentar algumas reflexões, que considero importantes, para aprofundarmos um pouco mais o nível da compreensão (e discussão) sobre o universo da política. A primeira é sobre a relação entre políticos e eleitores.
Esta é uma relação antiga que só a fome: sempre haverá aqueles que dominam e aqueles que são dominados. Antes do surgimento das instituições democráticas, as que temos atualmente, esta separação se dava na base da porrada mesmo. A história da humanidade, vista dessa ótica, é um enorme rio de sangue e crueldade que, incessantemente, verte sobre o domínio do tempo as guerras e as atrocidades do sujeito humano (?). Isto denuncia que nossa humanidade é uma visão idealizada, falsa, a qual, o processo civilizatório[1] tenta, de forma desesperada, domesticar, controlar ou, em alguns casos, empurrar para baixo do tapete.
Querem uma pequena e pungente amostra? Leiam É isto um homem? De Primo Levi, jovem engenheiro químico italiano que passou um ano em Auschwitz.
Penso aqui na neurose como um desses elementos que nos constitui como sujeito e que o processo civilizatório, necessariamente, empurra para baixo do tapete do nosso inconsciente.
Este é também um dos pontos mais forte da obra de Freud O mal-estar na Civilização: um conflito entre a pulsão e a civilização, duas vertentes que desde que surgiu o primeiro homem – aquele que se levantou, ergueu a coluna e saiu andando em pé, deixando seus irmãos primatas para trás- vem forjando nossa “humanidade”.
Pensem em duas cobras brigando embaixo de uma “toiceira” de aveloz, entrelaçadas numa luta feroz e interminável; assim a pulsão, aquilo que tem de mais primitivo em nós, em contraposição à civilização, este belíssimo esforço criativo da humanidade.
Estas duas serpentes estão lutando incessantemente, dentro de nós, com os nossos desejos interditados; estão na sociedade contidas pelos aparelhos de Estado que, com o uso da Lei tenta segurar a besta que é braba e se reproduz a cada ser humano que nasce. O rastro dessa luta pode ser visto por toda a história da humanidade, embora haja um esforço enorme em apagá-lo. Por quê? Dresden foi milimetricamente reconstruída depois do bombardeio na segunda guerra. Esta é a mesma de antes da guerra? Ou cada tijolo, cada pedra, carrega os traços de uma vergonha encobridora do trágico que é ser humano?
A Civilização, com sua produção tecnológica, suas formas modernas de administrar o poder, suas comoventes criações artísticas como a música, as artes visuais e a literatura; e a pulsão com suas guerras, com a perversidade do homem sobre outro homem. O mal, o horror. Este é o nosso indissolúvel mal estar.
O percurso que nos levou do tacape ao voto é uma construção de séculos. Devemos venerá-lo, pois há aí um duro aprendizado da humanidade. Um esforço gigantesco para chegarmos às modernas democracias ocidentais.
Mas, e por que sempre temos a impressão de que os políticos são falsos, enganadores, ladrões, etc., etc.? Primeiro porque estamos aprisionados em uma visão idealizada da política, assim, como da religião – outra parte importante dessas serpentes – e esperamos, sempre, por um pai bondoso e protetor (um líder carismático) que venha nos guiar por um caminho seguro, diante deste vale de lágrimas que nos foi dado viver.
Não há Pai. O Pai está morto.
Estamos sós com a nossa humanidade imperfeita, mas sempre cheia de esperanças e recomeços. Compreender isto é um importante passo para atuarmos como cidadãos diante do processo politico, sem chiar, sem reclamações infantis e desemparadas de qualquer maturidade política.
Mas, o que faz um político e um eleitor, um que busca conquistar o poder e exercê-lo, e outro que não se sente minimamente atraído por isso, satisfeito e completo que está com seu cotidiano?
Esta é uma pergunta complexa, que não cabe responder aqui neste pequeno espaço, nem sequer apontar alguns caminhos. Nem sei se é possível respondê-la de forma satisfatória. De uma maneira bem simplificada, pode-se dizer que são as circunstâncias históricas, sociais, e, a mais importante, as individuais. O desejo que forjou um não é mesmo que constituiu o outro. Quem estava de um lado quando jovem, hoje adulto ou velho se encontra do outro, feliz e acomodado; as gerações se sucedem, as ideologias – obsoletas, profundas ou superficiais – fazem a roda da política girar tentado imprimir algum sentido que seja minimamente digno de se inscrever como história.
DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com
[1] Usamos aqui o mesmo sentido de Kultur, utilizado por Freud em o Mal Estar na Civilização, tudo que criamos e que nos distingue dos animais.
Prezado João,
A sua bem escrita reflexão envolve uma inquietação universal. A chave de tudo reside na missão de cada um nesta vida. É importante lembrar que a vida tem continuidade e acreditar nisto. Senão fica extremamente difícil suportar tanta iniquidade. O que ilumina essa
caminhada da existência nos foi colocado há cerca de dois mil anos atrás. É preciso ter fé. Não consigo entender o mundo sem estes ensinamentos que vêm dessa nova ética. Alias, em nome dela também muita atrocidade e desrespeito ao ser humano foram cometidos.
Bem, a sua reflexão constitui um grande dilema.
Obrigado por trazer à tona essas preocupações.
Caro José Wilson:
Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, não sou um pessimista, muito menos um niilista, apenas vejo que por conta de certezas cegas – como as que a religião e certas ideologias arcaicas nos impõem – podem dar ao homem uma impressão ingênua da sua inserção como sujeito humano no social.
A democracia, como disse, deve ser venerada e protegida pois tem um valioso mecanismo regulador da incerteza, do convívio com a diversidade e do respeito ao outro.
Um forte abraço e saudações a todos da sua família.
Entendo que tudo se resume no “poder”. Poder ter, poder ser.
Democracia, religião, voto…é o desejo de dominar, com a “perversadase de um homem sobre o outro”.Usa-se até a fé como meio, a exemplo da inquisição, só Jesus salva, os infiéis devem morrer, etc.
“Estamos sós com nossa humanidade imperfeita, mas sempre cheia de esperanças e recomeços”. Mas são imperfeições e recomeços acima do aceitável e é por isso que sempre achamos que os políticos são falsos, enganadores e ladrões.
Não sou pessimista mas ao mesmo tempo não tenho fé.
Acho que não entendi muito bem a sua reflexão.
Boa Noite
Tanatos e Eros, ditadura e democracia? Acho que foi isso que entendi, no texto meu caro João Rego Melhor que o Bem e Mal, né?
Existirá Poder total, absoluto nas pulsões de Eros? Talvez no indizível orgasmo de viver em liberdade.
Após a anistia e a Constituinte muitos pensavam ter gozado num idílico romance.
Foi ejaculação precoce com fantasias pelo meio, tipo Diretas Já. Mas o importante deve ser continuar tentando.
O relevante será que as gerações pós- sobreviventes da época dos que cultuavam a morte e davam as cartas, avaliem o prazer da democracia, da liberdade de expressão, do contraditório com respeito, do ir e vir, de eleições limpas, da capacidade de protestar e quem quiser acrescente fique a vontade, pois democracia tem muitos prazeres a conquistar.
Os que sabem por ter vivido a ditadura precisam sim não deixar esquecer como os judeus o fazem sobre o holocausto apesar de vários dessa etnia achar que chega, constrangidos.
Do not forget. Nem Auschwitz, como Primo Levi fez e que tanto impressionou João Rego; nem o DOI-CODI; nem a Espanha de Franco, nem, nem, nem, nem…
Por sinal nas efemérides do cinquentenário tenho ouvido a tentativa de diferenciar o golpe e da ditadura. Vôte!
No princípio seria apenas para garantir que não haveria uma nova Cuba e também as eleições de 1965. Houve quem acreditou e, perigo, haverá quem acredite.
Entre o “salvador” AI-1 e o 2, o que tirou a mascara, já prendiam, matavam, torturavam, censuravam, cassavam e tomavam as medidas levaram à falência a Ultima Hora, o Correio da Manhã, o Diário Carioca.
A pulsão da morte é insidiosa, pode chegar disfarçada como um enfarto silencioso, sedutora como uma Dalila, falsa como uma nota de três reais.
Li que Miguel de Unamuno chegou a apoiar o golpe militar de Franco. Mas, rapidamente, caiu-lhe a ficha.
Quem? Miguel o que? perguntaria alguém sem a cultura dos leitores de “Sera?”.
Diria então que é um dos símbolos da pulsão de Eros contra Tanatos.
Estavam na Universidade de Salamanca ele, Reitor, e mais professores e alunos, além de falangistas uniformizados na comemoração do Dia da Raça (a espanhola). Havia também um general, um tal de Milan Astray cuspindo sangue e prometendo extirpar o câncer basco, catalão e gritou ‘Viva a la Muerte!
Unamuno abespinhou-se e retrucou, veemente que não permitiria esse absurdo naquela casa da inteligência.
Ouviu de lá: Abajo la inteligência! E a repetição do Viva a la Muerte enquanto o general e o seu séquito fazia a saudação fascista.
Unamuno foi recolhido à prisão domiciliar e morreu um ano depois, parece. Mas não calou e deixou uma frase célebre e combativa:
“Há momentos em que calar é mentir. Porque o silêncio pode ser entendido como aquiescência.”.
PARA DEIXAR CLARO TUDO ISSO QUE ACABEI DE LER
( CHAMA-SE EGOISMO)
E DEMOGRACIA ESTAMOS MUITO LONGE.
João Rego, obrigado. Penso que a humanidade caminha na direção ascendente. Depois da teocracia, vencemos o despotismo esclarecido e superamos a burocracia totalitária. Após os direitos fundamentais do homem, consagramos o constitucionalismo e elegemos a democracia como valor político.
A relação entre político e eleitor está mais transparente, agora, com a tecnologia da informação e da comunicação – TIC. O controle social é mais aberto. A sociedade tem uma esfera de defesa, o Ministério Público. A liberdade continua chama acesa e preservada nos minaretes da imprensa.
A meu ver, o maior obstáculo a confrontar, no Brasil, é a corrupção. Sou otimista. A decência é incontornável.