15 de maio de 2014
Estava escrevendo um artigo sob o impacto das recentes notícias, quando recebi pela internet (para discussão entre nós, editores da “Revista Será?”) a Opinião da semana, escrita pelo editor mais constante nessa coluna, Sérgio Buarque. Sem combinação prévia, terminamos fazendo contraponto em torno de um mesmo sentimento de incerteza, que nesse momento inquieta tantos brasileiros.
Que seja então esse artigo apenas um comentário à Opinião.
A indignação, a incerteza e a revolta são a cara do Brasil atual. Desde quando? Se formos pensar ao curto prazo, do início do século XXI para cá, digamos, tais sentimentos têm um marco. Começaram e vêm se agravando no governo Dilma Rousseff. Produto de seu desgoverno, como afirmam alguns? Não só.
Não que antes inexistissem insatisfação e indignação com os governos de Fernando Collor de Mello, de Fernando Henrique Cardoso, de Luiz Inácio Lula da Silva, só para citar os últimos presidentes eleitos pelo voto direto no período de redemocratização após a ditadura militar. São novos, porém, os ingredientes de violência social bem expressos na Opinião dessa semana. No título, o texto toma de empréstimo um adjetivo usado por Clemente Rosas para caracterizar o Abril de 1964, quando a truculência das forças militares se voltaram com armas contra uma manifestação estudantil, matando dois estudantes. Sei que a intenção do escritor da Opinião não foi essa, de igualar os dois momentos. Mas a comparação aqui pode ser esclarecedora.
Abril despedaçado. Brasil despedaçado?
Já se vai meio século de história. O divisor de águas é grande. Enorme, se considerarmos a mudança dos atores sociais. Naquele momento, a sociedade brasileira estava organizada em vários segmentos das classes sociais: camponeses, operários, parcelas da classe média, estudantes. “Amparados”, é certo, por governos progressistas (marca de nascimento de nossa democracia: a promiscuidade do público com o privado). Essas eram as forças sociais despedaçadas pela ditadura.
E hoje? Qual é o Brasil despedaçado?
A violência agora, rompendo o Estado de Direito instaurado pela Democracia, está no seio da sociedade, numa massa ainda disforme. E mais: existe hoje um poder privado paralelo que funciona nas favelas e nas áreas pobres de quase todo espaço urbano de nosso país, em contraposição ao poder público legitimamente constituído.
Seria essa violência do lado da sociedade que se manifesta nas ruas apenas uma decorrência da truculência do estado, como querem crer alguns? Uma coisa é certa: o estado atual, através de suas instituições encarregadas da ordem pública, não é o mesmo estado repressor da ditadura militar. Existem agora prerrogativas da sociedade civil, direitos, instituições democráticas, sem solução de continuidade com o Estado de exceção ditatorial, mesmo que dele preservando alguns vícios (desde a era Vargas).
E daí? A sociedade está se despedaçando. O dicionário Aurélio cita um bom exemplo para o verbo do qual se origina o adjetivo. “Quando este mar embravece, vergalhões como montanhas despedaçam-se com fúria nas falésias maciças (Raul Brandão: As Ilhas desconhecidas).
A fúria desses vergalhões nas falésias maciças vem de onde agora? Justamente quando se conquistou, com a democracia, direitos que estavam represados por duas décadas sob governos ditatoriais? Justamente. Essa dialética faz parte das conquistas sociais na democracia. Na ordem privada, que predominou por tantas décadas em nossa res pública, o gigante estava adormecido. As conquistas sociais, os direitos outorgados, são condições necessárias, embora não suficientes, para que a sociedade se mobilize em busca de mais e melhor.
O governo Lula, cooptando sindicatos e movimentos sociais com benesses e carisma, manteve a sociedade em rédea curta. As classes empresariais, sobretudo do setor bancário, dormiam em berço esplêndido. Fosse eleito governo (Dilma Rousseff) ou oposição (José Serra) para presidente da república em 2010, era esperável uma explosão da sociedade. Abriram-se as comportas das represas e as condições tornaram-se suficientes para a água transbordar.
O hiato entre “o diabo solto no meio do redemoinho”, no dizer de Guimarães Rosa, e a campanha eleitoral que já corre solta, é gritante. Como se fossem duas linguagens que não se entendem por falarem diferentes idiomas. Em ano eleitoral, em ano de Copa (dois espelhos, um para dentro e outro para fora do país), a sociedade vai sem dúvida agitar-se mais do que no junho de 2013. Despedaçando-se, sim, porém em sentido muito diverso daquele abril de 1964.
Parecido com o tempo sombrio da ditadura, apenas a incerteza. Porque agora também não sabemos os próximos passos. Sabemos apenas que o gigante acordou, carregando as mazelas antigas de nossas profundas desigualdades e iniquidades. Uma raiva explodindo sem violência, com violência, mas fora das instâncias representativas da democracia.
Não discordo mas sim complemento. Nossos problemas começaram quando “fomos descobertos” e para cá vieram os degradados. Mas não é só isso, nos espoliaram para que um Rei fraco fugisse de Napoleão Bonaparte, removendo os donos de seus imóveis. A primeira dívida externa, com os Ingleses, veio com as caravelas portuguesas do Rei fujão. A dívida externa cresceu com a criação de uma capital sem sentido. Mas não para por aí. Veio uma revolução, não de militares mas sim de donas de casa e de empresários, para que o Brasil não virasse uma Ditadura Maxista (tipo a que constrói um super porto em um País que em nada contribuiu para o Brasil, esquecendo de aplicá-lo aqui mesmo). Passado isso e a tão decantada democracia volta, só que não sabemos para onde, o País passa a ser governado por um cidadão acima de qualquer suspeita, que exerce influência sobre os dois Estados Brasileiros mais pobres (Amapá e Maranhão). Daí em diante a memória de todos é preservada. Toleraram-se os anões do orçamento, lembram? Alguém devolveu alguma coisa ao Erário? O que dizer do Presidente da Câmara de Deputados utilizar o dinheiro da SUDENE para perfurar poços artesianos em suas fazendas? A questão para por aí? Certamente que não. A banalização da tolerância nos faz fracos. Nossa luta, sem sentido, nossos valores, escondidos para que não conflitem com os novos valores sociais, tipo o funk da ostentação. Realmente levaríamos anos para descobrir a origem do “câncer social” que estraçalha nosso Maravilhoso BRASIL Varonil. Remédios para isso há, bastando apenas varrermos para fora os verdadeiros “sem pátria” e passarmos a adotar Leis que atinjam a todos, tratando desigualmente os desiguais. Isso sim, é que é democracia. O resto, balela.
Teresa:Você tem razão ao assinalar distinções significativas entre dois tempos do Brasil “despedaçado”. No entanto, acho que sua apreciação é otimista demais ao traduzir as explosões sociais agora correntes com o despertar do gigante. Sem dúvida, ele está despertando em muitos sentidos. Mas o trote da carruagem, a julgar pelos fatos cotidianos, tende mais para a reação desordenada, para explosões sociais que, na falta de melhor expressão, designaria como movimentos pré-políticos. Um dos aspectos inquietantes dessas manifestações, como aliás ressalta o Editorial desta semana, é a violência, é a depredação anárquica do nosso frágil tecido social. Noto na revista uma concepção um tanto difusa de democracia que tende, salvo erro de avaliação minha, a confundir democracia com funcionamento das instituições políticas. Ora, isso é muito pouco para definir a estabilidade democrática de um país como o Brasil. Sustento a opinião de que a maioria, apesar do bolsa família e outras mudanças positivas, continua vivendo à margem de um Estado efetivamente democrático.
Enquanto não tivermos democracia social para valer, e estamos ainda muito longe disso, as forças de instabilidade, potencialmente anárquicas, são sempre uma ameaça possível. Minha perspectiva, como frisei discutindo com Sérgio Buarque, é a da longue durée, até porque não tenho competência como alguns da revista, para opinar com segurança sobre os processos vivos e conjunturais da política e da economia. Por observar o Brasil do ângulo acima acentuado, não consigo ser otimista. Uma análise mais adequada teria que incorporar as mudanças profundas do capitalismo global e o modo como ele funciona num país periférico como o Brasil, que nunca foi capaz de ajustar suas contas com a modernidade. Tentei sugerir algo disso no comentário que postei sob o título Consumo vs. Civilização. Desculpem o comentário demasiado longo, que ainda assim diz muito pouco do que precisaria argumentar.
Nao acho que podemos falar de despertar do gigante. Mais parece que o gigante esta se agitando, inquieto e desesperado, no meio de um pesadelo no qual nenhuma parte do corpo, do consciente ou do inconsciente coletivo se entende, mistura de movimentos sociais organizados, explosão descontrolada e dispersa de violencia que reflete uma frustração e uma desesperança pela total, com atuação do crime organizado. Falta muito para o gigante despertar deste pesadelo.
Não acredito em qualquer despertar “do gigante”, pois o Brasil será sempre um país anão no contexto da integração e globalização mundial. Um país que no século XXI ainda não investe o suficiente na educação e na saúde e se coloca entre os países mais pobres do mundo nesse contexto, como pode querer ser considerado um país emergente? Melhor seria ser considerado um país submergente, graças aos nossos iníquos e corruptos governantes que se locupletam às custas do erário e legislam em causa própria dando uma verdadeira banana à população que os elegeram que, de forma absolutamente néscia continuam a elegê-los a cada legislatura. É de dar dó! Ô povo incauto!!!! Deus do céu!!!!
Num pais em que nenhuma parte do corpo social se entende, poderia ser de outro jeito o seu despertar? Longe de casa e com esse tablet sem teclado e sem pontuacao, deixo pra dialogar com tao ricas observacoes ao meu artigo quando voltar pra casa na sexta proxima. Precisamos muito desse dialogo, pois nao tenho duvida que estamos vivendo um momento especial de mudanca social no Brasil.
Voltemos ao diálogo, agora que tenho um teclado decente para escrever. Vamos por partes:
1. O despertar do gigante. É um despertar tão esfacelado, ou despedaçado, quanto o é a sociedade brasileira. Não apenas pelas seculares desigualdade e iniquidade, mas principalmente pela opressão. Nós, da classe média ilustrada, sentimos na pele tal opressão por parte do estado ditatorial e lutamos, junto a outros estratos da sociedade, pela volta da democracia. O chamado povão beneficiou-se das conquistas sociais que lhe foi outorgada pelos governos democráticos que se seguiram a 1985, tais como o fim da inflação, a valorização do salário mínimo, os programas compensatórios às situações de pobreza.
2. Porém, a opressão que secularmente recai sobre as classes desfavorecidas é profundamente arraigada na nossa cultura política. Não apenas dos poderosos através das instituições encarregadas da segurança pública. Mas de qualquer indivíduo ou grupo social sobre outros que lhe estão abaixo. Assim tem sido. Para citar alguns exemplos: o poder privado que concorre com o estado nas favelas e áreas pobres de todo o tecido urbano brasileiro; a violência de quem está motorizado sobre o pedestre. Os exemplos seriam infindáveis. A cultura política brasileira é violenta em seu cotidiano.
3. Como esperar alguma reação da sociedade, a não ser de forma violenta? Desordenada sim, nesse momento, o que nos traz muita insegurança pela impossibilidade de vislumbrar para onde vamos. Fernando, na sua crítica, nomeia de movimentos pre-políticos, aos que estamos assistindo. E são. Não porque nos falta democracia, pois temos eleições diretas, temos as instituições democráticas em pleno funcionamento. O que estamos assistindo é a uma manifestação da sociedade querendo mais e melhor pelo que já lhe foi outorgado pelo estado. E, no bojo dessa manifestação, uma revolta difusa, revolta do oprimido contra qualquer alvo que se lhe apresente como opressor.
Amiga Teresa,
Mesmo com as suas explicações, eu me situo na linha da crítica de Sérgio. A imagem do despertar do gigante não me parece feliz. Ele não despertou, na medida em que qualquer despertar implica a retomada da consciência. E não me parecem conscientes – no sentido de orientadas para algum objetivo político – as ações a que estamos assistindo.
Diria antes que ele – o gigante – está como que tomado por um ataque de epilepsia, com espasmos e convulsões, mordendo a própria língua. Pois não é comparável a isso a atitude de destruir os próprios instrumentos de trabalho com que alimentam os filhos (os ônibus, pelos motoristas), de danificar os equipamentos de serviços públicos de que eles, os “manifestantes”, são os principais usuários, de apedrejar os carros da imprensa, cuja cobertura muitas vezes lhes favorece?
E por que essas convulsões ocorrem AGORA? A alegação da baixa educação do povo e da desigualdade, mais velha que a sé de Braga, e da qual ninguém discorda, bem como a compulsão consumista, não são satisfatórias. Afinal, de alguma forma, as duas primeiras têm até melhorado, nos últimos anos, e a última não é de hoje. A única motivação, também lembrada, dessas agitações frenéticas, que PIOROU é o mau exemplo de corrupção, leniência e mesmo deboche dos poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário. E isso me aproxima do brevíssimo comentário do meu amigo W.J. Solha (onde está ele, foi suprimido?): este é de responsablidade da cúpula da atual administração pública federal brasileira.
E como enfrentar tal estado de coisas? A curto prazo – e no longo, como disse Keynes, poderemos estar todos mortos – com a repressão. Legal, sem excessos, como for, mas repressão. Nada mais desmoralizante da autoridade de qualquer poder legitimamente constituído do quer ver policiais militares postos em fuga por delinquentes.
Melhor alguma ordem, mesmo imperfeita, do que a completa desordem. Hoje encampo esse pensamento, que durante muito tempo me cheirou a fascismo. Meu irmão Nelson Rosas, perseguido político, emigrado, hoje professor emérito da UFPB, e que ainda tem Marx como sua principal referência intelectual e política, pelo que observou na África, nas temporadas em que lá esteve como consultor da ONU,também pensa assim.
Retifico e complemento meu comentário: a observação de W.J. Solha está nos comentários ao editorial “Brasil Despedaçado”.