A violência crescente no Brasil me fez recordar uma frase famosa atribuída a um presidente da República Velha: “A questão social é uma questão de polícia”. O autor da frase, Washington Luís, expressa assim, de forma chocantemente reveladora, a mentalidade profunda da nossa classe dirigente. Ela pensava assim nos idos da década de 1920 e continua pensando tal e qual: questão social no Brasil é questão de polícia. Quando o povo tratado como gado se organiza para reivindicar o direito de ingressar no espaço da cidadania efetiva, não esta de clipe publicitário e propaganda oficial que vemos todos os dias paga pelo dinheiro do contribuinte, a classe dirigente, fiel à sua tradição, solta a polícia nas ruas, favelas, onde houver povo lutando para ser politicamente reconhecido como povo.
Quanto maior a pressão na panela, maior a força de repressão policial. Noutros termos, o governo de hoje continua fiel ao espírito da frase de Washington Luís. O mais inquietante é que a pressão na panela é crescente. Depois de séculos usando o mesmo remédio para sufocar problemas que logicamente tendem a agravar-se, o risco de a pressão estourar a panela não é nada improvável. Não me refiro a nenhuma revolução social, alerto os extremistas à esquerda e à direita. Refiro-me a uma explosão de violência cujos sinais são cada vez mais manifestos. O noticiário banal, cada vez mais um caso de polícia, assim como o cotidiano violento dos formigueiros urbanos onde se concentram cerca de 80% da população brasileira, são indícios inegáveis de um país às bordas de uma guerra civil. Somos incapazes de perceber a gravidade dessas evidências por uma razão muito simples: nossa violência está entranhada na nossa formação e história. Seres humanos tendem a ser espontaneamente etnocêntricos, isto é, tendem a aceitar como padrão de normalidade a realidade que vivem. Se vivemos num clima de violenta rotineira, como é fato, passamos a viver a violência, também a exercê-la, inconscientes dessa realidade, ou simplesmente vivendo-a e tolerando-a como padrão de normalidade.
Até Paulo Coelho, guru supremo da literatura de auto-ajuda globalizada, vaticinou há poucos dias, em entrevista difundida na internet, a violência que muitos temem sacudir a Copa do Mundo. Embora convidado oficial da Fifa, o escritor, que há muitos anos vive fora do Brasil, como tantos que podem dar-se a esse luxo, recusou o convite. Vem ao Brasil apenas quando necessário. Como o futebol da Copa do Mundo não lhe parece necessário, e nisso afinal concordo com ele, melhor guardar distância dessa festa planetária que, a julgar pela previsão do guru, vai ter mais violência do que futebol.
Já que entramos neste assunto, futebol, por que a violência se agrava nos estádios, chegando, como é agora o caso, a extremos de barbárie aberrante? Quem sou eu para explicar essas coisas, muito menos propor solução para elas. Se as autoridades e especialistas parecem impotentes para conter a maré montante, que dizer de mim? Digo apenas que o fenômeno me transporta de volta à frase de Washington Luís. Embora o problema seja de extrema gravidade, e crescentemente se agrave, a classe dirigente, fiel ao jeitinho brasileiro, continua empurrando o problema e a solução com a barriga. Dá-se um jeitinho aqui, outro acolá, e tudo continua como está. Quero dizer, piora. Agora essa evidência indesejável salta aos olhos. As medidas tomadas pelo governo são foguetório para inglês ver, como se dizia em remotos tempos coloniais.
Compreender o funcionamento social e cultural do Brasil é uma coisa tão complicada que até nos casos em que a questão é nitidamente de polícia o governo se comporta como se a questão fosse de campanha educativa, medidas paliativas, declaração pública de boas intenções (quase me escapa o desfecho das intenções com o lugar comum previsível) e exortação midiática contra a violência seguida de louvores à paz. Em suma, tudo continua como vinha. Quero dizer, continua pior.
Apesar de todo o foguetório de quase 20 anos sob o governo daqueles que supostamente constituiriam a alternativa legal para a classe dirigente que governa questão social confundindo-a com questão policial, o Brasil melhorou topicamente, evidência irrecusável, mas nada fez para sequer encaminhar as soluções estruturais mais urgentes. Depois de tanto repor o atraso como condição do desenvolvimento restrito a objetivos economicistas, apenas variando em grau a modernização conservadora imposta a porrada pela ditadura militar, chegamos ao impasse presente: a desigualdade iníqua, expressão que já virou lugar comum, atrelada a todos os problemas crônicos que vemos e sofremos nas ruas e no noticiário do dia: formigueiros humanos empilhados em metrópoles e cidades que semelham acampamentos urbanos, imobilidade urbana crescente, violência idem. O resto do filme todo mundo está cansado de ver: educação, saúde, segurança etc. aos bandalhos.
Quem ainda lembra a desastrosa e imprevisível ascensão de Fernando Collor, um jovem bonito das Alagoas cuja história política era praticamente nula quando saltou do anonimato para a presidência da República? Quem ainda lembra os mecanismos da publicidade astuciosa com que foi de um extremo ao outro? Fernando Collor vendeu com sucesso a imagem do caçador de marajás (expressão anacrônica cujo sentido continua atualíssimo) revolvendo assim a impotência e a revolta recalcada de um povo tratado como gado em hospitais públicos, repartições públicas etc. 26 anos mais tarde, continuo vendo o mesmo filme na televisão e na mídia em geral. É o filme que mais conheço sobre o Brasil, pois comecei a vê-lo na minha infância. Por essas e outras, o Brasil me transmite ainda a sensação depressiva de uma descrença paralisante.
Parece que o povo – ou a ralé do andar de baixo, como reza a expressão pejorativa repisada por profissionais da mídia – está cansado de ser gado. Ou simplesmente já não suporta o stress (como dizemos nós, os privilegiados, e o próprio brasileiro do andar de baixo já repete) que é viver e trabalhar no ‘Brasil de todos”, diz o mote insultuoso do partido que veio de baixo para se tornar igualzinho aos que sempre estiveram em cima. O que fará a classe dirigente diante de pressões tão inquietantes e incontroláveis? Continuará seguindo a regra crua da frase procedente de Washington Luís?
Há muito tempo, entre 1896-97, milhares de sertanejos nordestinos escaldados pela miséria tentaram fundar uma cidade comunitária regida pelo messianismo de Antônio Conselheiro num fim de mundo do mapa da Bahia. A Guerra de Canudos, desencadeada pelo exército brasileiro contra os canudenses foi sem exagero um acontecimento épico na história do Brasil. O desfecho ilustrou de forma brutal a frase que Washington Luís cunhou algumas décadas mais tarde. Os canudenses foram literalmente varridos do sertão depois de exterminados até o último combatente. Seus herdeiros, no mato sem cachorro, ou Fabianos sem Baleia, para evocar a obra de Graciliano Ramos, migraram para a cidade. Muitos, absorvidos pelos mecanismos produtivos do nosso capitalismo selvagem, construíram tudo isso que vemos e desfrutamos à nossa volta. Constroem durante o dia e à noite tentam repor a força de trabalho transportados de volta à periferia como gado em ônibus, trem e metrô. Outros, os mais desvalidos, moram provisoriamente nas obras que erguem tijolo sobre tijolo. Mas uma grande fração desse povo é inassimilável ao sistema produtivo. Por isso engrossa a corrente do que Marx chamava de lumpen proletariado. Hoje de manhã vi um deles (militante do Movimento dos sem Teto) ocupando um prédio no centro de São Paulo. Sua procedência, seu lugar social era inconfundível: o tradicional chapéu de couro do sertanejo nordestino banido da utopia sonhada por Antônio Conselheiro. A imagem na televisão piscava para quem sabe das origens. Parecia advertir: Canudos está em São Paulo e quer o que o beato Conselheiro e Padim Ciço prometeram aos desvalidos deste país. Qual será a resposta dos herdeiros de Washington Luís? Aguardem o próximo capítulo. O guru Paulo Coelho prefere sensatamente espiar à distância guarnecido pela civilização europeia. Mas nós estamos aqui, espremidos entre a questão social e a policial. Não haverá uma saída?
300 dos congressistas têm processos nas costas. Que não vão dar em nada. Acho que nossa questão social começa aí.
Fernando
Eu desconfio, apenas desconfio (mas acho que tenho motivos quando observo as diferentes manifestações de rua Brasil afora), que é necessário distinguir a explosão indignada (espontânea ou não) da sociedade (o estouro da panela) das diferentes ações programadas e organizadas de provocação em atos de violência e destruição (ninguém sai por ai com bomba-molotov pra se defender, não é mesmo?). Não posso imaginar que a indignação da sociedade, na greve de ônibus, por exemplo, leve à queima de 400 ônibus (se não me engano) no mesmo dia. Desconfio, apenas desconfio, que a esmagadora maioria das manifestações que descambaram para a violência não começou com os governos “soltando a política nas ruas, favelas, onde houver povo lutando para ser politicamente reconhecido como povo”, como diz no artigo. Tenho a suspeita, apenas suspeita, que quase sempre o conflito violento começou com alguns segmentos (de dentro ou de fora) do “povo que se organiza” depredando ou mesmo agredindo a polícia. E aqui entra a segunda desconfiança: em muitos casos não parece ser apenas os black blocs os iniciadores do quebra-quebra mas gente do crime organizado querendo provocar o caos e, se possível, desgastar as instituições policiais junto à opinião publica (a polícia, é verdade, em muitos casos, ajuda neste desgaste). O que temo, apenas temo (mas com algum fundamento), é que o crime organizado esteja sobrepondo ao confronto militar contra as UPPs uma guerra de comunicação e propaganda contra o governo (no caso do Rio de Janeiro), uma disputa no terreno político, dificultando a consolidação das unidades policiais na retomada do território das mãos das organizações criminosas. E não me surpreendo se todo este processo não termine se manifestando nas eleições estaduais com eventual revisão ou relaxamento da política de implantação das UPPs. Enfim, tudo é muito mais complicado do que parece, não é mesmo?
Compartilho sua ideia central de que o recurso policial é inócuo, se não equivocado, se não houver iniciativas decisivas e ousadas para reduzir as desigualdades de acesso aos bens e ativos sociais. E que os governos têm sido, desde sempre, lenientes e irresponsáveis no enfrentamento das desigualdades sociais no Brasil. E que, portanto, a ação da polícia é ainda um desvio do problema central. Mas não penso que podemos simplificar como se as massas indignadas lutassem organizadas contra as elites perversas que jogam a policia contra o povo.
Meu caro Sérgio: Embora provavelmente me intrometa mais do que Luciano Oliveira nos debates da revista, ressalto duvidar muito da controvérsia, embora longe do tédio do Conselheiro Aires, citado por Luciano. Feita a ressalva, entro na discussão movido pelo espírito que sempre me move à discussão: o de discutir idéias com a isenção de ânimo possível. Claro que notei o pedal irônico do seu comentário (desconfio etc.). Leio isso como indício louvável da sua boa veia argumentativa, Sérgio, e, acredite, concordo com todas as suas ponderações. Se o leitor mais estreito supuser que fujo da raia, acrescento apenas que divergimos antes de tudo na ordem da ênfase ou perspectiva com que você lê meu artigo. Já frisei noutro contexto, mas meu artigo sugere isso já no título e nas muitas referências e analogias históricas nele esboçadas, que minha perspectiva é a da longue durée, como escrevem os historiadores franceses. É daí que decorre meu pessimismo confesso com relação ao Brasil. Se bem leio o que você escreve, você é um crítico do presente e das articulações conjunturais. Claro que sua apreciação vem sempre adensada por sua percepção mais ampla dos processos implicados na análise. É por notar essa distinção de ênfase entre nós que, suponho, não nos contradizemos. Acho que suas objeções atinentes à conjuntura desenhada no meu artigo são no mínimo pertinentes e corrigem algumas tensões e insuficiências na forma como articulo a longue durée e a realidade presente. Portanto, Sérgio, concluo que seus comentários completam e corrigem meu artigo. Isso não é democracia de frente ampla, é a expressão do meu modo de participar do debate esclarecedor que visa as idéias, não os debatedores.
Esse presidente era tão “democrático” que se reservava o direito de recusar a posse a deputas leitos pelo povo,m somente por serem oposição a seu governo.