Leila Diniz

Leila Diniz

 

Romper com estruturas arcaicas e discriminatórias é coisa séria. Uma sociedade patriarcalista e excludente traz profundas injustiças embutidas em seus alicerces. Não quero tratar de tema ao qual sou pouco afeto, que me é importante, mas não me aprofundei em seu estudo. Uma visão de quem, no decorrer do tempo, conviveu com diferentes demonstrações da indignação social com a situação da mulher é minha única motivação.

Nas décadas de 80 e 90 do século passado o movimento era belicoso.  O antagonismo era o modo de ser exposto. Uma sociedade em que mulheres e homens estariam em lados opostos necessariamente. Em que não havia conciliação. 

Compreensível para mostrar as disparidades, para reivindicar, quase exigir, mudança de tratamento, de postura. O macho era o grande inimigo. Ele era o causador de todas as mazelas advindas de uma sociedade em que a mulher era submetida a tratamento, quase sempre, em situação de inferioridade. Inferioridade salarial, inferioridade na escala social, nos cargos políticos e administrativos,  nas condições de trabalho. Não havia concessão.

Lembro de duas experiências que vivi. 

Uma reunião política em minha casa, uma “ativista liderança do movimento”. Tive a infeliz idéia de pedir a minha companheira que preparasse um café. Horas de reprimenda, que se estenderam por meses seguidos de críticas, dizendo da exploração familiar que a mulher sofria e de como essa situação se revelava no cotidiano. Tive paciência para não contra-argumentar o que poderia levar a uma reação muito pouco previsível. 

Uma assembléia na Universidade. Acompanhava uma colega de mestrado. Eram as feministas que se reuniam para deliberar sua estratégia de atuação. Como estava com a amiga, a acompanhei inocentemente. Quase fui linchado. Tive que sair às pressas. A ousadia de estar junto era sinônimo de infiltração, de o inimigo querer trazer idéias nada compatíveis com a luta pela “igualdade”. 

O período era complicado e não havia humor, não havia nenhuma leveza nas atitudes e deliberações daqueles que lideravam o processo.

Prefiro voltar ao fim dos anos sessenta e início dos setenta. Três personagens, na minha mente, fazem o que ficou de mais concreto na luta que hoje continua.

Leila Diniz, extraordinária. Corporificou a independência da mulher. A professorinha do interior que virou atriz. Quem não se lembra de “Todas as Mulheres do Mundo”? Em plena Ditadura, com sua fala desbocada, com a defesa da liberdade sexual, com seu jeito de exposição pública, rompendo padrões, criando novos conceitos. A sua foto grávida de biquíni, um escândalo na época, símbolo de Ipanema libertária. A entrevista para “O Pasquim” e seu modo de enfrentar o regime que nos oprimia. Cria um símbolo de mulher que se espelha em mudanças comportamentais profundas.

Com posições firmes, com consciência política, com sua voz inigualável até hoje, Elis Regina, deixou sua marca. Começa a trabalhar cedo e se firma como a principal cantora de uma geração, quem sabe de nossa história. Reivindica e enfrenta gigantes financeiros. Sua crítica à rede Globo traz impactos. Problemas com a Ditadura a afetam. Mas também se posiciona frente à educação e ao papel da mulher na sociedade. Diz: “Esses homens, “chauvinistas”, machistas e super comandados pelo esquema paternalista foram criados, gerados, alimentados, comandados e educados por mulheres que aceitavam isso”. Condena a situação repressiva da sociedade em que vivemos, mas exige mudanças mais profundas, inclusive comportamentais, que são necessárias também para as mulheres.

Rita Lee, nossa roqueira mor, que nos deixou faz poucos dias. Sem tentar ser ícone do movimento feminista – sempre quis distância dele – se posiciona como vanguarda nas mudanças comportamentais. Traz para o centro dos debates questão que estava em todas as mentes, mas era proibida de ser comentada. A sexualidade, as letras de suas músicas mais que a expõem. O que mais transgressor do que “me deixa de quatro no ato, me enche de amor”? Foi censurada e presa. Ameaça ao reacionarismo que caracterizou os anos negros de nossa evolução. “Sanduíche de gente”, um caminho para a união, para uma sociedade mais sadia, mais condizente com o desejo e aspirações humanas. 

Essas três mulheres marcam minha visão de mundo, elas deram forma a uma concepção de sociedade em que o respeito ao semelhante, a igualdade, a liberação dos desejos, o permitir ser feliz passam a ser o ideal a ser alcançado.

Se tive embates com minhas queridas amigas dos oitenta e noventa, se vejo com alegria a suplantação do radicalismo dos primeiros anos do movimento feminista, tenho na pré-história dos anos sessenta e setenta do século XX os fundamentos para acreditar que chegaremos a um mundo de respeito e harmonia, em que a diversidade que caracteriza o ser humano seja motivo de engrandecimento de nossa civilização.