João Rego, Julho de 2014.
Quando criança em Caruaru, aos meus sete anos, lembro-me de um personagem muito marcante no cenário da minha vida. Era Chico, um negro jovem, alto e muito forte. Era um dos vaqueiros da Fazenda Trapiá, da família Rego, que ficava logo após São Caetano, cidade vizinha a Caruaru.
A fazenda era uma das maiores da família, cerca de 1500 hectares, e tinha este nome graças a um belo e frondoso pé de Trapiá que ficava na frente da casa principal. Era uma casa isolada em um vale, cercada por várias montanhas, entre elas a famosa Pedra do Cachorro, hoje, desafio de aventureiros e alpinistas tupiniquins. No inverno, pela manhã, da varanda da casa da fazenda, dava para ver, admirado, as nuvens impotentes circundando seu cume.
A força de Chico era cantada em verso e prosa pelos moradores do Trapiá, pois era capaz de, com um murro, apenas com um murro, derrubar um garrote brabo! Quem é do sertão— a benção Guimarães Rosas! — sabe o trabalho que dá para derrubar um boi arisco. Primeiro, tem que laçá-lo; depois, amarrá-lo no mourão; para, em seguida, com muito cuidado, agilidade e força— tudo ao mesmo tempo— segurá-lo pelos chifres e, imediatamente, torcer seu pescoço, usando os chifres como uma alavanca. Aí, ele vai cedendo contra sua vontade, os olhos se esbugalhando até que, com o pescoço torcido e os olhos revirados, começa a cair, iniciando uma estrondosa queda do resto do corpo. Tomba, por fim, aquela imponente massa de músculos e chifres para ser ferrado ou vacinado.
Conseguir isto apenas com um murro – mesmo que em um novilho – era de se admirar.
Certa vez encontrou um oponente quadrúpede tão “raçudo” e determinado quanto ele. Já o havia segurado firme pelos chifres e o boi, arrastando-o pela lama do curral, não dava nenhum sinal de que iria ceder a vontade do oponente. As pernas do vaqueiro, firmes, usadas como principal base para a sua luta, esquiavam naquele mar de lama e bosta de boi que era o curral. De repente o boi desvia os chifres e atinge Chico com força em seu peito, num movimento que poderia ter sido fatal, ou, no mínimo, tê-lo nocauteado. O que para qualquer simples mortal era um limite, —afinal a luta poderia ser parada e retomada depois, quando ele recuperasse suas forças, ou refizesse sua estratégia —, para Chico, foi apenas um golpe de um oponente de respeito. Com os braços ocupados, presos como duas tenazes nos chifres e no pescoço do boi; as duas pernas, qual toras enfiadas na lama resistindo à força descomunal da besta, não restava mais nada a fazer. Eis que de súbito, num gesto mais animal que humano, agarrou com os dentes a orelha do boi, como se daquela mordida dependesse o equilíbrio do universo, ou a sua honra, o que para ele era a mesma coisa. Estava decidido! Não soltaria mais os dentes até que atingisse seu objetivo. E assim foi que, sangrando e urrando, o bicho percebeu que estava diante de alguém mais determinado que ele. Desmoronou aos seus pés.
A plateia atônita com o feito trataria de perpetuar, de boca a boca, de geração a geração — como faço agora com este texto— mais um feito de Chico do Trapiá.
***
Um ano depois. Estou brincando na frente da Casa Grande. Sei que era um sábado, porque meu pai estava fazendo o pagamento dos empregados das fazendas. Cavalos, jumentos e carros de boi ficavam “estacionados” na frente da minha casa, sob a frondosa sombra do velho Fícus Benjamim. Vejo parar um “Carro de Praça”— era assim que chamávamos aqueles buíques pretos com pneus de faixa branca — com um Chico doente e sem cor. Houve um silencioso diálogo entre nós e vi em seus olhos um medo que nunca vira antes. O taxi estava levando-o para o Hospital São Sebastião, o único de Caruaru.
Poucos dias depois pergunto a Maria Dadá sobre Chico e ela responde com tristeza.
— Joãzinho, ele está na pedra.
Pedra???! O que isto significava? Por que a tristeza?
Foi necessário amadurecer um pouco mais, afinal, eu era apenas uma criança para entender que aquele significante Pedra—, assim como muitas palavras são usadas como metáforas, quer seja para imprimir beleza poética ao texto, quer seja para atenuar a dura realidade do humano diante da morte —era o necrotério do hospital.
Uma fria pedra de mármore acolhera o corpo sem vida do valente e heroico Chico.
Naquele momento, aos oito anos, comecei a construir em mim a percepção da extrema vulnerabilidade do homem. Depois veio a mulher da Travessa 27 de Janeiro, lá no Pé do Morro Bom Jesus, que morreu tomando 1080. Dizem, por conta de uma desilusão amorosa. Mas aí é outra estória.
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DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com
João, você e suas privilegiadas infância e memória.
Parabéns pelo texto, aguardo outros tão ricos.
Abraço
João, esse pode ser ponta pé inicial de um livro de crônicas que vai preceder o primeiro romance. Nasce um escritor.
Excelente. Muito bem contado.
Parabéns. Tens que escrever um livro.
Grande abraço.
Muito bom João! Somos felizes por ter podido desfrutar da convivência com estas pessoas do nosso maravilhoso, encantador e surpreendente sertão!
João, a mulher q tomou 1080, chamava-se Tita tinha os olhos bem azuis. Era empregada doméstica de D. Didi que moravam na Av. México, mãe de Maria do Carmo, esta que por ironia ou coincidência do destino suicidou-se também. .Essa morte para mim foi um horror. Nunca tinha visto alguém morto e quando fui na casa de D. Didi por curiosidade, a D. Irene parteira estava abrindo a boca e os olhos dela. Tinha os olhos virando e a língua cortada e espumando porque ainda não tinha morrido. Que morte agoniada! Fiquei com tanto pavor mas mesmo assim, ainda fui para o enterro aí foi pior: abriram o caixão e a boca dela ainda espumava e ainda mandaram a gente pegar naquela terra e jogar em cima do caixão, era costume de antigamente fazer isso. Fiquei muito tempo tendo a impressão de ver os olhos dela. Se eu ia no banheiro, deixava a porta aberta e de lá dava uma carreira tão grande para a sala que nem vento me pegava.
Muito bom Teresa Cristina Almeida! Você resgatou um outro olhar sobre a morte da pobre coitada que deu fim à vida. É essa mesmo a estratégia da narrativa do País de Caruaru: um mesmo fato do passado revisitado por vários atores e seus diferentes olhares e emoções.
Maravilha !!!
Podes escrever a minha estoria de amor?
Eu tenho todas as cartas.
Te amo,Monquinha
Monquinha:
Infelizmente (ou felizmente?) estes meus escritos são algo muito pessoal, e vêem a tona como decorrência de um longo percusso analítico. É uma escrita que vem no lugar do sintoma, ou até mesmo (e por causa dele) para dar sentido ao que foi recalcado. A Criação do Grupo País de Caruaru no Facebook, talvez seja uma convocação que fiz para conseguir mergulhar neste meu universo infantil – abruptamente interrompido pela a morte do pai -, e o resultado estão sendo estes escritos. No momento, não tenho pretensão de ser escritor. Suas memórias e sua fantástica história de amor, que a levou para tão longe, aí no Canada, poderão interessar quando se articularem com este meu esforço proustiano de reconstruir um passado que não existe mais, está apenas dentro de mim.
Gostaria que lesse, em meu site, o texto de Introdução ao Módulo Psicanálise.
http://joaorego.com/category/4/1-4-2/
Um beijo.
João Rego
Prezado João Rego
Gostei muito da sua cronica e da história de Chico da Trapiá. Me comoveu o medo de Chico no carro de praça, na sua viagem final. Conheci muitos Chicos, e sempre admirei estas figuras bonitas do nosso interior. Sou do agreste também, de Limoeiro, e passei por várias fazendas, de meu avô e tios na minha história de vida; tenho também a militância política, como você, mas com 5 anos clandestino em BH; tenho a passagem, a transição do comunismo para a democracia, mas a minha foi antes que a sua, lá pelos idos de 1981. Mas sou mais velho que você (tenho 65 anos); tambem sou engenheiro (de minas) e gosto de escrever, embora tenha preguiça.E meus escritos ainda são muito pessoal também, embora meus familiares insistam para que eu escreva um livro, de preferencia de memórias, que conte para todos a minha experiencia de ¨mala¨, como meu filho chama minha vida clandestina.
Bom, escrevi apenas para comentar com você uma série de coincidências e coisas em comum nas nossas vidas (ah, faltou relacionar os 25 anos de terapia que fiz). Um abraço, Afranio Tavares
Caro Afrânio
Escrever algo e tornar público é, antes de tudo, um ato de coragem, isto é, se você tem um “mancômetro” bem ajustado. Escrever crônicas da infância é ainda mais delicado, pois são escritas carregadas de afeto apenas do que você viveu.
Mas, por outro lado, é também uma forma generosa de compartilhar com o outro uma experiência singular. Se isto vai ser acolhido pelo outro e, faz algum efeito nele, já estamos muito bem recompensados.
Fico feliz em saber que acolhestes meu texto com emoção.
P.S Ouça o conselho dos seus filhos, pegue caneta e papel e mãos à obra.
Um Abraço.
Otimo texto! Tambem voto pelo livro! Abracos.
Guilherme
João Rego recebi ontem, 2 de agosto, a visita do meu meu amigo de infância Sóstenes Fonseca, sua esposa Edna e seu filho Hugo e me falou do Blog País de Caruaru. Estou me habilitando para poder me comunicar com grupo de conterrâneos.Já me comunico com alguns deste importante grupo.
Espero ser aprovado, pelo menos o voto de Soste (apelido de criança) eu tenho.
Um forte abraço
Jonas Torres
Meu caro João Rego.
Estou, aos poucos, lendo que antes não tinha chance pois não conhecia a revista Será? que, agradeço ao Zé Torres tê~la me apresentado. Apenas uma coisa: como não tens pretensão de ser escritor? O que seriam, então todos esses escritos?
Trovabraço