Teresa Sales
30 de junho de 2014
Partimos de Civitavecchia, província de Roma, às cinco da tarde, a pleno sol no verão de lá. Marinheira de primeira viagem (de navio e também em grupo organizado), eu só conhecia esse tipo de Cruzeiro à distância ou nos filmes. Chegamos perto. Ele é mesmo enorme, mas não dá tempo para nenhum espanto ou emoção, tantas são as senhas e filas para entrar na pequena e compacta cidade de dois mil e oitocentos habitantes. Afinal, nessa cidade andante, tal como o Cavalo de Troia, estamos embarcando para o berço da civilização ocidental, onde, naquele tempo, havia que ultrapassar muralhas.
Como os demais, fui seguindo as ordens. Porém quando dei fé, estava sendo levada por um indivíduo com cara de coreano para ser fotografada em frente a uma enorme foto do navio. Pensei que fazia parte do complicado ritual de entrada. Foi só quando ele pediu o meu cartão (moeda oficial do navio para todas as transações de compras e serviços) que saí de minhas fantasias gregas para alcançar o grupo e entrar de supetão na lógica capitalista refinada de como fazer uma pessoa gastar. Distraída como sou, aquilo foi para mim como um trote e já entrei com raiva no navio.
Mas a raiva passou logo. Havia que explorar a cidadela. (Olho com ironia o pequeno mundo dos ricaços e suas futilidades. Não é meu mundo. Como não, se aqui estou? Deixe de hipocrisia, Teresa. Já que entrou, goze). Muitos moradores da cidadela estão desfrutando da piscina e seu entorno luxuoso, pouco ligando para o vento frio que sopra. E eu faço a primeira e decisiva descoberta: um conjunto de jazz, que naquele deslumbrante morrer do sol toca no palco dessa área externa. Daí por diante, passamos a viver um mundo de fantasia, como os americanos sabem fazer mais do que ninguém.
Para mim, apreciadora do jazz, a música ao vivo em mais de um horário e local ao dia e principalmente à noite foi do que mais gostei. Duas cantoras negras, acompanhadas de teclado, guitarra e bateria (o melhor grupo de música), também foi o que mais apreciou outra pessoa de nosso grupo. Outros gostaram mais da comodidade, do convívio com “seu” grupo de viagem, da organização, dos exercícios, da limpeza, do encontro de todos no café da manhã, da curtição de um casamento às vésperas das bodas de ouro…
Aliás, é tempo de falar desse grupo.
Somos 38 pernambucanos. Mesmo o casal que nasceu na Bahia e mora em Caruaru, hoje se consideram pernambucanos. A mãe e filha que moram no Rio de Janeiro e uma senhora que mora em João Pessoa, também são pernambucanos que se desgarraram, mas não perdem o pé na terra. Nosso grupo representa apenas 1,3% da população daquela Babel. E la nave va.
Afora as saídas em terra, o grupo se encontra diariamente num certo espaço do imenso salão que serve o café da manhã. O almoço também será nesse restaurante self service. É incrível como tudo funciona. Uma leva de funcionários latino-americanos e orientais para não deixar faltar nada, pratos, cumbucas, talheres embrulhados em guardanapos azul marinho, copos, canecos, ovos fritos e cozidos, bacon, salames, salsichas, pães, geleias, manteigas, frutas, yogurtes, queijos, cereais, sucos, café, leite, chá…E nós, os comensais, comportamo-nos como carneiros amestrados percorrendo nossas preferências. Lunch time, igual manada ávida pelas cocheiras com outra sorte de ração.
Até que chega o grande momento da praticidade inaugurada pelos irmãos do Norte se transformar em aristocracia, qual uma gata borralheira em noite de festa.
Abrem-se os portões do mais requintado restaurante, de pé direito alto, com enorme candelabro italiano oval dividindo o ambiente com o salão vazado do andar superior. Garçons, mettres e somelliers, à abertura do salão às 20:30, esperam enfileirados para cumprimentar as gordas senhoras acompanhadas ou não de seus cavalheiros para a grande noite de gala.
Nossa líder já reservou as mesas, que serão sempre as mesmas do primeiro ao último dia, cada uma com seu garçom e ajudante. A nós cabe um peruano e um colombiano. Não sei qual terá sido o tema de conversa das outras quatro mesas. Da nossa é predominantemente os passeios em terra, as comidas, críticas ao governo Dilma (esse tema, nos momentos de todos juntos, é uma constante) e, principalmente, comparação com outros Cruzeiros, no que marinheiros de primeira viagem não têm o que dizer.
As noites são todas de gala, mas o calendário do Cruzeiro demarca duas especiais, em que são maiores os brilhos das vestimentas e dos adereços das mulheres. Pode até lembrar um baile popular, sendo tantas as americanas de gosto duvidoso. A distinção de classe é visível, porém, nos perfumes franceses, nos sapatos e roupas de marca. O arremedo de nobreza fica por conta do salamaleque da entrada do salão iluminado e da indumentária de senhores e supostos servos. Servos não apenas à mesa do jantar, como igualmente para as cabines, que arrumam pela manhã e “abrem os lençóis da cama” à tardinha, deixando impreterivelmente dois chocolates e a programação do dia seguinte. O cardápio terá poucas mudanças durante os onze dias de confinamento para o obrigatório prazer.
Deixemos o navio. Quem somos, os 38 pernambucanos? Sem parar de curtir tudo o que selecionei para meu deleite (seriam outras crônicas), dei asas ao ressurgimento de meu lado de socióloga pesquisadora e entrevistei todos. Em casal, em grupo, um a um, no navio, nos traslados de ônibus, nas esperas de aeroporto, como foi sendo mais oportuno. Aqui relato apenas um perfil objetivo do grupo, passando ao largo das conversas de cada entrevista, também assunto para mais crônicas.
Vinte e seis mulheres (68%) e doze homens (32%). Entre os 5 mais jovens, com idade entre 37 e 44 anos (13 % sobre o total), estavam 2 casais e 1 moça, todos fazendo o Cruzeiro em companhia dos pais. As 10 pessoas com idade entre 47 e 59 anos (26% sobre o total) eram 5 homens e 5 mulheres, casais. Juntando o grupo de 60 a 69 anos (12 pessoas, 32% sobre o total) e de 70 a 82 (11 pessoas, 29% sobre o total), temos a grande maioria do grupo (23 pessoas, 61% sobre o total).
Interessante que esse microcosmo populacional ilustra um estudo da maior autoridade em demografia no Brasil, Elza Berquó, acerca do que ela nomeou “Pirâmide da Solidão”. Pois é justamente nesse grupo de mais de 60 anos em que há a grande desigualdade entre a presença masculina (apenas 5 homens, com suas respectivas esposas) e 18 mulheres (78% nessa faixa etária).
Nosso grupo é, portanto, constituído predominantemente de mulheres e pessoas na faixa etária acima de 60 anos. Onde moram? Pertencem a que classe social?
Pertence à burguesia a maior proporção do grupo (39%), no qual incluí comerciantes, empresários rurais, empresários urbanos, pessoas da família participantes do negócio, assim como quem administra bens de família igualmente resultantes de negócios. Logo a seguir (34%) estão os aposentados (professoras, coronel da polícia, engenheiro/as, médica, dentista, bancários, funcionário/as públicos). As donas de casa representam 16% e o/as executivo/as de empresa 11%.
Mais da metade mora em Boa Viagem (53%). 18% em Casa Forte. Os demais em Espinheiro/Graças/Encruzilhada (16%), dois em Caruaru, duas no Rio de Janeiro e uma em João Pessoa.
A pesquisadora ainda ficou curiosa com as velhinhas do navio e chegou a entabular conversa com algumas americanas, uma delas, muito espevitada, acompanhando um velhinho de cento e dois anos ao ritmo do jazz. Porém à apreciadora da história e da beleza, a viagem ficou muito a desejar. Há que voltar para pelo menos uma semana inteira só na ilha de Mykonos.
Coisa gostosa, minha querida Teresa, ler o relato da sua excursão marítima. Diverti-me à bessa com sua descrição do micro-cosmo observado da cidade flutuante e sua pesquisa antropológica…Já fiz uma viagem dessas, mas curta, insuficiente para uma percepção tão ampla como a sua. Como detesto jogo, nem sou nadador de piscina, limitei-me a curtir bebida e comida. Só terminava o dia já de madrugada na boate, bancando o “crooner” de microfone na mão. A despesa limitou-se à copiosa bebida, tanto que no terceira dia já assinalava uma despesa de mais de 400 dólares no cartão. Conclui que viagens marítimas demoradas resultam, com certeza, em cirrose e obesidade. Evocando Garanhuns de nosso convívio, a nossa relação familiar e as saudades, assustei-me com a sua inclusão na faixa etária dos 60 anos e até que enfim cheguei à conclusão que sou um velho – não estou, pelo menos como dizia o nosso velho Zébatatinha, para umas coisas e outras não – de 86 anos. Segundo Millor é preciso rir pra não adoecer! Um grande beijo, bem no fundo coração
Teresa, é isso que chamam de canoa furada?
É por isso que fico sempre em terra firme…
Parabéns pelo texto.