João Rego

Vaqueiro no sertão pernambucano - por Hans von Manteuffel.

Vaqueiro no sertão pernambucano – por Hans von Manteuffel.

Zé Valentão era baixinho e musculoso. Moreno, trazia a coragem, a honra e a fortaleza do homem do sertão. Quando chegou na Vazante, nossa fazenda próxima a Caruaru, eu tinha uns nove anos. Chegou com mulher e dois filhos pequenos, também baixinhos e surpreendentemente musculosos para sua idade. Foi contratado para ser o capataz da fazenda, ou seja, o principal gestor das atividades ligadas a produção da Vazante.

Uma das coisas valiosas que meu pai me legou foi desprezar as barreiras sociais e conviver com todos de igual para igual, no que pesassem as diferenças de riqueza e tradição da família. E era assim que me sentia, um igual, juntos aos filhos dele e, como seus filhos, um ávido e obediente aprendiz no fazer das coisas da fazenda, desde ações simples como cortar palma na cocheira até as mais complexas como cavalgar pelo meio das caatingas, com um cavalo resfolegando desenfreado perseguindo uma rês.

Impressionava-me a habilidade e a firmeza de Zé Valentão no domínio de um cavalo chucro. Havia um campolino arisco que ele montava sem sela e tinha um jeito de pegar na crina do bicho que o fazia empinar com as duas patas dianteira no ar. Isto eu pensava que só o cavalo branco de Zorro fazia, no seriado da televisão. Conhecia e passava para mim todo seu saber sobre árvores e plantas diversas: o juá, o cipó, o marmeleiro, etc. É necessário ser do mato para compreender e valorizar a riqueza destes conhecimentos, seus diversos detalhes, passados de geração para geração, ao longo do tempo. O amolar de uma peixeira; escolher o pedaço certo da madeira para fazer um bom cipó; o banho do cavalo na beira do rio, como encilhá-lo e tratá-lo. Ele tinha um carinhoso hábito de conversar com os animais, acalmando-os nas horas de tensão, como o momento de marcá-los com o ferro quente. Foi dele que, pela primeira vez, ouvi as estórias de Cumadre Fulôzinha e outros mitos atávicos do sertão. Muitas vezes, de manhã, na hora do leite no pé da vaca, ficávamos espantados em ver as crinas dos cavalos todas trançadas como se Cumadre Fulôzinha tivesse passado a noite por lá.

Tudo isto Zé Valentão me passava como um mestre a um discípulo. Lembro da gente caminhado pela Queimada do Milho, este era o nome dado a uma das áreas internas de uma mesma fazenda, possivelmente uma fazenda que meu avô comprara e integrara a Vazante. Ele cortando as plantas, me mostrando e pedindo para fazer o mesmo, cheirando, mastigando as folhas, observando e classificando na mente como se daquele gesto dependesse sua relação com a natureza. Neste dia, acho que ele estava feliz pois me apresentou a dança do coco cantando e dançando com as alpercatas levantando poeira e emulando uma roda de coco.

Uma vez, ele tinha que trazer uma boiada de outra fazenda. Houve um pacto entre ele e papai e eu fui junto com ele e mais três vaqueiros. Montado em meu cavalo, Passageiro, contra a vontade e a apreensão de mamãe, partimos bem cedo para nosso destino.

O trabalho levaria quase um dia de cavalgada, contando com o recolhimento das reses espalhadas pelos cercados. Este dia foi para mim um rito de passagem: deixava de ser criança e começava a assumir responsabilidades de gente grande. Foi na volta, tangendo o gado pela estrada, que ouvi o aboio, um belo e triste som, cantado por ele, ao ritmo das passadas do boi. Não tem palavras, apenas um som, um lamento que ecoa pela mata, uma elegia sobre a relação homem-animal, como se naquele momento o vaqueiro fundisse seu destino com o do boi, sabendo que agora era a vez do boi ir para o matadouro; mais tarde, o destino e a vida, esta sempre finita, determinariam o fim dele, o vaqueiro.

Chegamos à noite, encharcados pela chuva que nos pegara no meio do caminho. Eu, cansado e orgulhoso de ter cumprido bem minha primeira missão – me vem agora à mente o cheiro do suor do cavalo – desço e encontro minha mãe aos prantos, chorando de ansiedade e alívio por ter corrido tudo bem. O pai orgulhoso, calado, observava a cena, convencido que havia tomado a decisão correta no momento certo da minha vida.

Este cenário se dissolveria, como que por encanto, marcado pela morte de meu pai pouco tempo depois. Viemos para o Recife e sempre evitei, já adulto, deparar-me com este passado e estes personagens. Soube depois que Zé Valentão fora morar em um bairro da periferia de Caruaru e, longe do seu habitat, se afundara na cachaça e na depressão. Sua fortaleza fora enfim minada pelo “progresso” da cidade.

Julho, 2014

***

 

DITOS & ESCRITOS
João Rego
joaorego.com