Fernando Dourado

Charles Aznavour (1924-1918).

Amanh?, 5 de outubro de 2018

Amanh?, dia 5 de outubro de 2018, talvez ? mesma hora da publica??o deste simulacro de r?quiem na revista “Ser??”, o jovem Emmanuel Macron falar? para a Fran?a e o mundo diante do caix?o do ator e cantor Charles Aznavour, no p?tio interno dos Inv?lidos, em cerim?nia de poucos precedentes em local t?o simb?lico. Nesses instantes que antecedem o momento solene, imagino o frenesi que contagia os redatores da Presid?ncia da Rep?blica, a onipresente primeira-dama Brigitte Macron e o pr?prio mandat?rio, todos ciosos – por muito boas raz?es – em aproveitar a oportunidade para brindar o homenageado com a palavra exata, ou “le mot juste”, como ? de lei nos ass?pticos padr?es lingu?sticos da terra de Descartes e Flaubert.

Amanh?, portanto, ? prov?vel que eu me junte modestamente a milh?es de franceses na torcida discreta para que o imperial Macron, nascido quando o poeta j? tinha 54 anos, possa fazer as honras devidas a Shahnourh Varinag Aznavourian, que veio ao mundo numa maternidade parisiense para indigentes, do ventre de uma refugiada do Genoc?dio Arm?nio de nome Knar Baghdassarian. Seu marido era o georgiano Misha Aznavourian, que conhecera em Istambul, depois tornado comerciante trapalh?o no Quartier Latin, e o j? referido Shahnourh, dito Charles Aznavour, irm?o de Aida – esta nascida em Sal?nica, Gr?cia, rota da fuga dos pais -, deixaria a escola aos 10 anos e meio para, ? custa de muita teimosia, abra?ar e viver a gl?ria.

Amanh?, a Rep?blica Francesa ter? uma chance dourada de reiterar, embora talvez em v?o, que um homem pode dizer sim a uma p?tria sem renegar a outra. Isso porque, fora Charles mesmo o primeiro a declarar que, para se tornar um franc?s a pleno, tivera que abdicar de sua cota interna de arm?nio, embora um peda?o de seu cora??o morasse no C?ucaso. Ou seja, que se pode alcan?ar o equil?brio entre Ocidente e Oriente, e ei-lo como prova?do fen?meno. Al?ado a todas as gl?rias, s?mbolo do vigor da francofonia, Aznavour demonstrou que a Fran?a sempre foi e sempre ser? uma terra de inclus?o. Pois, se assim n?o fosse, o velho Misha teria seguido viagem para os Estados Unidos, conforme os planos originais da pequena fam?lia em fuga do epicentro da dor.

Amanh?, por fim, este escriba, hoje com 60 anos e meio, 45 deles devotados a viagens peri?dicas ? Fran?a que, somadas, j? devem ter valido cerca de 4 anos de perman?ncia em solo gaul?s, entender? que desta vez n?o vai adiantar vasculhar na internet onde Aznavour se apresentar? nos pr?ximos dias para, quem sabe, tentar v?-lo mais uma vez. Pois doravante, quer ele acredite quer n?o, o cantor est? morto. E ? mesma hora em que ele chegava ? Europa, Charles Aznavour se despedia da vida na propriedade de Mouri?s, no Midi, cercado de oliveiras centen?rias, depois de uma tarde divertida em que, apesar do bra?o dolorido, resultante de uma queda, rira a valer com o amigo Michel Leeb e, como de praxe, esbo?ara planos para 2019 e 2020.

Portanto, Presidente Macron, esteja ? altura.

Em 1970

Minha m?e nunca gostou de acordar cedo. Foi talvez por conta desse detalhe que ao chegar ao Col?gio de Aplica??o da Universidade Federal de Pernambuco, aos 11 anos, as quinze vagas para as aulas de Ingl?s como op??o de l?ngua estrangeira j? estivessem tomadas. Isso significava que n?o me restava outra op??o fora do franc?s, fato que me causou algum desconforto. Tido ent?o como um idioma ultrapassado, o detalhe que mais me incomodava era o fato de ser a l?ngua fetiche de homens efeminados em v?rias profiss?es, detalhe que me parecia desabonador at? para simples estudantes como eu. Ora, eu n?o tinha interesse em ser cabeleireiro, dan?arino ou maquiador. Queria ser m?dico, ora essa. O que poderia o franc?s me trazer de bom? Em que l?ngua eu iria falar com o sul-africano Christian Barnard, meu referencial de sucesso? E como reagir na hora de fazer aqueles meneios de l?bios em cone?

Nem bem as aulas come?aram, percebi que as coisas podiam ser piores do que aparentavam, e elas iam muito al?m do?bullying?que, segundo alguns te?ricos, foi inventado em nossa escola nas vers?es mais cru?is. Embora o m?todo de ensino fosse simp?tico, com uma esp?cie de feltro verde no qual a bela professora Vera Suassuna pregava figurinhas recortadas que reproduziam cenas divertidas, tudo se complicava quando se tratava de escrever. Pois era raro que uma palavra espelhasse minimamente a forma como era pronunciada. De mais, incorrer em erros de pron?ncia era um supl?cio. Naquela pequena turma, t?nhamos uns poucos alunos j? bem iniciados na l?ngua. Um outro ter?o integrava o time que estudava para passar de ano, pouco se importando em saber se aquilo fazia algum sentido para si ou n?o. Por fim, havia o pelot?o dos desenganados, para quem estudar s?nscrito ou russo dava na mesma.

E, pobre de mim, l? estava eu, s?, isolado e defensivo. Menos mal que Vera tinha pernas bem torneadas, olhos vivazes e um cabelo preto quase azulado.

E ent?o veio 1972

At? que em 1972, em algum momento das f?rias, decidi que transformaria o pesadelo em sonho. E que me tornaria simplesmente o melhor aluno de franc?s pois superar aquele drama se tornara ponto de honra. N?o deixaria que um idioma virasse minha Waterloo pessoal. Neutralizar o monstro e, por assim dizer,?masculiniz?-lo, passou a ser uma importante meta de vida. Na ?poca, meu pai trazia de S?o Paulo uns excelentes fasc?culos da Bloch Editoras acompanhados de um compacto simples, da cole??o “Aprenda Franc?s”. Para o ano seguinte, quando faria 15 anos, comecei a alimentar planos de ir a Paris. Para tanto, teria que convencer meu pai de que n?o iria queimar divisas para aprender l? o que poderia estudar no Recife. E foi ent?o que descobri na vasta discografia do Consulado da Fran?a,?long-plays?daquele cantor de que falara minha tia Alice, um baixinho de voz arranhada que fora namorado e faz-tudo de Edith Piaf. E que, a exemplo dela, tinha uma presen?a c?nica arrebatadora, al?m de cantar m?sicas cheias de vigor e poesia. Na voz de Aznavour, o franc?s soava de uma riqueza crom?tica s? rivalizada com as l?nguas latinas, conclus?o corroborada por uma vida de andan?as.

N?o tardou para que minha principal divers?o passasse a ser “tirar a letra” das can??es de l?pis em punho, nem que tivesse que colocar o pequeno bra?o da radiola port?til cem vezes sobre os mesmos sulcos do vinil. E foi assim que minha vida ganhou uma verdadeira trilha sonora. Composta por inspiradas despedidas em uma Veneza triste, pela evoca??o a tempos de uma boemia com que eu pr?prio sonhava para a vida, pelo apelo desabrido para que o levassem ao pa?s das maravilhas ou por juras de ruptura t?o fatais quanto bem orquestradas, meu vocabul?rio passava por r?pida expans?o. Mais do que ele, aquelas frases f?rteis de cor e ritmo me davam uma vis?o da vida que eu sequer tivera tempo de acumular em portugu?s. Do patinho feio, virei o pav?o da corte animada. Seria gra?as ao brilho que mostrasse em franc?s que se abririam as portas da Europa, logo do mundo, logo da liberdade, que at? hoje ? meu elemento vital, o ?nico imprescind?vel, o mais nobre de todos, o que me propicia o ir e vir, e, ? claro, o vir e ir. Entendi que com o franc?s eu ganharia minha alforria. Para, ent?o, fazer da vida o que quisesse e at? mesmo aprender ingl?s, se este fora o desencontro inici?tico.

Na escola, e logo na Alian?a Francesa, eu me tornaria outro. Gra?as ao despertar pregui?oso de mam?e. E tamb?m, em grande parte, a Charles Aznavour.

J? havia chatos em 1975

Se h? uma coisa insuport?vel na vida ? gente que integra a direita burra. O que tem a direita iluminada de espelhar um marco civilizat?rio apreci?vel, tem a fac??o burra de nos concitar a ir ?s ruas cantando “Bella Ciao”. Mas os ditos esquerdistas tamb?m s?o deplor?veis em sua devo??o esparramada e incondicional ? humanidade. Aos 17 anos, com o primeiro ingresso no bolso para ver Aznavour em Paris, um chato rematado que integrava as hordas de exilados brasileiros que viviam na Cidade-Luz, veio me dizer que Aznavour era uma esp?cie de Nelson Gon?alves. E que os grandes da m?sica francesa atendiam pelo nome de Brassens, Ferrat, Brel e, a rigor, Moustaki e Montand. O franco-arm?nio Aznavour, disse o iluminado marxista, era para a manicure, o chofer de caminh?o ou o aposentado de Belleville. N?o ? ?-toa que ainda deve estar ? espera da revolu??o, se ? que j? n?o se foi.

Certo mesmo ? que como ex-morador da rua da Aurora, a tradi??o de ser macaco de audit?rio n?o me era estranha. Pois dos dez aos quatorze anos, era frequentador contumaz dos programas de audit?rio do Canal 2, onde mais de uma vez privei da vizinhan?a animada de D. Lotinha Pessoa de Queiroz, ao lado de quem vira Am?lia Rodrigues, Francisco Jos?, Raul Solnado, todos os expoentes da Jovem Guarda e at? da Tropic?lia. Pois bem, que diferen?a fazia agora ser ca?ador implac?vel das apresenta??es de Aznavour, onde quer que elas acontecessem no meu trajeto? Al?m da poesia, da performance impec?vel, do apuro do detalhe, havia toda aquela gente que parecia entrar em comunh?o: ?rabes, judeus, russos, americanos, japoneses ou mexicanos, todos o amavam. E, embora tenha visto uns dez shows em 4 pa?ses – m?dia baixa para f? t?o grato -, j? ? tarde para procurar o pr?ximo. Pois Aznavour est? morto.

Para mim n?o est?, de qualquer maneira. Quando o cigarro ainda n?o tinha acabado de vez com minha voz, cantei Aznavour em festas, em s?brios karaok?s na ?sia e, at? hoje, me empolgo sob o chuveiro, embalado com “Dance in the old fashioned way” ou “Formidable”. Uma antiga namorada lembrou nossa noite mais sublime ao som de “Dans ta chambre”…”. E outra fazia comigo o dueto que ele pr?prio fez com Patricia Kaas em “Que c?est triste Venise”. De mais, jamais cheguei numa primavera ? Fran?a sem que os acordes de “J?aime Paris au mois de Mai” n?o ressoassem por sobre o ronco das turbinas ou mesmo do motor do carro. E para quase todas as mulheres, sempre dei um jeito de refrasear, “S?il y? avait une autre toi sur la Terre…”.?Se houvesse outra como voc? na Terra, haveria outro eu cheio de esperan?a…??

Sim, oui, Aznavour fez de mim um canastr?o melhor. E quem disse que Nelson Gon?alves n?o era maravilhoso?

Les rencontres

A primeira vez que o vi assim, lado a lado, foi em 1986, quando ele tinha 62 anos e eu 28. Estava no aeroporto de Genebra e ia voar para Dar-es-Salam, na Tanz?nia. De repente, ao lado de uma amiga que ent?o trabalhava na Swissair, perguntei se era ele mesmo, o baixinho de bolsa a tiracolo. “Claro”, respondeu ? moda local, no mesmo tom que o carioca afeta quando quer parecer indiferente ?s celebridades. Nem me preocupei em lhe apertar a m?o. Alguma coisa me dizia que ainda ter?amos outras ocasi?es. E tivemos. Nenhuma foi t?o boa quanto a de dez anos atr?s, na livraria Gibert Jeune, no Quartier Latin, quando ele autografou meu exemplar de sua biografia. Antes de mim, atendera um admirador que, de t?o nervoso, pediu que ele o dedicasse a “maman”. Ent?o ele perguntou: “Mas ela tem nome, sua m?e,?Monsieur? Eu n?o posso escrever para?maman?porque a minha j? se foi”. Rimos a valer.

Chegando minha vez, tive sorte de que ele quisesse dar um descanso ? m?o. Tomou ?gua, falamos um pouco do Brasil, ele me apresentou Katia, sua filha, e escreveu uma dedicat?ria padr?o, mas com letra caprichada. Tudo nele ? detalhe, fato que me confirmou Eric Bechot, o eterno pianista de Aznavour, que conheci num sarau musical parisiense. Apostei que voltaria a v?-lo de perto na visita do Papa a Yerevan, na Arm?nia, no ver?o de 2016. Mas ele n?o apareceu na tribuna. Nunca esquecerei o “frisson” que nos contagiou todos quando Francisco disse, a despeito das amea?as de Erdogan, que o Vaticano reconhecia ter se tratado de um Genoc?dio o que acontecera um s?culo antes. Na hora, vendo as pessoas desmaiarem de emo??o, pensei em Aznavour, que se aproximara do pa?s ancestral desde o grande terremoto de Spitak. Ele morreu espica?ando Edogan, o algoz da mem?ria dos familiares de Knar, sua m?e.

Quem n?o lembra de Charles e noventa amigos cantando “Pour toi, Arm?nie”, num disco que vendeu 1 milh?o se c?pias para arrecadar fundos?

Hoje, 4 de outubro de 2018

? quase meia-noite na Als?cia. A vizinhan?a dorme desde as 21 horas e n?o ? prudente continuar ouvindo, mesmo baixinho, o repert?rio completo que me traz o computador. Mas antes de apertar o “enviar” para Jo?o Rego, e eu pr?prio me esticar na cama com um livro de S?ndor M?rai – “Dernier jour ? Budapest” -, n?o posso me privar de ouvir a m?sica que provocou a grande virada em sua carreira. Foi no L?Alahmabra, perto da Place de la R?publique, que o audit?rio se viu de um momento para outro mesmerizado por aquele cantor mais esfor?ado do que brilhante que, de repente, come?ou a cantar uma certa “Je m?voyais d?j?”. Tratava-se de uma can??o arrebatadora, cheia de condimentos, em que ele fazia tro?a das limita??es, mas admitia que j? se via “adulado e rico, assinando fotos aos admiradores que se acotovelavam”. Ali ele conquistou Paris. Como jurara em v?o o Rastignac, de Balzac, um de seus escritores favoritos.

Amanh? a Fran?a lhe dir? adeus. Quanto a mim, ser? s? um “au revoir”. E um eterno “merci, Charles”.

***