por Helga Hoffmann
lichtung
manche meinen
lechts und rinks
kann man nicht
velwechsern
werch ein illtum!
Traduzir é impossível, mas é fácil o mecanismo de correção visual que permite informar o que essas linhas dizem:
direção
muitos acham:
esquerda e direita
não se podem
confundir.
mas que engano!
lichtung é a mais citada das brincadeiras linguísticas de Ernst Jandl*. Brincadeira séria. Um oximoro. Quando vi a primeira vez, foi por acaso: estava pintado em sua memória, em letras gigantescas, na parede de um teatro em Frankfurt (Schloss Heidelberg), em junho de 2000, uma semana depois de sua morte.
Lichtung vem de Licht, que quer dizer luz. Lichtung é a palavra usada para uma clareira no meio da floresta, lugar onde a luz do sol chega até o chão. Acontece que nesse poemeto, no alemão, todos os L estão trocados por R, e todos os R estão substituídos por L. Então o título também pode ser Richtung, que significa direção, ou tendência também. O poemeto é dito satírico por causa dessas trocas.
Em qualquer tradução que mantenha o significado, perde-se a sátira política e perde-se a criação visual de palavras ao estilo concretista. Ernst Jandl era admirador de James Joyce. Mas fica evidente do conjunto de sua poesia que o seu interesse não é o jogo das palavras em si.
Não posso deixar de lembrar a tradutora de alemão que fez um enorme esforço para alcançar, na tradução, os elementos de concretismo, a troca de letras. Depois de uma explicação detalhada, letra por letra, muito interessante, Rocirda Demencock apresentou a seguinte proposta (publicada na revista alemã Kulturaustausch no. 61):
mobal da históbia
alguns alegam
rom e buim
não se pode
enrabalhar
mas que rubbice!
Foi bem trabalhoso chegar a um poemeto que finalmente permite a troca de B por R e R por B. Pode satisfazer o concretismo, e desse ângulo merece aplausos. Mas o sentido político do poemeto de 1962 perdeu-se nessa tradução. A leitura política de Demencock, de que Jandl foi premonitório porque hoje esquerda e direita teriam se dissolvido no neoliberalismo (sic), só revela preconceito ideológico. Ainda que seja verdade que no Brasil de hoje há tremenda confusão sobre o que seja direita e esquerda.
Ernst Jandl nasceu em Viena em 1925 e ali foi enterrado, no Cemitério Central, em junho de 2000. Foi soldado na II Guerra muito jovem. No fim da II Guerra foi prisioneiro de guerra dos ingleses. Jandl não falou, em seus poemas, do bem e do mal em geral. Muito menos aparece qualquer identificação de esquerda e direita com bom e ruim. Alguns foram escritos ainda durante o tempo em que foi soldado, e sua ironia amarga chega a mencionar explicitamente Hitler e Stalin na II Guerra Mundial. E em 1962, o mundo já sabia dos horrores da época de Stalin revelados no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética.
Jandl foi chamado de muita coisa, inclusive de anarquista, dadaista, ateu, pacifista… E, para os acadêmicos, é um virtuose da língua alemã. Seus poemas referendam de algum modo todas essas etiquetas. Mas, acima de tudo, transmitem seu horror da guerra, seu horror da condição de soldado, horror de Hitler e Stalin, sua percepção de inutilidade da revolução de Lenin. Transcrevo um dos que não tem troca de letras:
kreml
tag und nacht
scheuern frauen
die goldenen kuppeln
der kathedralen
unsichtbare
scheurfrauen
eines unsichtbaren
gottes
mitten
im verlotterten
kremlin
dia e noite
mulheres esfregam
as cúpulas douradas
das catedrais
invisíveis
faxineiras
de um invisível
deus
no meio
do deteriorado.
E no fim, achei dele uma rima ainda mais curta que a de esquerda e direita embaralhadas, três linhas cruéis apenas:
kriegskrüppel 1955
der könnte jetzt bald
ein hauptmann sein.
schade um sein bein.
veterano de guerra 1955
esse poderia logo logo
ter chegado a capitão
pena que ficou sem perna.
* Sobre Ernst Jendl http://pt.wikipedia.org/wiki/Ernst_Jandl
Helga, estou organizando os artigos da Revista Sera para publicação de um livro e estou, portanto, lendo todos os artigos. Não tinha ainda lido este belo texto sobre o embaralhamento esquerda e direita, tratando de um tema político com poesia e dolorosa ironia. Entschuldigung, “SEHL” GUT
Obrigada pelo seu comentário. Esse tema do embaralhamento de esquerda e direita me dói – por assim dizer – faz tempo. Faz tempo que duvido desses rótulos. Uma vez, quando expressei uma dúvida sobre eles, um jornalista que em geral nem é um fanático respondeu que quem duvida do sentido dessa divisão porisso mesmo já se situa na direita. Norberto Bobbio tanto estava em dúvida que teve que escrever em 1994 todo um livro para argumentar que essa classificação ainda faz sentido: na edição espanhola “Derecha e Izquierda. Razones y significados de una distinción política”, Taurus, Madrid 1995.
O melhor de tudo é ver como, das experimentações linguísticas de Ernst Jandl, Helga Hoffmann consegue descobrir “uma clareira no meio da floresta”, coisa de que andamos muito precisados – uma clareira – nesses tempos tão obscuros.