Helga Hoffmann[i]
Dizer que a oposição não reconhece que perdeu e tenta um “terceiro turno” é artimanha do governo para calar os críticos. A oposição apenas perdeu o medo de fazer oposição. Ao mesmo tempo, de que serve ao país a insistência de alguns oposicionistas em criticar como “estelionato eleitoral” ou incoerência a volta da política econômica à ortodoxia? Ou insinuar que essa sensatez é temporária? O que importa é explicar aos leigos em economia que a Presidente nomeou Joaquim Levy porque não tinha mais remédio depois que sua própria política trouxe estagnação e inflação alta, investimento em queda e piora nas contas externas e até mesmo em indicadores sociais.
2015 vai ser um ano difícil. O crescimento econômico poderá continuar zero. E é claro que a culpa será atribuída ao ajuste proposto pela nova equipe econômica, como faz o pessoal do manifesto que chamou de “retrocesso” a nomeação de Joaquim Levy. O que é preciso mostrar é que o ajuste é necessário por causa de políticas irresponsáveis e insustentáveis, sobretudo no período 2011-2014. Os quatro anos de imediatismo populista é que tornaram inevitável a austeridade dos próximos três.
A experiência recente do Brasil mostrou que gasto público não cria investimento. Mas tampouco tem fundamento a tese de que é o gasto social que impede o aumento do investimento. É claro que gasto público só pode aumentar mais que a receita (basicamente de impostos) enquanto existem compradores para títulos da dívida pública. E esses existem enquanto dura a confiança. Em 2015 são inevitáveis cortes de gastos e aumentos de impostos. Mas não é o gasto social que é excessivo. Há uma confusão entre gasto público e gasto social, manifestada sobretudo na campanha eleitoral. E, mais que isso, entre gasto social e Bolsa Família.
A ineficiência cotidiana da máquina estatal, maus projetos e funcionários incompetentes escolhidos por afinidade ideológica, além de sobrepreço e desvio de dinheiro público, pesam mais no conjunto do gasto público que o Bolsa Família ou o efeito do salário mínimo sobre o déficit da previdência. Só de isenções tributárias e subsídios o governo gastou em 2013-2014 perto de dez vezes o Bolsa Família. Sem falar da megalomania do gasto a fundo perdido para Copa e Olimpíadas.
“Gasto social”, na terminologia oficial, compreende toda a Previdência (mais de metade do total), gastos com saúde, educação, habitação, saneamento, e assistência social. Muita gente, quando se fala em “gasto social”, logo pensa no Bolsa Família, que é apenas parte pequena do total (uns 24 bilhões de reais, para 14 milhões de famílias, pelos dados de 2013). Acontece que no “gasto social” estão aposentadorias e pensões de funcionários públicos com remuneração elevada, que podem chegar a múltiplos de mais de 20 ou 30 do salário mínimo. É a “previdência injusta” que pouca gente quer examinar: 20% dos aposentados de renda mais alta ficam com mais de metade do gasto total do governo com pensões e aposentadorias no Brasil, 10% dos aposentados ficam com 36%. Quanto pesa a aposentadoria dos marajás comparada ao Bolsa Família? Por que será que ninguém defende um teto para aposentadorias?
É claro que, como disse Eduardo Giannetti da Fonseca, seria melhor comemorar a saída de um milhão de pessoas do Bolsa Família, em vez da entrada de um milhão de pessoas. Porque isso só acontecerá com mais crescimento, educação e emprego, e é preciso buscar fórmulas de graduação. Mas isso não é atacar o Bolsa Família. O que importa mostrar, com fatos, é que a renda que o governo concede de um lado, retira do outro quando há inflação generalizada.
O que está emperrando o investimento não é o gasto social, não é um “estado do bem-estar” do qual ainda estamos longe: é o viés estatizante de um governo que ignora regras elementares de gestão, e para quem a empresa privada não é parceira, mas contratada, e não deve ter lucro; é a ideia petista de que empresa privada deve ser beneficente, a ser atacada se tiver lucro, sobretudo se ousar dizer mal do governo; é a falta de confiança nas regras do jogo ambíguas que mudam cada dia, e são interpretadas conforme quem seja o juiz do dia, em que até edital de licitação de uma mesma obra é alterado, em que nenhum conselho de fiscalização tem entendimento unificado, nunca se sabe que critério aditará; é o peso de gastar mais para aplicar milhares de leis tributárias e procurar suas exceções do que afinal com o pagamento do próprio tributo (alto “custo de conformidade”, no jargão econômico); é o espantalho de milhões de processos relativos ao cumprimento de contratos e conflitos trabalhistas emperrando a justiça; é a tentativa de certas autoridades de esconder dados, discriminar entre jornalistas e amedrontar a imprensa; é a intervenção governamental arbitrária, de surpresa, sem plano, sem coerência, nem transparência. Em suma, é a bagunça.
[i] Helga Hoffmann é economista e membro do GACINT-IRI/USP.
Helga,
Gostei muito de seu artigo. Com elegância e competência você aborda aspectos essenciais de nossa vida econômico-política do momento. Aqui quero apenas ressaltar um dos pontos abordados no primeiro parágrafo: a oposição perdeu o medo de fazer oposição. Até que enfim estamos observando essa louvável atitude, manifesta agora no lastimável episódio de barganha do governo com a base aliada para votar a artimanha do superávit primário. Você diz que 2015 vai ser um ano difícil. Será pelo viés econômico. Pelo político, promete.
Obrigada, Teresa Sales. Mas não é bem “viés”. É pelo exame de indicadores antecedentes que os economistas dizem que 2015 vai ser difícil. Aliás, o governo mais uma vez revisou para baixo a estimativa de crescimento do PIB, para 0,8% em 2015. Só com muita sorte conseguiremos isso.
Manifesto minha total concordância com o texto do artigo, e a alegria de reencontrar, mesmo virtualmente nesta revista eletrônica. a amável criatura que conheci, há mais de 50 anos, no apartamento recifense dos meus amigos Ulrich Hoffmann e José Hamilton. Apenas um breve contacto, algumas palavras trocadas, e o seu brilho intelectual e pessoal me encantou, até hoje.
Obrigada, Clemente, gentil demais. A viagem ao Recife em 1963 foi uma descoberta, foi bem linda. Mas a memória é algo meio misterioso. Sabe o que lembro? A sede da SUDENE, o vento vindo do mar em Olinda e a gente (os “premiados” do Curso BNDE/CEPAL) comendo guaiamum. A beleza da namorada do meu irmão, uma morena de maravilhosos olhos verdes. E o mais maravilhoso (naquele momento só, é claro): voltar no avião sentada ao lado de Celso Furtado, que na época eu achava o máximo, como professor daquele curso, pelos olhos cor do mar e as mãos de pianista. Ah! e as esculturas em barro do Vitalino!
… achava… (não tem a função EDITAR, para os comentários)
Não sei se essa sensatez é temporária, mas essa áurea ortodoxa do Joaquim Levy me agrada. Como um mero estudante de Economia, queria presenciar os princípios do Liberalismo Econômico.