Camilo Soares
Fotógrafo e professor de cinema da UFPE
(contribuição de Nicolas Thévenin e Marie-Pierre Duhamel-Muller)

Yu Likwai

Yu Likwai

Como traduzir em imagens as contradições de seu tempo ? Yu Likwai parece buscar a resposta com os filmes que faz, sobretudo nos que contribuiu como diretor de fotografia de Jia Zhangke, ponta de lança da geração independente de cineastas chineses, que deixou de lado as lendas históricas ou folclóricas dos filmes de seus antecessores para apontar suas câmeras para mundo atual e seus problemas. Yu Likwai se tornou referência da nova imagem de um cinema mais crítico às transformações da paisagem social e geográfica da China, sendo o grande homenageado no último festival de cinema 3Continents em Nantes, França, onde concedeu a seguinte entrevista. Também dirigiu três longas de ficção; um deles, Cidade de Plástico (2008), foi filmado no Brasil, país do qual também aprendeu a perceber os contrastes.   

Você pertence à geração do cinema chinês chamada de urbana ou independente. Como você descreveria a imagem feita por esses jovens cineastas em seus filmes, em comparação com seus antecessores?  

Não quero generalizar, pois isso depende do tema, do temperamento do diretor e de sua estética. Mas, como essa geração conta sobretudo histórias contemporâneas e pessoais, há finalmente uma imagem mais urbana e íntima em contraposição a uma imagem mais histórica e coletiva dos filmes de antes.

A abordagem sobre a violência da transformação do espaço na China contemporânea não seria outra característica comum aos filmes da nova geração. 

Necessariamente, nosso cinema testemunha a transformação em alta velocidade da China contemporânea, sua urbanização, sua migração interna entre o campo e as grandes cidades. Tudo isso marca a temática dos filmes dessa geração.

Como contemplar, captar e transpor para o cinema esse fenômeno de mudanças físicas e sociais brutais ?

Acho que toda mudança social é algo que vem do exterior. Não somos muito conscientes dessas transformações em nosso cotidiano. No entanto, tudo isso ao mesmo tempo afeta nossa vida, leva-nos a nos comportar diferentemente, dentro de uma nova psicologia. Tudo vai mudando. Para mim, a contemplação vem do interior. Não somente [contemplar] o personagem, mas também o lugar, o espaço, os objetos também. É um exercício cotidiano que te alimenta para o trabalho no cinema.

 

O cinema que você faz com Jia Zhangke é um cinema de planos largos. Ele não é um cineasta do close-up. É algo que vem dele ou de vocês dois?

Acredito que é uma ideia que vem dele. Ele tem uma verdadeira preocupação o com o gesto, com a linguagem corporal, mais do que a expressão do rosto. Também presta muita atenção na relação do humano com o lugar. O espaço é muito importante para ele.

Nessa importância dada ao espaço, a memória talvez ganhe uma posição significante dentro de um contexto de perda de identidade e de referências históricas e culturais de uma geração. Em filmes como 24 City (2008) e Em Busca da Vida (2006), por exemplo, há uma visível tentativa de retorno a lembranças em vias de desaparição. Como vocês trabalham a memória, histórica e pessoal, no processo de construção do espaço de um filme ? 

Penso que isso se traduz sobretudo pelo desaparecimento. Desaparecimento da casa… desaparecimento de pessoas conhecidas… Em relação às imagens, Jia presta muita atenção, por exemplo, aos objetos. Still Life foi pensado realmente em capítulos como Cigarro, [taça de] Chá, [taça de] Vinho, Bombom. São objetos simbólicos na cultura chinesa, quase como necessidades essenciais, para o dia-a-dia e para o prazer. É uma espece de materialização da memória. Veremos bem a importância desses elementos na sua narrativa. Ele sempre coloca esses objetos em momentos dramaticamente fortes em seus filmes. Já 24 City é um caso especial.

Por que 24 City seria um caso especial?

É particular, pois é um filme especificamente sobre a memória, sobre a derrocada de uma cultura coletiva anciã. Memórias de Xangai, por exemplo, também fala disso, mais seu tratamento documentário é mais clássico. Em 24 City há um princípio mais interessante. Jia traz atores para comprimir várias entrevistas verdadeiras que foram feitas antes. Ele usa uma forma de conversão para trabalhar na fronteira entre documentário e ficção.

Na sua carreira de diretor da fotografia, você vem trabalhando tanto em documentários quanto em ficções e muitas vezes os dois juntos… Como você se relaciona com essas linguagens? 

Gosto bastante do documentário. Acho um exercício de observação e de improvisação essencial para quem quer trabalhar com cinema. Não tenho prioridades quanto aos dois. Depende apenas da demanda.

Podemos, no entanto remarcar uma diferença um tanto estranha aos olhos entre filmes que você ilumina como documentário e como ficção, quando temos muitas vezes a impressão de que a iluminação nos documentários é mais trabalhada do que a luz naturalista de suas ficções, o que foge completamente da norma. Vemos isso sobretudo nas entrevistas. Poderia falar um pouco de como você procede em relação às estéticas documental e ficcional e a relação de verdadeiro e falso que elas emanam? 

Talvez isso acontece pois nos documentários trabalhamos sobretudo o retrato, que é mais do que uma simples entrevista, mas um gênero da pintura. Acho que presto mais atenção ao enquadramento e à luz nos documentários por essa razão. É uma forma de traçar a identidade e as emoções das pessoas. É uma referência pictórica. Na ficção, no entanto, tentamos imitar a realidade o máximo possível.

Você usa muita luz artificial em suas ficções? Quando você chega num lugar para filmar, você prepara rápido a iluminação ou se dá o tempo de trabalhar a luz com minúcia ? 

Depende realmente do filme. Em busca da vida, por exemplo, foi feito sem muitos meios, não tínhamos muito material nem muito acesso à eletricidade [pois as cidades onde o filme foi filmado estavam em ruínas, destruídas por causa da barragem]. Noutros filmes, a luz é bastante trabalhada.

Você acha que a leveza da tecnologia digital nos leva mais perto da realidade? Como escapar assim de um naturalismo redutor?

Digo sempre que mesmo se uso uma câmera DV, filmo como se fosse em 35mm. Se você só tem um lâmpada doméstica para iluminar, é preciso refletir bastante onde vai coloca-la. Que lugar? Com que densidade? Não é uma questão de ferramenta, mas de reflexão do que fazer com o que você tem disponível. O tamanho da câmera não tem importância. Só quando se filma dentro de um carro, você vai precisar de uma pequena câmera. Ademais, deve-se ter o mesmo respeito e o mesmo ritual de trabalho independente do material.

Sobre essa dosagem entre controle e improvisação, você poderia falar do primeiro longa que fizeram, Xiao Wu, Um artista batedor de carteira (1997), sobretudo da famosa última cena em que o personagem central é algemado num poste e rodeado por pessoas da cidade que olham curiosos para ele e para a câmera? 

Na verdade, Xiao Wu é um filme que foi bastante escrito e que mudou muito pouco durante a filmagem em relação aos outros filmes que fizemos depois. Tínhamos sobretudo pouco dinheiro e pouco tempo. Filmamos em 16mm, com uma razão de um take bom para cada quatro. Filmamos tudo em apenas três semanas, seguindo o roteiro à risca. Mas essa cena em especial foi pequeno momento de magia, pois no princípio fiquei tentando evitar de filmar as pessoas que olhavam a câmera, mas havia tanta gente que queria ver o que estava acontecendo que era impossível evitar de filmá-los, até que Jia segurou meu ombro numa hora e me disse de virar a câmera na direção das pessoas. Aquilo acabou se tornando, assim, a última cena do filme, um longo plano sequência completamente improvisado. Mas depois passamos a gostar de improvisar mais e de sentir o ambiente de um lugar de filmagem quando chegamos nele. Antes de fazer a decupagem dos planos, decupamos o espaço. Sempre fazemos isso. Gosto dessa maneira de fazer as coisas, pois outros diretores com quem trabalhei chegam muitas vezes com todas as ideias fechadas, o que é uma pena pois você fica preso e limitado.

Há muitas referências da pintura tradicional chinesa nos filmes de Jia, primeiramente o shanshui, ou pintura de paisagem, como suas montanhas e cursos d’água, a pintura de rolos, com os longos panorâmicos laterais, e o uso de múltiplos pontos de vistas. Como se passa essa discussão na preparação e como transpor essas referências para o cinema?

Isso vale para mais para Em Busca da Vida. Ele me falou bastante sobre pintura de rolos e de perspectivas múltiplas na pintura chinesa. Isso também corresponde com a construção narrativa a partir de vários pontos de vista. Acho que isso foi algo bem coerente no filme. Mas acho que não desenvolvemos uma estratégia ou traçamos um estilo para fazer isso. Penso que é mais por intuição.

Essa intuição talvez tenha se expandido para outros filmes, pois vejo neles essas características estéticas e narrativas, mesmo que de forma não sistemática. Mas há a multiplicação de pontos de vista, longos panorâmicos laterais, o uso do branco como vazio… Talvez haja uma relação intuitiva com essas referências nos demais filmes.

Não pego isso tão seriamente. Acho que é mais algo como: se funciona, funciona, se não funciona, paciência. Não é sistemático. Em Um Toque de Pecado, onde há muita referência aos filmes de arte marcial de King Hu, que filmava muito em estúdio e reconstruía falsas paisagens. Nós tentamos resgatar essa estética de estúdio, filmando em lugares reais. Acho que é uma tentativa mais interessante que apenas seguir uma referência da pintura.

A referência teatral ou de palco também é uma constante nos filmes que você fez com Jia Zhangke. Temos em Plataforma, O Mundo, mesmo no último filme, Um toque de Pecado, que acaba numa representação teatral. Há um relação da teatralização da vida nesses filmes ? 

Acho que é uma relação sobretudo cultural, enraizada na representação teatral chinesa, a partir de grandes clássicos. É mais uma referência narrativa, pois nesse teatro os personagens principais são rebeldes.

Falando em rebelião, você vem de Hong Kong e certamente está seguindo as manifestações por liberdades políticas e pessoais que estão ocorrendo por lá. Você acha que o cinema pode desempenhar um papel importante nesse processo político ? 

Sim, mas não tão voluntariamente. Para mim, o cinema é, como dizia Rossellini, a revelação da realidade. É uma abertura, onde cada um tem sua interpretação. Para mim, isso é o que há de melhor nessa arte.

Depois de dirigir Cidade de Plástico, filme rodado no Brasil, você falou bastante da grande diferença cultural entre Brasil e China. Dentro dessa perspectiva, você desenvolveu para esse filme uma maneira diferente de construção narrativa, estética e de atuação de ator para se adequar ao universo brasileiro? 

Claro, pois é uma confrontação cultural muito interessante. Quando vemos a organização de cor nessas paisagens, nessa grande aglomeração urbana que é a cidade de São Paulo, necessariamente você muda sua visão das coisas. Há sobretudo uma choque cultural, pois os chineses são muito tímidos enquanto os brasileiros extrovertidos. Mas os brasileiros também têm algo como um pessimismo com bom humor, um doce amargor, que na aparência é alegre mas que no fundo sentimos que há algo de triste. É como o samba, que é alegre no ritmo mas triste na letra. É um belo contraste.