A reaproximação diplomática entre Estados Unidos e Cuba, que deve implicar no encerramento do bloqueio econômico à ilha socialista, traduz uma medida histórica que encerra nessa parte do mundo a herança da guerra fria. Mesmo com um ar de validade vencida, o sentido simbólico da medida é indiscutível, o que não dispensa uma análise mais acurada do jogo de forças que interna e externamente irão se beneficiar ou perder com a iniciativa.
Logo na edição seguinte ao anúncio, o influente The New York Times abre matéria de primeira página onde destaca o que chama de “novas oportunidades e apreensões” da política democrata, mostrando um cenário previsível de inquietação constituído por agentes econômicos que podem contribuir para embaralhar as boas intenções dos dois governos. Cabe salientar que o importante diário é claramente favorável às propostas dos democratas e, particularmente, do Presidente Obama, o que não significa omitir os problemas.
Confesso que a principal questão levantada pelo NYT causou-me surpresa. Eu julgava que essa questão já não mais teria influência nas considerações sobre o reatamento das relações entre os dois países e, portanto os seus efeitos já deveriam ter sido completamente esvaziados. Trata-se da reivindicação das indenizações por parte de cidadãos e de companhias americanas que foram desapropriadas sem que o processo indenizatório tivesse sido resolvido. É um imbróglio que envolve cerca de 6.000 proprietários, entre famílias e companhias que foram confiscadas pelo governo cubano nos anos de 1960.
Desse contingente de desapropriados, uma parte com baixa representatividade é constituída de famílias de grandes proprietários rurais, da ex-pequena burguesia cartorial e herdeiros dos donos dos famosos cassinos. Outro grupo, com maior poder econômico e com um direito mais embasado na jurisprudência norte-americana tem por base as empresas capitalistas mais consolidadas como as fábricas ou refinarias de petróleo desapropriadas. Vendo do ponto de vista geopolítico isso pode significar um valor econômico considerado insignificante em função da história e das oportunidades que se abrem com as novas relações políticas, embora sempre seja preciso considerar a natureza protecionista da lei americana em relação à defesa da propriedade de seus cidadãos e empresas.
Por outro lado, muitos segmentos econômicos mais modernos envolvidos na questão cubana já criaram, de uma forma ou de outra, mecanismos de convivência durante esse longo período, instituindo negócios (trademark) a despeito do embargo. Isso não impede as demandas judiciais individuais que seguramente ocorrerão. É preciso considerar que vários escritórios de advogados há tempo discutem alternativas que não sejam as tradicionais indenizações que fogem do alcance da combalida economia da Ilha. A lógica capitalista indica que mesmo havendo direitos a reclamar, o importante é estabelecer as condições para novos negócios.
Buscando outras informações na imprensa de língua espanhola e em contatos pessoais em Miami, é fácil encontrar interesses mais visíveis e imediatos por parte de milhares exilados (a maioria exilados econômicos) que trabalham, fazem barulho e contribuem significativamente para o PIB de Cuba através de remessas legais ou ilegais de dólares para os parentes residentes em Cuba. Muitos já são eleitores nos EUA e mexem com o xadrez da política local, a ponto do Senador do Partido Democrático, pela Flórida, ter se manifestado contra a proposta de reatamento de Obama. Ao que parece, a maioria desse grupo olha o reatamento com desconfiança porque não acredita na boa vontade dos “Castros”. Uma boa parte dos depoimentos considera que os EUA estão socorrendo a uma estrutura moribunda que está prestes a desabar. Não dá para saber se é a expressão da maioria, porém, é o discurso que mais se manifesta. São trabalhadores comuns de bares, restaurantes, lojas e taxis que enviam em média um terço de seu salário para os familiares na Ilha.
Além das matérias da imprensa é muito fácil colher no contato pessoal histórias de vida sobre o sacrifício que fazem para que os seus pais e avós superem o racionamento de comida e bens de consumo imposto pelo regime. Não é muito claro o que realmente temem com as medidas de reaproximação com os EUA, mas, em geral, os depoimentos destacam o medo de serem apanhados em uma armadilha, como o aumento do confisco de suas remesas para parente. Aparentemente não há uma lógica nesse temor.
Ainda no campo de exilados dá para perceber um setor mais politizado, o grupo “Cubanos pela Democracia”, que joga com a possibilidade de uma abertura para além da flexibilidade econômica e, ainda, um segmento de direita que aposta no fracasso de qualquer aproximação. Para o primeiro grupo Cuba não é uma China que tem o que oferecer às empresas americanas e, portanto, a moeda de troca só pode ser a democracia. No caso, uma democracia realmente pluralista onde todas as tendências participem em situação de igualdade. O grupo de exilados pela democracia se coaduna muito com a atual oposição interna, que acredita numa transição pacífica, lenta e gradual para a democracia. A conhecida blogueira cubana Ioani Sánchez, em seu último artigo no Estado de São Paulo (17/012015), retrata tal sentimento ao mencionar a existência de uma euforia na Ilha em razão de já ter entrado em vigor as novas regulamentações sobre viagens, seguros, importações de bens, remesas e telecomunicações. Ioni cita uma jornalista independente que afirma ter recebido as notícias com entusiasmo em razão de que “esses fluxo de pessoas que virão juntamente com o aumento também das remessas, significa um retorno do país a normalidade”.
A libertação de sessenta presos políticos, recém-ocorrida, seguramente contribuiu para estender tal euforia ao setor mais politizado. Voltando para a maioria dos exilados e seus familiares na Ilha, a satisfação maior vem pelo aumento do limite do dinheiro que pode ser enviado a cada trimestre, que passa de U$$500 para até U$$ 2000, além da possibilidade de remessa de pacotes de utensílios em grande quantidade. Os jovens esperam investimentos externos na tecnologia para poder oferecer-lhes conectividade irrestrita. Nesta área pode haver uma rápida inversão de empresas americanas na linha da compensação das indenizações.
Enquanto os cubanos esperam melhorar seu nível primário de consumo e respirar liberdade, “nosotros’’ ficamos comemorando o feito histórico da abertura para amenizar o sonho perdido de uma geração.
Professor, muito bom seu artigo, bem embasado e uma exposição clara dos argumentos (coisas raras em artigos acadêmicos, embora o seu esteja mais para o jornalismo – e isto é um elogio).
São pontos surpreendentes. Quanto estive na ilha, há uns seis anos (Fidel ainda estava no comando), vi em Varadero (espécie de Cancún cubana) inúmeros cadeias internacionais de hotéis. Prova de que capitalismo vai atrás de onde pode fazer negócios, independentemente de parti pris político ou ideológico, como é o caso mais flagrante, o da China.
Muito bom o relato e análise de José Arlindo.
Acredito que, embora sem retorno, a normalização das relações Cuba/USA vaí ser tumultuada, principalmente pelo que JA chama a atenção: as propriedades que foram nacionalizadas por Fidel. Cuba não reconhece o direito de mais de 50 anos atrás, e os americanos não abrem mão da propriedade. Neste choque, haverá alguma confusão, que pode demorar, mas não impedir a abertura. Viver para ver.
Caro Arlindo – Você levantou umas das questões que era de se esperar que viessem à tona: o problema das indenizações, que os americanos não vão deixar passar em branco, por motivos óbvios, pondo em choque a legitimidade revolucionária e a legitimidade burguesa ao direito de propriedade. Em seguida, a questão da redemocratização de Cuba, que passa por uma profunda dor, consequência de uma revolução violenta, de rupturas, de sectarismos, bem como anos de ditadura castrista. Ainda não dá para antever a nova correlação de forças que se desprenderá do que aconteceu, mas urge uma observação atenta aos desdobramentos dessas forças. Você abriu as discussões por aqui. Um bom começo.
Indenizações? E quanto o governo dos USA vai pagar aos argentinos e aos cubanos pelo fuzilamento de Che Guevara? Ele, individualmente, expressa e vale muitíssimo mais. A “doce” Ioani Sánchez certamente não reclamará tal indenização! O professor José Arlindo Soares vai sugerir à Presidente Dilma ajudar Cuba a indenizar essa gente?
Coisa boa essa revista “SERÁ”. Encontrar os mestres Zéarlindo, Homero, Afrânio, João, Sérgio e tantos outros já é uma bela referência pra “nosotros”, pois estamos falando Cuba. Estou sendo atrevido, uma vez que não tenho mestrado ou doutorado, mas apenas VIVERADO sem menosprezo a esse galardões. Preocupa-me a dificuldade em absorver a questão econômica-capitalista, sem cuidar do seu estrito cumprimento à reciprocidade que o reatamento das relações Cuba/Usa envolve. De acordo com as estritas regras da economia capitalista, se Cuba for responsabilizada pelos danos ocasionados pelas desapropriações há cinquenta anos, como fica a reparação do prejuízo sofrido por Cuba durante os cinquenta anos de bloqueio econômico ? Sobretudo pelo endosso manifestado pelas resoluções da ONU de condenação ao bloqueio, praticamente unânimes, desde que só permanecia o voto contrário dos Estados Unidos e de Israel ? Como informa nosso amigo Homero, sem qualquer ideologia o “capitalismo vai atrás de onde pode fazer negócio”. O que dá pra Chico, dá
pra Francisco!