Frederico Toscano (*)

A música é um privilégio da espécie humana? Muitos musicólogos afirmam que sim. Entendem que enquadrar como música o som dos pássaros e o ruído das fontes e dos ventos seria, a rigor, inadequado. Por mais musical e agradável que seja, o canto dos pássaros é complexo para notação, até mesmo para músicos profissionais, e quase sempre rico em sons parciais (não harmônicos) que nossa imaginação filtra com difícil identificação das alturas (vide artigo anterior). Quem ouve o terceiro concerto para flauta do opus 10 de Vivaldi, conhecido como “O Pintassilgo”, não imagina o quanto foi complicado compor e o quanto é difícil reproduzir o som do passarinho.

O bioquímico francês Jacques Monod (1910-1976), que recebeu o Nobel de Medicina/Fisiologia em 1965, afirmou que a música nasceu quando “combinações criadoras e associações novas, realizadas num indivíduo, puderam não morrer mais com ele quando transmitidas a outros indivíduos”. Isso mostra que não se pode falar em música na humanidade enquanto os sons emitidos pelos nossos ancestrais eram esporádicos ou individuais. Para haver música, é preciso um mínimo de organização sonora e uma adaptação de corpos sonoros a uma finalidade prática ou artística. É necessário existir comunicação entre indivíduos, um mínimo bater das mãos uma na outra ou no corpo ou percussão de objetos entre si.

Esses diferentes gestos podem ter aparecido, simultânea ou sucessivamente, em várias regiões do planeta. Nenhum dado científico permite estabelecer, nem mesmo aproximadamente, a ordem de aparecimento dos fenômenos musicais. Seria razoável, porém, uma sucessão de etapas evolutivas, como a seguinte, proposta pelo musicólogo francês Roland de Candé (1923-2013):

  • Inicialmente, nossos ancestrais emitiam sons com alguma organização rítmica rudimentar, por batidas com bastões, percussão no corpo, objetos sacudidos ou chocados entre si.
  • Com o tempo, passou-se a imitar ritmos e ruídos da natureza, pela boca e pela laringe, considerando que o grito também é uma válvula de escape das sensações e emoções primárias, um meio de expressão das necessidades básicas.
  • Com as variações na altura e no timbre da voz, surge lentamente um Homo musicus entre os ancestrais do Homo sapiens, à medida que se vivencia a experiência individual e aparece a consciência (70 mil a 50 mil anos atrás).
  • Então se verifica a fabricação de objetos sonoros, mais diferenciados, mais eficazes, capazes de alguma expressão “artística” e de imitação dos ruídos da natureza, geralmente com um caráter místico. Alguns aborígenes, por exemplo, imitam a chuva nos tambores para fazê-la cair.
  • Uma lenta adaptação encefálica e muscular tornou o homem capaz de falar e cantar. Daí ele terá a ideia genial de associar a expressão vocal à expressão “instrumental”. O Homo sapiens adquire, então, uma consciência musical (cerca de 40 mil anos atrás).
  • Com o avanço das sociedades em formação, os fenômenos sonoros induzidos se organizam de maneira sistemática; o canto se distingue da linguagem falada; a dança e a música instrumental ganham importância. É o nascimento das primeiras civilizações musicais (cerca de 9.000 a.C.).

Não há provas, porém, que a música vocal tenha aparecido antes ou depois da música instrumental. Somente no final do Paleolítico foram modelados os primeiros objetos que permitiam produzir sons de altura determinada: pedras ou troncos de árvore escavados, apitos de osso, bambus talhados, entre outros. Mas é apenas no Neolítico (cerca de 9.000 a.C.) que as ferramentas de pedra polida permitem fabricar objetos sonoros afinados na altura desejada a partir de um modelo predefinido, condição necessária para o desenvolvimento de uma civilização musical. É aí que aparecem os instrumentos de membranas e cordas. Em seguida, as primeiras civilizações metalúrgicas que usam o cobre (em torno de 5.000 a.C.) poderão fabricar instrumentos mais refinados.

As tradições musicais mais antigas são provavelmente da Mesopotâmia, do Egito e da China. É impossível determinar com certeza uma ordem cronológica. Os documentos disponíveis já mostram civilizações em plena prosperidade. Os principais instrumentos do Egito antigo eram a harpa, único instrumento de cordas nativo; a cítara ou lira, importada da Síria; o alaúde, também de origem semita, único instrumento de braço utilizado no Egito; a flauta; a corneta ou trombeta; o sistro, um instrumento de percussão; os crótalos, espécie de pratos de origem pré-histórica; os tambores, com uma diversidade de modelos de madeira, barro cozido, de pele (como pandeiros) e outros; e um curioso órgão de funcionamento hidráulico. Como se observa, alguns instrumentos que já eram usados no Egito antigo sobreviveram por muitos séculos seguintes. O alaúde ainda era tocado como instrumento solo e utilizado no acompanhamento de canções no século XVI e XVII, tendo como principal compositor o inglês John Dowland (1563-1626). O italiano Saverio Mercadante (1795-1870) ainda escrevia concertos para flauta em meados do século XIX, dezenas de milhares de anos depois de sua invenção.

É na Grécia, no entanto, que efetivamente aparecerão pela primeira vez, no nível de uma consciência musical, a ambição de criar e o gosto de escutar. Há milênios a música era meramente funcional: religiosa, mágica, terapêutica, militar, para agradar a nobreza. A música se dirigia aos deuses e aos reis, às forças invisíveis e visíveis. Entre os gregos, porém, a música definitivamente se torna arte e revela sua beleza ao primeiro público socialmente consciente. O músico passa a ser visto mais como detentor de uma ciência, do que meramente uma pessoa com dons especiais. Considera-se necessário desenvolver esses dons pelo estudo e pelo exercício. A música se torna uma disciplina escolar e é vista como uma sabedoria.

Na Grécia antiga, as diversas organizações sonoras (ou formas de organizar os sons) diferiam de região para região, de acordo com as tradições culturais de cada uma delas. Assim, cada uma das regiões gregas deu origem a um “modo” (organização dos sons naturais) muito próprio. Dessa forma, apareceu o modo dórico (Dória), o modo frígio (da região da Frígia), o modo lídio (da Lídia), o modo jónio (da região da Jônia) e o modo eólio (da Eólia).

Na segunda metade do século IV a.C., entretanto, já se sente uma transformação na música, que foi criticada pelo grande dramaturgo grego Aristófanes na sua comédia As rãs (405 a.C.), considerando a música do poeta grego Eurípedes por demais refinada. Em suas tragédias, os sucessores de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes introduzem uma diversidade de requintes. Nas peças, há sessões musicais sem qualquer relação com a ação.

A música instrumental grega passou a ser, a partir de então, objeto de exibições em verdadeiros concertos públicos, algo que nossa civilização só vai ver novamente 20 séculos mais tarde. A música se torna uma arte de especialistas em que o público não se vê mais representado e que o ouvinte não pode compreender sem uma instrução adequada. Esse processo de extrema especialização com desvalorização do ensino musical gera certo desprezo pela profissão de músico, que vai persistir até a música se tornar, na Idade Média, monopólio da Igreja.

A decadência da cultura musical na Grécia antiga, que se acentuou durante o domínio macedônio (359 a 196 a.C.), não comprometeu sua influência em todo o Mediterrâneo romano até os primeiros séculos do cristianismo. Nas grandes cidades, como Roma e Alexandria, as pessoas ricas têm escravos músicos, que tocam uma música refinada para o cotidiano. Os historiadores afirmam que também existia música mais simples para uso do povo.

No Império Romano, alguns artistas se tornaram ricos e poderosos, como o cantor Menecrato, a quem o imperador Nero deu um palácio e muitas terras. Já se percebe claramente a separação entre música popular e música erudita. O caráter democrático dos espetáculos de Atenas não existia mais e os fiscais romanos, como fará a Igreja, condenavam a música popular, cujas tradições o papa Gregório I se esforçará por aniquilar.

A revolução espiritual que os primeiros apóstolos do cristianismo iniciaram se impôs lentamente. A cultura que daí resultou é fruto de uma síntese de, pelo menos, três elementos, segundo Roland de Candé:

  1. A civilização greco-romana. Sua cultura é dominante, pelo menos em aparência: é baseada na escrita e muito pouca gente sabe ou consegue ler, apesar da escola obrigatória. Na música reinam os especialistas, que utilizam uma teoria complicada, distante da prática popular. No governo delirante de Nero (54-68), os patrícios romanos dedicavam-se à música para imitar o exemplo imperial. A autoridade dos papas impôs seus critérios morais de discriminação entre a “boa” música e a música “ruim”, ou seja, a música que eleva a alma e a que a perverte.
  2. As tradições celtas. Classe muito influente e respeitada na Europa antiga, os bardos tinham a missão de transmitir, geração após geração, as tradições musicais e literárias. Dessa prática iriam nascer as chamadas “canções de gesta” (em francês “chansons de geste”), um conjunto de poemas cantados dos séculos XI e XII que exerceram grande influência na literatura medieval, tanto em sua região de origem como por toda a Europa.
  3. As tradições orientais judaico-cristãs. Os primeiros cristãos introduziram a recitação melódica (chamada “cantilena”) entre os povos evangelizados, que era diferente das praticada pelos celtas e da música erudita greco-latina. Devia ser uma forma de expressão popular, influenciada pelos costumes musicais hebraico, sírio e egípcio.

Constantino acabou com a perseguição oficial ao cristianismo no Império Romano em 313 d.C. e, a partir de então, iniciou-se a construção de templos cristãos. No século IV, Santo Atanásio de Alexandria relata que, na cidade de Mileto, na atual Turquia, nas igrejas ouviam-se cantos alegres com palmas ritmadas. De acordo com documentos do mesmo século, os hinos e os salmos eram cantados por dois coros em alternância, respondendo um ao outro. Esse recurso musical ainda era utilizado mais de mil anos depois, no Vaticano, nas obras corais de Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594), o mais famoso compositor do século XVI.

A Idade Antiga terminou oficialmente em 476 d.C., porém as grandes invasões bárbaras que devastaram o Império Romano de ponta a ponta não foram capazes de destruir o patrimônio cultural dos cristãos. Desde os tempos de Santo Ambrósio e Santo Agostinho (séc. IV), muitos cantos novos enriqueceram a música cristã. Enquanto as outras artes estavam, segundo alguns historiadores, mergulhadas nas trevas, uma nova era musical era construída anonimamente nos mosteiros da Igreja. Nesse anonimato havia exceções, como São Venâncio Fortunato (c. 535-600), bispo de Poitiers, na França, que foi o autor dos hinos Vexilla regis prodeunt e Pange lingua. Ele é considerado o último poeta da Antiguidade e a ponte entre esta e os novos tempos.

Diante das diferenças nos rituais das diversas comunidades religiosas, favorecidas pelo isolamento geográfico de algumas delas, vários papas tentaram definir um repertório comum para toda a Igreja. Foi graças, porém, à iniciativa do papa Gregório I (c. 540-604) que foi estabelecida uma unidade da liturgia. Surge, então, o canto gregoriano, que ouvimos até hoje em mosteiros do mundo inteiro.

As características do canto gregoriano foram herdadas dos salmos judaicos e dos modos gregos, comentados anteriormente neste artigo, que no século VI foram selecionados por Gregório I para serem utilizados nas celebrações religiosas da Igreja Católica. Somente este tipo de prática musical podia ser utilizado na liturgia ou outros rituais católicos.

As notas musicais do canto gregoriano eram representadas por símbolos chamados “neumas”. As neumas eram pontos e traços que indicavam pausas e regras de expressão. Eram posicionadas sobre as sílabas do texto e serviam como um lembrete sobre a forma de cantar. Porém serviam apenas para quem já conhecia a música, pois as neumas tinham uma limitação muito séria: não representavam com precisão as alturas das notas (se eram graves ou agudas) e a sua duração.

Para resolver este problema as notas passaram a ser representadas com distâncias variáveis em relação a uma linha horizontal. Isto permitia indicar as alturas. Este sistema evoluiu até uma pauta de quatro linhas, com a utilização de claves, que permitiam alterar a extensão das alturas representadas. Inicialmente, o sistema não tinha símbolos para indicar durações das notas. Somente por volta do século X, quatro figuras diferentes foram introduzidas para representar durações relativas entre as notas.

Boa parte do desenvolvimento da notação musical (sistema de escrita utilizado para representar graficamente uma peça musical) deriva do trabalho do monge beneditino Guido d’Arezzo (c. 992-1050). Entre suas contribuições estão o desenvolvimento da notação absoluta das alturas (onde cada nota ocupa uma posição na pauta de acordo com a nota desejada). Além disso, ele foi o idealizador do solfejo, método de ensino musical que permite ao estudante cantar os nomes das notas. Com essa finalidade criou os nomes pelos quais as notas são conhecidas atualmente: dó, ré, mi, fá, sol, lá e si. A partir de então, o sistema de notação com pautas de cinco linhas tornou-se o padrão para toda a música ocidental, mantendo-se assim até os dias de hoje.

Aos poucos, na Idade Média, a música deixou de ser um entretenimento comum. Tornou-se monopólio do Vaticano e dos mosteiros, que possuíam sozinhos a ciência musical. A Igreja definia que músicas podiam ser ouvidas, cantadas e tocadas, e quais eram proibidas, sob pena de excomunhão.

No próximo artigo, conversaremos sobre a música produzida a partir do ano 1000 até o Renascimento.

(*) Frederico Toscano trabalha no Ministério da Ciência e Tecnologia, é mestre em administração e autor do blog Euterpe [http://euterpe.blog.br], especializado em música clássica.