João Rego

Flectere si nequeo superos, Acheronta Movebo!* ( Virgílio em Eneida)

Não quero aqui falar sobre instituição democrática (partidos políticos, eleições, etc.). Gostaria de compartilhar algumas reflexões sobre como um homem segue outro homem, capturado pelo seu discurso e como sobre este projeta todas as suas esperanças até que, uma vez frustradas, coloca outro líder no lugar. Este é o momento celular, atávico e imutável do organismo político que o vem nutrindo ao longo da história.

Somos, logo após o nascimento, um dos animais que demora mais tempo para construir sua independência dos pais biológicos. E quando adquirimos a consciência, levamos ainda muito tempo vendo o universo através da proteção das figuras paternas. Exageramos, nessa fase, o poder e a omnipotência do pai, aquele que nos protege, nos pune e tem poder da vida e da morte sobre nós.

Na infância, não há como ver o mundo de outro modo.

Aos poucos, já adultos, construímos nossa visão de mundo com certa autonomia, porém carregando fortes traços dessa estrutura de dependência que tivemos na infância. É preciso ter algo em que acreditar para dar suporte à nossa existência, pois a realidade, muitas vezes, pode ser extremamente ameaçadora e precisamos de mecanismos de defesa para nos movermos diante da vida. Estes mecanismos são os afetos, por meio dos quais amamos, sofremos e tecemos nossa existência.

Alguns sujeitos, em consequência da complexa e singular malha das identificações e das transferências que os constituíram, têm a religião como suporte absoluto; outros, o oposto, encaram a vida e seus mistérios munidos do ceticismo materialista. Aqueles que, pelas malhas do destino enveredam na política, dão um sentido a sua ação movidos por uma ideologia e também, com a certeza de um crente, constroem seu universo e investem nele suas energias. Muitos – os pusilânimes – nem isso fazem. Fingem um pouco, disfarçam daqui, fazem um arranjo acolá e conseguem tocar a vida capturando os incautos eleitores.

Isolemos apenas aqueles que têm uma ideologia, que guiam suas estratégias partidárias e dedicam, com fé cega e rara magnanimidade (estranho, nessas horas sempre se quer o bem do próximo), parte da sua vida, se não toda, para materializá-la. O sentido é sempre o de transformar a realidade social, política e econômica — numa tentativa de inscrever-se na história.

Desde os primórdios da nossa história o homem vem seguindo seus profetas. Quais cegos em uma noite de tempestade, a horda segura pela mão seus profetas e os seguem — alienados aos significantes pelos quais foram capturados. Estes, por estranha e misteriosa razão, se arvoram no direito de saber mais do que os outros e, com seus discursos e ações, conseguem conquistar poder e a passiva anuência da maioria.

Toda a história da religião está marcada por estes profetas visionários que, em seus delírios, intermediaram a relação do homem com Deus – essa entidade que mesmo sem “provas científicas” da sua existência, dá suporte a angústia que funda o humano de “sermos para a morte”. Diz-se – em uma visão materialista – que uma religião é um conjunto extremamente bem articulado de delírios coletivos que conseguiu dar certo — cabendo aos seus profetas, intermediarem o homem e sua frágil humanidade ao céu.

Religião e Estado moldaram a história dos povos num percurso de guerras, avanços tecnológicos e rituais sustentando nossa fragilidade material diante do tempo que a tudo destrói. No fundo, buscamos um Pai que nos guie e nos garanta que há um sentido em existir, mais ou menos do mesmo modo, quando ainda crianças frágeis e impotentes, nos escudamos, por absoluta falta de opção, na proteção das figuras paternas.

Com a evolução do Estado moderno, muito do que era sagrado foi decantado, pela via da lógica e da razão, para o profano. Ou seja, o iluminismo desconstrói a aura do Deus nas instituições evoluindo para a Lei, como instância capaz de conter nossa barbárie (pulsão) – e sobre ela dar um sentido possível, ainda que inexato…difuso.

É aí que, no campo da política – instância voltada a conquista, a manutenção e reprodução do poder – entram as ideologias, conjunto muito bem articulado de ideias – quase sempre organizado por intelectuais (notaram a semelhança, alguns parágrafos acima, com a descrição dos profetas religiosos?) – que conseguem aglutinar um grupo de fiéis seguidores em busca de algo que dê sentido as suas vidas aqui na terra.

É certo que uma ideologia como o marxismo, em seu tempo histórico, exerceu importante influência nas formas de vermos a sociedade e suas relações de dominação associada à produção. O problema é que a realidade social, através da história, sofre mutações dinâmicas e inesperadas, jogando por terra as bases que fundaram tal ideologia. Diferente das religiões, onde a prova de realidade é incapaz de desacreditá-las, posto que seu objeto final está centrado na vida após à morte, as ideologias políticas são sistematicamente testadas, pois menos pretenciosas, se propõem a, através da conquista do poder, usar o Estado a favor do seu modelo de sociedade. Têm em comum a capacidade de deixar de fora seus opositores, ou até mesmo de eliminá-los, como fez o nazismo na primeira metade do século XX, a Igreja Católica durante a Santa Inquisição e o Stalinismo durante a “revolução socialista” — apenas para citar alguns exemplos irretocáveis da brutalidade humana quando se segue uma ideologia movido pela certeza cega da fé.

As duas guerras mundiais e setenta anos de tentativa de construir uma sociedade comunista, forjaram o século XX, aperfeiçoando os modelos de governos democráticos, impondo-nos, por fim, a democracia como um valor – imperfeito, inacabado, e sempre em processo de transformação -, porém universal. A sociedade da informação rompe, de forma célere, os paradigmas da produção abrindo espaço para os da comunicação. Comportamentos sociais fluem e refluem em um fluxo incessante de desejos, narcisismos, consumos e frustrações, levados pelas ondas incessantes das inovações.

Profetas? Sempre existirão grupos de pessoas desamparadas, carentes daquela proteção paterna que os constituíram na infância, prontos a segui-los – sem que disso tenham consciência.

 

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* Se eu não posso dobrar os Poderes Superiores, vou mover as regiões infernais.