No início dos anos 90 o Brasil vivenciava uma inflação anual de quatro dígitos e vinha de 11 tentativas fracassadas de estabilização baseadas em políticas ortodoxas de administração de demanda ou heterodoxas de congelamento de preços e rendimentos.

Os resultados expressivos do programa de dolarização na Argentina, em 1991, ensejaram opiniões favoráveis à adoção daquela experiência no Brasil. O charme do programa deriva de que todos os processos de hiperinflação no mundo terminaram abruptamente no bojo de acentuado grau de dolarização das economias envolvidas.

De fato, nos casos de hiperinflação aguda ocorrem duas mudanças espontâneas da sociedade: primeiro, em busca de indexadores que espelhem contemporaneamente a trajetória dos preços, como a variação diária da taxa de câmbio; segundo, em direção ao uso de um padrão monetário forte e estável (dólar, no geral), já que a moeda nacional perde suas propriedades básicas.

A partir de determinado estágio, a sociedade passa a referenciar-se cada vez mais na cotação do dólar no paralelo, quer dizer, no próprio dólar, para determinação de preços e valores internos. Dá-se assim a dolarização da economia.

A essa altura, como a população utiliza o dólar como unidade de conta, a taxa de inflação na moeda interna passa a ser cada vez menos representativa. Fixa-se então a taxa de câmbio entre a moeda doméstica e o dólar. Como os preços internos são reajustados pelas variações da taxa de câmbio, quando esta taxa é congelada os preços param de crescer, cessando a inflação, graças à dolarização.

Esse script de dolarização enfrentava obstáculos no Brasil, já que a pronta estabilidade de preços pressupõe: (1) que a economia esteja suficientemente dolarizada, no sentido de indexada ao dólar, e (2) que haja garantia de conversibilidade, da moeda nacional por dólar.

Quanto a (1), a economia brasileira sempre foi pouco dolarizada, quer quanto à sua riqueza alocada em dólar ou em ativos domésticos indexados ou conversíveis em dólar, quer quanto ao atrelamento dos preços internos à cotação do dólar. Assim, após a fixação da taxa de câmbio muitos preços internos não-dolarizados continuariam a subir por conta da inflação residual, sobrevalorizando o câmbio real, causando déficit em conta corrente e pressão sobre as reservas.

No que concerne a (2), o volume de reservas a ser mobilizado para honrar a livre conversão era uma incógnita diante do temor de que tão logo se fixasse a taxa de câmbio os detentores dos agregados monetários (base, M1, etc.) corressem para o dólar. 

Para superar os obstáculos (1) e (2) pensou-se numa variante ao modelo clássico de dolarização: introdução de uma moeda paralela conversível, emitida por um órgão independente, o Conselho da Moeda (Currency Board), que circularia simultaneamente com o Cruzeiro Real (CR) e seria lastreada em reservas.

Sendo a moeda paralela superior ao CR, com o passar do tempo um número cada vez maior de transações e preços seria cotado e liquidado naquela moeda, o que provocaria gradual diminuição dos reajustes baseados na inflação passada (a aguardada desindexação começaria a ocorrer). Em outras palavras, a economia iria aos poucos se “dolarizando” na moeda paralela.

Quando a referência ao CR estivesse praticamente eliminada, fixar-se-ia a taxa de câmbio entre as duas moedas, estabilizando os preços na moeda antiga e dando origem a um novo padrão monetário detentor das propriedades que o CR perdera.

O governo Fernando Henrique Cardoso adotou tais fundamentos, porém em vez de criar uma segunda moeda, instituiu um índice-moeda, a URV, ao qual os contratos podiam ser convertidos, com valor corrigido diariamente em relação ao CR, refletindo a inflação presente, e estaria atrelado à variação da taxa de câmbio (ao dólar). 

É a arte do drible na sua mais expoente manifestação: dolarização induzida, que não é a própria, e moeda paralela, que não é moeda!

A reforma monetária consistiu (a) da instituição de um indexador contemporâneo, a URV, corrigido pela inflação presente, reduzindo a um dia a memória inflacionária, e (b) da transformação da URV, após seu uso generalizado como indexador de contratos, na moeda do país, o Real, que nasceria forte e estável. 

Após três meses de URV, o ippon: no dia 1º de julho de 1994, há 29 anos, quando se fixou a taxa de câmbio entre a URV e o Cruzeiro Real em CR$ 2,750,00 = US$ 1,00 = R$ 1,00. A inflação quase zerou, o país retomou o crescimento com mobilidade econômica e ascensão da população vulnerável ao mercado de consumo. 

Pena que más políticas à época afetaram o dinamismo da economia e impediram que a inclusão social fosse mais duradoura. Todavia, é de justiça homenagear FHC, nos seus 92 anos, e sua equipe de economistas, pela reforma empreendida, exaltada urbi et orbi como uma das mais brilhantes e exitosas do mundo.