Arte e ciência são ambas formas de criação humana. Mas são resultado de processos completamente diferentes e quase opostos: a sensibilidade e emoção dominando a primeira e a reflexão lógica orientando a atividade científica. Enquanto a arte procura despertar os sentidos humanos, a ciência busca a razão para explorar e interpretar o mundo e os humanos. A arte é dionisíaca e se cobre do mistério e dos segredos, de caminhos tortuosos. A ciência é apolínea e busca desvendar e jogar luz sobre o que a arte tenta esconder. A ciência analisa e explora os fenômenos procurando demonstrar e comprovar seus mecanismos para além dos mistérios. A arte, ao contrário, não tem compromisso com fatos e verdades, a arte se mede pela sua capacidade de tocar a alma e os sentimentos humanos. O mistério e os segredos da vida são o alimento da arte que a ciência insiste em quebrar e explicar, num permanente conflito.
Enquanto a arte se alimenta do mistério e da inquietação e surpresa diante do mundo, o esforço do cientista consiste, ao contrário, em desvendar o desconhecido e misterioso na natureza e na condição humana. É conhecido o lamento do poeta inglês John Keats às descobertas da ciência que, escancarando a lógica da natureza “no frio catálogo das coisas triviais”, desmontam os segredos, destroem a fantasia e a poesia. Ao explicar o fenômeno do arco-íris como resultado do prisma que separa as cores da luz branca do sol, Isaac Newton teria destruído todo seu encantamento.
“Todos os encantos não se dissipam
Ao mero toque da triste filosofia? Existia um maravilhoso arco-íris no céu:
Conhecemos agora sua trama, sua textura
No frio catálogo das coisas triviais.
A filosofia decepará as asas de um Anjo,
Decifrará os mistérios item por item,
Eliminará o encanto do ar e o tesouro escondido –
Desvendará o arco-íris” (Lamia – John Keats)
Mas, e a beleza e exaltação da descoberta científica, a emoção diante de uma elegante e lógica formulação teórica? De forma diferente da poesia, é precisamente desvendando os mistérios que a ciência emociona. Em oposição a Keats, o cientista Richard Dawkins afirma que “o conhecimento e o desvendamento dos mistérios e segredos da natureza são a mais bela e instigante obra de arte, a mais valiosa criação humana e, portanto, superior à poesia” (Desvendando o arco-íris), a ciência descobrindo poesia nos padrões e leis da natureza.
Na verdade, os poetas vão continuar sentindo e despertando emoções estéticas com o arco-íris enquanto os cientistas se emocionam com a elegância e beleza da explicação científica do fenômeno. Que força estética tem a síntese de uma teoria como a formulação de James Lovelock sobre o processo biológico de Gaia: “A vida tornou a terra habitável”. E que emoção pode despertar uma construção filosófica instigante? Mas o observador ou leitor destas formulações tem que ser iniciados na biologia e na filosofia para ser tocado pelo seu impacto estético.
Entretanto, a fronteira entre ciência e arte não é tão rígida e clara, elas se misturam e completam na mesma intensidade em que se opõem. A emoção estética também está presente no ato e na investigação científica por mais racional e lógica que seja esta atividade. A propósito desta relação estética, Carl Sagan conta o curioso processo de descoberta do físico James Clerk Maxwell na formulação da sua famosa teoria do eletromagnetismo. Por mais que refletisse e elaborasse, a combinação das variáveis e dos parâmetros que utilizava na teoria não formava uma equação matemática que tocasse sua intuição e seus sentimentos. A partir deste incômodo e alimentado pela sensibilidade científico-estética, Maxwell compôs uma coleção consistente e, ao mesmo tempo, elegante de equações. Misturando lógica e emoção, razão e arte, o físico formulou as quatro equações que constituem a moderna teoria do eletromagnetismo. Entendendo que as equações devem ser belas como o fenômeno que tenta explicar, ele desenvolveu sua teoria, com uma boa dose de intuição e sentimento estético.
Obviamente, a beleza de uma equação pode ser percebida apenas por um cientista, e um cientista da área de conhecimento, sentindo a emoção estética da representação do objeto de análise que descobre e desnuda os mistérios. Nesse sentido, a arte levaria uma grande vantagem sobre a ciência porque desperta emoção nos sentidos humanos independente do nível de conhecimento e formação das pessoas diante de uma obra de arte.
A obra de arte, como criação humana, toca os sentidos pelo mistério e pela simbologia, não apenas pelo belo. A natureza é bela, despertando emoções e sentimentos, mas não é uma obra de arte por ser o resultado de um processo natural e não uma criação humana. Por outro lado, as emoções estéticas da arte podem ser também de susto, surpresa, angústia e tristeza, diversas formas de sentimento humano. Um poema de Augusto dos Anjos, um filme Ingmar Bergmann, ou uma tela Edvard Munch provocam sensações tão fortes quanto a singela beleza de um quadro de Monet, emoções diferentes com impacto diverso sobre as pessoas. Neste sentido, a arte, nas suas diversas manifestações, também não desperta emoções estéticas em todas as pessoas e, da mesma forma que uma equação matemática, são sentidas e vividas diferentemente de acordo com a sensibilidade e a vivência humanas. Um soneto de Beethoven não desperta prazer em parte da população com ouvido acostumado a músicas mais simples e pouco refinadas, da mesma forma que um erudito pode considerar um ruído incômodo um rock pesado da banda Metálica.
Ciência e arte são criações humanas diferentes e concorrentes diante dos mistérios mas se entrelaçam no jogo estético que desperta emoção, prazer, alegria, medo ou angústia. A sensibilidade e a intuição ajudando o cientista na sua investigação, e o conhecimento científico e as tecnologias abrindo um amplo leque de possibilidades para a criação artística.
Sérgio,
Seu texto, como sempre, é instigante e bem articulado. Mas, no meu entender, há nele o erro de contrapor arte e ciência, de pesar e comparar seus méritos, de tentar descobrir, entre elas, interações.
Para mim, trata-se aí de dois exercícios e dois produtos da mente humana absolutamente independentes e distintos: em critérios, em processos, em valores inspiradores (num caso, a utilidade, no outro, a beleza). Cabem bem na definição de Stephen Jay Gould. o cientista amigo do Richard Dawkins, que v. cita, e que também reverencio: São dois “non overlapping ministeria”.
A ciência procura explicações para os fenômenos, regularidades, relações de causa e efeito, no mais puro exercício da razão. A arte procura “sentir” as coisas do mundo, extrair-lhes alguma “beleza oculta”, no mais puro exercício da emoção. Foi o poeta inglês Wordsworth que definiu a poesia – uma forma de arte de que entendo um pouco – como “emotion recollected in tranquility”. E acrescento: pode-se extrair poesia de qualquer coisa. Até do esterco, como o grande poeta Jorge de Lima no seu famoso soneto:
“Éguas vieram à tarde, perseguidas
Depositaram bostas sob as vides…”
Ou como o meu amigo, o poeta Jomar Morais Souto, integrante do Grupo “Geração 59”, da Paraíba, que compôs a sua comovedora “Elegia para os Sapatos ao Sol”, à vista de dois sapatos velhos.
Compreendo que cientistas como Dawkins ou Gould, diferenciados no seu universo profissional por suas biografias (um nasceu no Quênia, outro era filho de um Secretário Geral do PC americano) sintam profundas emoções com as suas descobertas, mas não estão fazendo arte com elas. Estão fazendo boa ciencia. Como fazem também, por sua formação humanística, ao relatar suas experiências, boa literatura. E até um pouco de filosofia.
Caro Clemente,
Eu nao disse que a ciencia e arte eram a mesma coisa e que, portanto, Dawkins e Gould estariam “fazendo arte”. O que eu disse é que a ciencia, a descoberta do misterio do arco-iris pode provocar tanta emoção quando o poema de Keats sobre o misterio do fenomeno que a ciencia desvanda. Voce nunca se emocionou com a beleza de uma construção logica de uma análise científica? A beleza de um raciocinio que interpreta fenômenos, filosofia, economia, ou mesmo biologi. Me lembro de ter tido uma exaltação quando li a frase de James Lovelock, biologo da teoria Gaia: “A vida tornou a terra habitável”. Mas eu sempre repito o conceito de Manoel de Barros sobre o trabalho técnico (ja citei algum outro artigo): “poeta não pensa, o poeta sente”.
Caros Sérgio e Clemente: Já que as relações entre a ciência e a arte estão ainda rendendo discussão – aliás, da melhor qualidade, o que não me surpreende quando se trata de argumentadores como vocês – vou afinal me intrometer na conversa. Além de muito complexa, a relação em apreço depende do ângulo considerado. No que se refere aos procedimentos e fins essenciais, elas sem dúvida diferem. A ciência vale-se de meios racionais e técnicos orientados para a descoberta da verdade. Já na arte prevalece a atividade sensível e seu fim último é comover através da expressão da beleza. Mas nem aí as diferenças são absolutas. Bertrand Russell, filósofo que revolucionou a filosofia do início do séc. xx através da matemática, confessa haver vivido iluminações de harmonia e beleza de transcendência metafísica. Tanto que ambicionou encontrar nas verdades da matemática o tipo de ideal que buscamos na religião e na arte. Sua frustração foi imensa ao verificar mais tarde que a matemática nunca poderia satisfazer a esse ideal. Em tempo: além de incursionar pela literatura, lembre-se de que ganhou o Nobel de Literatura.
Quanto à arte, embora visando fins antes de tudo estéticos, seus procedimentos e meios de criação não são absolutos. Há uma distinção histórica reconhecida entre os artistas clássicos e os românticos. Mesmo no que se refere à substância de algumas artes e ciências, o nó é mais frouxo. Leonard Bernstein, por exemplo, começou uma série célebre de palestras sobre a música assinalando a relação entre a música, a física e a lingüística. Por isso o verso de Manoel de Barros, citado por Sérgio já pela segunda vez em contexto semelhante, contém apenas meia verdade. Vale para poetas como ele, os românticos em geral, mas não vale para poetas “frios” como Eliot, João Cabral e Wallace Stevens. Vamos continuar discutindo, pois a cada argumento cabe sempre indagar: será?
Fernando
Gente, obrigado pelos esclarecimentos!
Mas insisto no meu ponto: a emoção que nos provoca uma descoberta científica, ou a enunciação feliz de uma verdade como a de James Lovelock, não entra no campo da arte poética. Poesia é mais que emoção. E, por outro lado, a afirmação de Manoel de Barros não é desmentida pela poesia de João Cabral, por “fria”, enxuta, “medida e calculada” que seja ela. João Cabral, antes de tudo, SENTE os seus objetos poéticos, e apenas usa sua técnica tão pessoal e sóbria para tematizá-los.