Sérgio C. Buarque

The Vitruvian men - 1490 Leonardo da Vinci

The Vitruvian men – 1490 Leonardo da Vinci

Arte e ciência são ambas formas de criação humana. Mas são resultado de processos completamente diferentes e quase opostos: a sensibilidade e emoção dominando a primeira e a reflexão lógica orientando a atividade científica. Enquanto a arte procura despertar os sentidos humanos, a ciência busca a razão para explorar e interpretar o mundo e os humanos. A arte é dionisíaca e se cobre do mistério e dos segredos, de caminhos tortuosos. A ciência é apolínea e busca desvendar e jogar luz sobre o que a arte tenta esconder. A ciência analisa e explora os fenômenos procurando demonstrar e comprovar seus mecanismos para além dos mistérios. A arte, ao contrário, não tem compromisso com fatos e verdades, a arte se mede pela sua capacidade de tocar a alma e os sentimentos humanos. O mistério e os segredos da vida são o alimento da arte que a ciência insiste em quebrar e explicar, num permanente conflito.

 

Enquanto a arte se alimenta do mistério e da inquietação e surpresa diante do mundo, o esforço do cientista consiste, ao contrário, em desvendar o desconhecido e misterioso na natureza e na condição humana. É conhecido o lamento do poeta inglês John Keats às descobertas da ciência que, escancarando a lógica da natureza “no frio catálogo das coisas triviais”, desmontam os segredos, destroem a fantasia e a poesia. Ao explicar o fenômeno do arco-íris como resultado do prisma que separa as cores da luz branca do sol, Isaac Newton teria destruído todo seu encantamento.

 

“Todos os encantos não se dissipam

Ao mero toque da triste filosofia? Existia um maravilhoso arco-íris no céu:

Conhecemos agora sua trama, sua textura

No frio catálogo das coisas triviais.

A filosofia decepará as asas de um Anjo,

Decifrará os mistérios item por item,

Eliminará o encanto do ar e o tesouro escondido –

Desvendará o arco-íris” (Lamia – John Keats)

 

Mas, e a beleza e exaltação da descoberta científica, a emoção diante de uma elegante e lógica formulação teórica? De forma diferente da poesia, é precisamente desvendando os mistérios que a ciência emociona. Em oposição a Keats, o cientista Richard Dawkins afirma que “o conhecimento e o desvendamento dos mistérios e segredos da natureza são a mais bela e instigante obra de arte, a mais valiosa criação humana e, portanto, superior à poesia” (Desvendando o arco-íris), a ciência descobrindo poesia nos padrões e leis da natureza.

 

Na verdade, os poetas vão continuar sentindo e despertando emoções estéticas com o arco-íris enquanto os cientistas se emocionam com a elegância e beleza da explicação científica do fenômeno. Que força estética tem a síntese de uma teoria como a formulação de James Lovelock sobre o processo biológico de Gaia: “A vida tornou a terra habitável”. E que emoção pode despertar uma construção filosófica instigante? Mas o observador ou leitor destas formulações tem que ser iniciados na biologia e na filosofia para ser tocado pelo seu impacto estético.

 

Entretanto, a fronteira entre ciência e arte não é tão rígida e clara, elas se misturam e completam na mesma intensidade em que se opõem. A emoção estética também está presente no ato e na investigação científica por mais racional e lógica que seja esta atividade. A propósito desta relação estética, Carl Sagan conta o curioso processo de descoberta do físico James Clerk Maxwell na formulação da sua famosa teoria do eletromagnetismo. Por mais que refletisse e elaborasse, a combinação das variáveis e dos parâmetros que utilizava na teoria não formava uma equação matemática que tocasse sua intuição e seus sentimentos. A partir deste incômodo e alimentado pela sensibilidade científico-estética, Maxwell compôs uma coleção consistente e, ao mesmo tempo, elegante de equações. Misturando lógica e emoção, razão e arte, o físico formulou as quatro equações que constituem a moderna teoria do eletromagnetismo. Entendendo que as equações devem ser belas como o fenômeno que tenta explicar, ele desenvolveu sua teoria, com uma boa dose de intuição e sentimento estético.

 

Obviamente, a beleza de uma equação pode ser percebida apenas por um cientista, e um cientista da área de conhecimento, sentindo a emoção estética da representação do objeto de análise que descobre e desnuda os mistérios. Nesse sentido, a arte levaria uma grande vantagem sobre a ciência porque desperta emoção nos sentidos humanos independente do nível de conhecimento e formação das pessoas diante de uma obra de arte.

 

A obra de arte, como criação humana, toca os sentidos pelo mistério e pela simbologia, não apenas pelo belo. A natureza é bela, despertando emoções e sentimentos, mas não é uma obra de arte por ser o resultado de um processo natural e não uma criação humana. Por outro lado, as emoções estéticas da arte podem ser também de susto, surpresa, angústia e tristeza, diversas formas de sentimento humano. Um poema de Augusto dos Anjos, um filme Ingmar Bergmann, ou uma tela Edvard Munch provocam sensações tão fortes quanto a singela beleza de um quadro de Monet, emoções diferentes com impacto diverso sobre as pessoas. Neste sentido, a arte, nas suas diversas manifestações, também não desperta emoções estéticas em todas as pessoas e, da mesma forma que uma equação matemática, são sentidas e vividas diferentemente de acordo com a sensibilidade e a vivência humanas. Um soneto de Beethoven não desperta prazer em parte da população com ouvido acostumado a músicas mais simples e pouco refinadas, da mesma forma que um erudito pode considerar um ruído incômodo um rock pesado da banda Metálica.

 

Ciência e arte são criações humanas diferentes e concorrentes diante dos mistérios mas se entrelaçam no jogo estético que desperta emoção, prazer, alegria, medo ou angústia. A sensibilidade e a intuição ajudando o cientista na sua investigação, e o conhecimento científico e as tecnologias abrindo um amplo leque de possibilidades para a criação artística.