Clemente Rosas

As cenas da emoção do presidente da Beijaflor, ao saber da vitória da sua escola no Carnaval do Rio, associadas à crítica da imprensa sobre a “ilegitimidade” da patrocinadora (e, indiretamente, homenageada) – a ditadura de um obscuro país africano – trouxeram-me à memória o curta-metragem de Cacá Diegues, um dos cinco integrantes do filme “Cinco Vezes Favela”, produzido pela UNE do meu tempo, anos 1961-62.  O filme de Cacá – que, aliás, não mereceu muita atenção, ao lado de pequenas obras-primas como “Couro de Gato”, de Joaquim Pedro, e “Pedreira de São Diogo”, de Leon Hirzmann – procurava demonstrar, através do conflito de um casal de namorados, ela sindicalista, ele carnavalesco, a alienação (palavra da moda) provocada no povo pelas escolas de samba.

Não duvido da autenticidade das lágrimas do dirigente, pelo sucesso de sua agremiação.  O que me espanta é a sua total abstração do fato de ter sido o deslumbrante desfile financiado por um ditador brutal, que sangra o seu país há mais de 35 anos, acumulando milhões em bancos suíços, enquanto seus governados, irmãos de cor do presidente da escola, definham na miséria.

Vocês, que me leem agora, já viram, no mapa, a Guiné Equatorial?  Se ainda não, previno: só um mapa em grande escala permitirá isso.  Não se trata da Guiné “francesa” (cap. Conacri), nem da Guiné “portuguesa” (cap. Bissau).  Esta de que falamos é de colonização espanhola, um insignificante quadradinho mais abaixo, na costa ocidental africana.  Mas tem petróleo.  E em países como esse, o patrimônio nacional parece confundir-se com o patrimônio privado dos governantes, sejam eles emires, sultões ou “presidentes perpétuos”.

Tive notícia da Guiné Equatorial décadas atrás, quando, mal saída da condição de colônia, já era comandada por um outro ditador: Francisco Macías Nguema.  Pelo sobrenome, pode até ser parente do atual: Teodoro Obiang Nguema Mbasogo.  O primeiro acabou deposto e preso.  Este, por enquanto, financia escolas de samba e o deleite do filho “playboy”, com sua numerosa comitiva, no Copacabana Palace ou nos camarotes da Sapucaí.  E tudo isso sequer toca a consciência do presidente da Escola, em suas lágrimas de felicidade.

O filme de Cacá não foi apenas correto, naquele tempo.  Foi premonitório.

A outra lição vem daqueles que procuram fugir da agitação do Carnaval, para o descanso em uma praia mais distante.  Doce ilusão!  Cidadãos brasileiros, sobretudo de nossa classe emergente, estacionam seus carros na orla marítima, abrem os capuzes, e liberam seus potentes equipamentos de som para a emissão das músicas mais chulas, mais grotescas, de verdadeira indigência melódica, sem nada a ver com ritmos ou canções carnavalescas.  Como se acomodam do lado do mar, a barlavento dos seus veículos, o volume do som, para chegar até eles, é violentamente elevado, a ponto de fazer disparar o alarme de alguns carros dos infelizes “veranistas”, estacionados na frente de suas casas, a sotavento.  Às vezes, têm a companhia de filhos pequenos, que se vão familiarizando com a grossa pornografia dos textos das “canções”.  Às vezes, não têm nem a doçura de uma companhia feminina.  São “machos da espécie”, em pequenos grupos, saracoteando.

Os fugitivos do Carnaval,  submetidos a tamanho suplício, além do desconforto, talvez sejam também assaltados por alguma depressão.  Com efeito, o que podemos esperar, em termos de trabalho criativo, de consciência cívica, de responsabilidade social, de indivíduos com tal mentalidade?  Otimista por princípio filosófico, confesso meu esforço em manter a crença no futuro do nosso país, diante desse quadro.

Como concluir?  O que sugerir?  Admito a perplexidade.  E termino apenas evocando a cantiga, cuja indagação cruel é suavizada pela bela voz de Simone:  Como será o amanhã?  O que irá nos acontecer?  Responda quem souber.

 

Clemente Rosas é consultor de empresas.