Foi uma catarse coletiva espetacular! Lula subiu a rampa acompanhado por representantes da nossa diversidade popular. Assistido diretamente por centenas de milhares de brasileiros e brasileiras (e, via TVs, por dezenas de milhões) extáticos com a volta do nosso maior líder popular e a partida, inglória e patética, do inominável presidente que foi para Miami abraçar o outro Pateta, aquele que, pelo menos, é divertido. Na agradável, embora antidemocrática, ausência do energúmeno, Lula fez um emocionado e brilhante discurso de posse. Um discurso de estadista de primeira grandeza. Entre muitas coisas importantes, Lula enfatizou a necessidade de reconstruir a unidade do povo brasileiro, abalada pelo avassalador e penetrante discurso de ódio da extrema direita. E insistiu na definição do objetivo do seu governo: enfrentar a brutal desigualdade econômica, social, racial e de gênero que é a marca da nossa história desde a colonização. Marcou a necessidade de se buscar a garantia do direito humano à alimentação, superando a fome que assola a vida quotidiana de dezenas de milhões de compatriotas. E defendeu a ambiciosa e ultra necessária política de desmatamento zero e recuperação das áreas degradadas pelo agronegócio. Entre outras posições importantes destacadas por muitos comentaristas, e que não vou repetir. Foi a lavagem da nossa alma, tanto no conteúdo como na forma, nos simbolismos contidos na cerimônia. Só não foi perfeito porque teria sido ainda mais espetacular se tivesse havido uma mobilização para o povo assistir a posse em telões em todas as praças das cidades e aldeias do Brasil.

Ainda na véspera da posse, um brigadeiro da aeronáutica (da ativa) afirmava que isto não aconteceria. Os abduzidos pela ideologia do ódio celebraram a bandeira a meio mastro nos quartéis, homenagem fúnebre ao eterno rei Pelé, como um sinal de que as FFAA iam “fazer alguma coisa”. Choros de alegria, aleluias, orações, abraços aliviados. A celebração de um golpe que não aconteceu. O general-senador Mourão foi xingado como traidor por não ter feito um chamado às armas. Ridículo e patético sem dúvida, mas representativo de uma ampla camada da população. Pesquisa da Quaest, dias antes, indica que a divisão do país segue quase igual ao resultado das eleições, sem aquele habitual movimento de simpatia inicial que beneficia todo novo dirigente eleito.

O momento é de alegria e celebração da apertada vitória, e o afastamento, no imediato, da ameaça golpista que muitos de nós teimaram não existir. A eleição foi ganha por estreita margem e o golpismo contido, apesar do evidente apoio de coronéis, generais, almirantes e brigadeiros. Faltou aos golpistas liderança e ousadia para atropelar os tênues limites impostos pela hierarquia militar, sacudida pela politização de extrema direita. A parcela do Alto Comando do Exército que barrou o golpe, o fez por motivos ainda não sabidos, talvez a forte rejeição internacional e a divisão entre as elites endinheiradas. O comportamento do energúmeno deve ter pesado na balança. Acovardado, o presidente deixou seus liderados no sol e na chuva enquanto chorava no banheiro.

Enquanto celebramos, não podemos nos deixar levar pela euforia. A vitória eleitoral e o esvaziamento do golpismo foram fundamentais para termos espaço para lutar pelas mudanças gigantescas que se impõem para tomarmos outro rumo enquanto país e povo. Mas não estamos em um processo revolucionário, em que os obstáculos políticos são varridos pela força do povo. O novo governo vai ter que lidar com um quadro político, econômico e social complexo e fortemente negativo. As esperanças que todos alimentamos não podem nos levar a buscar mudanças radicais na nossa realidade, enquanto não for possível mudar a correlação de forças. E não creio que possamos mudá-la radicalmente nestes próximos quatro anos.

É aqui que se impõe a necessidade de fazermos o que os marxistas-leninistas sempre disseram fazer: a análise concreta da situação concreta. É fácil de  dizer e difícil de fazer. A objetividade desta análise é sempre matizada pelos vieses de cada um, suas ideologias, suas expectativas, suas esperanças, sua formação e informação. E, por isso mesmo, estas análises frequentemente divergem e, mais ainda, são negadas pela realidade. 

Percebi a dificuldade de se manter a análise objetiva da situação concreta quando comecei a militar nos anos 60. Sendo eu um militante independente até o começo de 1968, eu não tinha (ainda) a formação no marxismo-leninismo nem no maoísmo. Participava das discussões com os militantes do movimento estudantil, pertencentes a vários partidos políticos, tentando entender a tal da “análise concreta da situação concreta”. A tese de todo mundo, menos o Partidão, é de que havia as condições objetivas para uma revolução, e que cabia à vanguarda revolucionária criar as condições subjetivas. Considerava-se que havia uma crise de fundo do capitalismo brasileiro, com a economia estancada e uma regressão no investimento industrial. Era muito citado um pequeno texto de Celso Furtado, apontando para um processo de reagrarização do Brasil (a palavra não é do meu querido mestre, tentei sintetizar um conceito). A esquerda lia o que dava apoio às suas teses e descartava o que as desmentia. Eu, que era de esquerda, mas não da esquerda, tinha outras fontes de informação e influência. E estas diziam que, em 1967, a economia já estava em franca recuperação em todos os ramos, inclusive o industrial. Quando eu apresentava estas informações e argumentos que desmentiam a tese da existência das “condições objetivas” para a revolução, escutava uma infinidade de argumentos que esmigalhavam os meus, em um linguajar que eu, neófito, não dominava. Mas não me convenciam.

Avaliando muito mais tarde este período, descobri um pecado comum às diferentes correntes que disputavam a liderança do processo: éramos todos vanguardistas, uns propondo a luta armada e outros (nós, da AP, partido onde eu vim a militar) a mobilização de massas até a queda do regime, uma espécie de “insurreicionalismo” permanente. Todos nós apoiávamos a tese da crise do capitalismo brasileiro e da existência das condições objetivas. Submetemos a análise concreta da situação concreta aos nossos desejos ardentes de promover rapidamente a revolução. O massacre da esquerda nos anos 69/76 foi o preço pago pelo erro, um típico caso de subjetivismo voluntarista.

No momento presente, a análise da realidade concreta aponta para uma correlação de forças bastante negativa para as expectativas que a esquerda criou com a derrota do inominável. Do ponto de vista institucional, temos um congresso dos mais reacionários da nossa história. O voto progressista e democrático que venceu por tão pouco na eleição de Lula, não se repetiu nas eleições de senadores e deputados. Pior ainda, este congresso herda um empoderamento que surgiu da capitulação do energúmeno frente ao Centrão (expressão incorreta que designa a extrema direita e o fisiologismo). Com o freio nos dentes, Senado e Câmara se preparam para chantagear o novo governo e garantir seus interesses paroquiais (fisiologismo), o dos lobbys empresariais (em particular os do agronegócio) e os ideológicos (bancadas religiosas). Mais do que nunca, os chamados BBB (bala, bíblia e boi) estão no comando das Casas. Lula vai ter que aprovar leis fundamentais para turbinar as mudanças de que necessitamos (a começar pela Reforma Tributária), negociando com um conjunto hostil. A negociação da PEC da transição de governo mostrou o quão difícil vai ser este jogo. Desde logo, personagens nefastos, como Artur Lira, mostraram sua força. Lula, o PT e os outros partidos da coligação de esquerda e cento esquerda que o apoiaram tiveram que se compor com as forças mais retrógradas e admitir a continuidade de Lira no comando da Câmara. Foi a primeira concessão, criticada pela esquerda, mas inevitável no quadro presente. Outras virão, se não houver uma enorme pressão da sociedade.

Por outro lado, não podemos nos deixar levar pelo papel positivo do STF no enfrentamento ao golpismo e esquecer o sem-número de medidas questionáveis tomadas por esta corte. E não se pode esquecer o peso da direita nos tribunais superiores, cheios de juízes nomeados pelo inominável. O novo governo não vai ter vida fácil também neste lado.

O que dizer da atitude das chamadas “classes produtivas”? Como vai ficar claro no próximo artigo, o poderosíssimo agronegócio é um inimigo declarado do governo do presidente Lula. Por mais que o presidente faça, o agro não o aceita nem que entregue tudo o que pedir, além de estar em rota de colisão com este setor pelas suas promessas na área da preservação ambiental e na da Reforma Agrária. Mesmo uma RA bem moderada, restrita às chamadas terras degradadas. Lula não tem como não acionar os poderes públicos para coibir o trabalho escravo, ou impedir o desmatamento e as queimadas. Ou a grilagem nas terras indígenas e da União. Mas isso é só o agronegócio da Amazônia, os outros são mais “modernos”, dizem os otimistas. Não é assim que a banda toca. Os produtores do agronegócio se solidarizam uns com os outros. Uns apoiam as pressões pela livre ocupação de terras e pelo desmatamento e os outros pela liberação acelerada dos agrotóxicos e transgênicos. Todos pressionam por isenções de impostos e renegociação de dívidas. Apenas os 50 maiores devedores do agronegócio estão pendurados em mais de 200 bilhões. Se Lula resolver cobrar as dívidas a gritaria vai ser ensurdecedora e os tratores vão fechar as estradas e bloquear a Esplanada.

E não é só o agronegócio. A pressão pelo equilíbrio das contas públicas e pelo teto de gastos é o xodó do setor financeiro, contando com a colaboração da grande imprensa. O mercado financeiro se agita a cada declaração de Lula, Haddad ou até do ministro da Previdência, que sugeriu apenas rever a lei de Bolsonaro para fazer ajustes. Não podemos esquecer que Dilma fez um acordo com o setor industrial para favorecer a retomada da produção e foi traída pela classe empresarial que seria a beneficiária das medidas que propôs. Eles preferiram aderir à derrubada da presidente e apostar em Temer, que oferecia a reforma trabalhista como isca. Lula não é Dilma, dirão os otimistas. É verdade, mas a mesquinhez dos nossos empresários é a mesma.

Lula vai ter muitos limites para impulsar a economia apenas com os investimentos estatais. A distribuição de recursos para os mais pobres pode dar alento à economia, mas só até certo ponto. Se não houver investimento privado, a economia vai rodar pianinho e o efeito do aumento de demanda sem aumento de oferta vai gerar inflação. O aumento da dívida também pode ter este efeito, por diminuir os recursos do Estado para os gastos sociais e para dar força aos produtores.

Desde o primeiro minuto do governo, a pressão sobre os preços dos alimentos continuou a se fazer sentir, seguindo o ritmo dos últimos anos e corroendo o poder de compra do auxílio governamental. Lula vai ter que se preocupar com a importação de alimentos para equilibrar a demanda aquecida pelo Bolsa Família, ou os 600 reais vão virar 600réis.

A solução talvez esteja em apostar muito nas pequenas e médias empresas, setor arquibolsonarista, mas que não tem capital para segurar a oferta e provocar crises. É o oposto da política do passado, de apostar nas empresas campeãs, mas me parece mais capaz de gerar produção e tocar a economia, até um certo ponto. Entendi dos discursos do Mercadante que esta vai ser uma das opções a ser adotada.

Para completar este feio panorama do nosso futuro próximo, não podemos esquecer da ofensiva ideológica da extrema direita e de seu braço religioso, o neopentecostalismo. Podemos esperar uma agenda parlamentar recheada de propostas regressivas sobre aborto, educação, cultura. 

Ao contrário de todas as análises anteriores às últimas eleições, não tivemos um processo ditado pela consigna tornada histórica nos Estados Unidos, na campanha de Bill Clinton. No nosso caso não tivemos uma chave como “é a economia, estúpido”. Fizemos campanha acreditando nisso, enquanto Bolsonaro fez campanha com a consigna “é a ideologia, estúpido”. Nos espantamos como Bolsonaro quase ganha com este discurso, embora ele tenha usado todos os poderes de controle da economia que pôde, da distribuição de verba para os pobres ao controle dos preços dos combustíveis e da energia. Mas o que colou mesmo, até entre os mais pobres, foi o discurso do bem contra o mal, da família cristã contra o comunismo, do diabo Lula contra o autonomeado representante de Deus na terra, Bolsonaro. Foi o discurso dos púlpitos nas igrejas e nos templos que levaram quase 40% dos mais pobres a votar no energúmeno. E este discurso vai continuar presente na política.

Para ajudar o Lula deveríamos, na esquerda, parar de querer impulsar um programa máximo, definir pontos estratégicos de um programa mínimo, e pressionar, não o Lula, mas o Congresso direitoso que Bolsonaro deixou de herança. E partir para o trabalho de base, em particular sobre os temas mais sensíveis da população mais pobre: alimentação, carestia e emprego. E desmistificar, se possível, o discurso ideológico da extrema direita.

Para quem acha que estas preocupações são um exemplo de catastrofismo e que não existe ameaça de um golpe contra Lula, esta análise da “realidade concreta” vai ser irritante. Espero que tenham razão, mas como já disse ao longo do ano, não há nada errado em estudar cenários e se preparar para eles. Não fizemos isso nestas eleições e ficamos sujeitos aos movimentos das outras forças. Escapamos por pouco, e não pela nossa ação ou falta dela. Devíamos nos preparar para esta eventualidade, começando por aceitar os limites deste governo, e por retomar ou dar continuidade ao trabalho de base.