Uma história é sempre uma história, pode ser contada muitas vezes. Principalmente quando ela tem relações com o momento atual. Em 1983, quando saíamos mais ou menos derrotados das eleições, cabisbaixos, ainda respirando os ares da ditadura, construímos uma trincheira na Causa Comum, uma entidade inicialmente concebida para discussões sobre a sociedade brasileira em geral. Na época, pareceu-nos propício discutir sobre tudo, porque éramos advogados, engenheiros, médicos, contadores, dentistas, arquitetos, professores, funcionários públicos concursados (e, portanto, com estabilidade, porque ninguém se arriscava a jubilar um cargo em comissão daqueles governos autoritários), razão pela qual os temas variavam do ponto G à casa própria; invariavelmente, conforme já anotei aqui também, seguindo-se à discussão uma gostosa cervejinha no bar ao lado da sede da entidade. Embora as reuniões se ampliassem, o fato, porém, é que, depois de quase seis meses discutindo sobre tudo, começamos a ficar angustiados, porque só nos restava a discussão, claro, em si, uma coisa inédita e boa, mas queríamos ação, queríamos multiplicar a célula, a insatisfação, as críticas, não sabíamos ainda, posso dizer agora, no exato momento em que faço esta crônica, a verdade é que, a nós, faltava foco enquanto entidade organizada, até então, não passávamos de pessoas insatisfeitas com o status reunindo-se para falar da insatisfação e, ao fim, tomar uma cerveja. Eis que, contudo, qual uma flecha lançada em chamas sobre a barreira de nossa estupidez, o Governo Federal aumenta a prestação da casa própria acima da variação média dos salários e os insatisfeitos em geral passaram automaticamente à insatisfação com o específico, uma causa realmente comum, e a velocidade e as presenças nas reuniões aumentaram astronomicamente, já não cabíamos na pequena casinha da sede, passamos a realizar eventos enormes para discutir o aumento da prestação da casa própria, até que, depois de virar uma noite redigindo um mandado de segurança, conseguimos a primeira liminar. Daí em diante, não parou mais, a classe média se organizou em torno do movimento de mutuários no Brasil inteiro e, em Pernambuco, a Causa Comum foi referência. O mesmo ocorre hoje com a classe média brasileira: ainda estamos na fase de discussões, o que significa passeatas e fogos de artifício, mas logo, logo teremos uma casinha qualquer perto de um bar, certamente longe de interferências políticas partidárias, quando passaremos a discutir de forma ordenada tudo o que nos aflige, a corrupção, a incompetência, o descaso com a saúde, a educação e a segurança, a injustiça final dos dias. Em pouco tempo, uma faísca deflagrará nossa primeira ação, quem sabe uma ação popular, e o povo organizado terá um foco em torno do qual passarão a viver os dias da pátria. Serão muitas as liminares. Quem viver…
Sobre o autor
João Humberto de Farias Martorelli
Nascido em 26/09/55. Formado pela Faculdade de Direito do Recife. Colou grau em 18/08/77 (Turma Torquato Castro – foi laureado e orador da turma). Foi membro efetivo do Conselho de Recursos Fiscais do Município do Recife (1981) e Procurador Judicial da Prefeitura do Recife (1981/2001) com atuação na Procuradoria Fiscal (ambos os cargos, ingressando por concurso público). Foi também Secretário de Assuntos Jurídicos da Prefeitura do Recife, no período 01/01/86 a 02/05/88 e Conselheiro Federal da OAB, Seccional Pernambuco, no triênio 98/2000. Ex-Conselheiro e Ex-Presidente da Causa Comum. Membro da Associação Internacional de Juristas Democratas. Membro do Conselho Diretor do CESA – Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (até 2005), sediado em São Paulo, Vice-Presidente da Regional do CESA/PE. Chairperson do Comitê de Legislação da AMCHAM (2003). Fundador de MARTORELLI ADVOGADOS, Escritório de Advocacia Empresarial com atuação em todo o Nordeste, com 30 Anos de atuação. Vários artigos publicados em coluna quinzenal no Jornal do Commercio e um livro em edição privada, “O Cofre é o Coração”, reunindo alguns dos artigos. Presidente do SPORT CLUB DO RECIFE (2014).
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