É tamanha a celeuma provocada pela Medida Provisória no. 664 de 20 de dezembro de 2014, que alterou regras na pensão por morte, que se imagina que as modificações são grandes. Ainda que algum deputado tenha bradado que o governo quer matar de fome as viúvas, o pequeno ajuste proposto sequer merece a classificação de “reforma”.
Antes de mais nada, não foi tocado o “direito adquirido”, esse direito que na legislação brasileira garante que permaneçam tantas injustiças, em particular na previdência social.[1] E ninguém lembrou nesse momento, mesmo aqueles que sabem que o Brasil continua sendo um dos países mais injustos e desiguais do mundo, que a desigualdade na distribuição das aposentadorias oficiais (somadas as do INSS e dos funcionários públicos) é ao menos tão grande quanto a desigualdade na distribuição da renda total, de todas as fontes.[2]
A MP 664 (em vigor desde janeiro e a ser discutida no Congresso para sua transformação em lei) não modifica qualquer pensão já concedida. As novas regras são para o futuro, aplicam-se apenas às pensões de servidores civis da União e aos segurados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a serem concedidas. Em seu conjunto são corretas, porque reduzirão abusos, aproximam o Brasil das práticas internacionais, e lidam com a questão da sustentabilidade de longo prazo dos gastos previdenciários. Ainda assim, nosso regime de pensões, para os incluídos, continua entre os mais generosos do mundo.
Até agora não havia qualquer carência de tempo de contribuição para a concessão da pensão por morte, tanto no Regime Geral de Previdência Social (dos segurados do INSS) quanto no Regime Próprio de Previdência Social dos funcionários civis. A MP 664 passou a exigir 24 contribuições mensais do segurado para que se possa obter a pensão, exceto nos casos de morte por acidente de trabalho e doença profissional, ou morte do segurado em gozo de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez. Entende-se que esse período de carência deve inibir os casos (e todo mundo conhece algum caso desses) em que se inscrevem dependentes do segurado em momento próximo ao seu falecimento, os quais terão para sempre uma pensão governamental.
Na mesma linha, a MP passou a exigir tempo mínimo de 2 anos de casamento ou união estável para concessão da pensão (exceto nos casos de morte por acidente e caso o cônjuge seja considerado, por junta médica, incapaz de exercer atividade remunerada). Antes não havia qualquer carência relativa ao prazo de casamento.
Até agora pensões para os cônjuges eram vitalícias e independentes da sua idade. Com a MP, apenas viúvos com idade de 45 anos ou mais terão pensão vitalícia. A pensão passa a ser temporária para jovens, sendo a duração definida de acordo com a idade do cônjuge e sua expectativa de vida de acordo com a tábua de mortalidade do IBGE no momento do óbito do segurado. Segundo a tábua atual, a duração da pensão seria 3 anos para viúvo ou viúva de 22 anos de idade ou menos. As idades de corte hoje seriam 28 anos de idade, pensão por 6 anos; 33 anos, pensão por 9 anos; 39 anos, pensão por 12 anos; e 44 anos, pensão por 15 anos. Entende-se que as regras de duração do benefício, além de desestimular casamentos oportunistas, levam em conta o envelhecimento gradual da população e o fato de que os mais jovens ainda podem se inserir no mercado de trabalho, e, portanto, não devem ser sustentados por toda a vida por uma pensão governamental.
Foi acrescentada uma regra que diz que não terá direito à pensão o condenado por crime doloso que resulte na morte do segurado. Essa nova regra não tem sido mencionada, pois é simplesmente espantoso que ela não existisse antes.
Até antes da MP o valor da pensão era igual à aposentadoria integral do aposentado falecido. Agora há uma nova fórmula para o cálculo. A pensão será de 50% acrescida de 10% por dependente. Ou seja, em alguns casos cairá para 60%. Uma viúva com dois filhos não inválidos e menores de 21 anos de idade receberá o equivalente a 80% da aposentadoria: 50% mais 10% para cada um dos 3 dependentes. Só no caso de viúva ou viúvo e mais 4 dependentes chega-se a 100%. Mas o piso para as pensões continua sendo o mesmo piso previdenciário, o salário mínimo (mesmo que essa pensão vá se acumular com alguma aposentadoria).
Militares e funcionários públicos estaduais e municipais não foram incluídos em nenhuma regra da MP 664, talvez para evitar difíceis negociações com governos estaduais.
O maior desequilíbrio, e que leva a que o impacto fiscal seja menor, é, sem dúvida, que a nova fórmula para o cálculo das pensões se aplique apenas ao INSS, deixando intacto o valor de 100% da aposentadoria no caso dos funcionários públicos. No presente nível de acirramento da discussão sobre o tema, essa diferença de tratamento injusta sequer é percebida.
É difícil entender porque encontram toda essa resistência algumas alterações mínimas, que atenuam abusos e contribuirão para a sustentabilidade da previdência. Em parte, falta informação. Não é fácil saber o que são as novas regras, dado o emaranhado da legislação previdenciária no Brasil. A leitura da MP 664 nos deixa no escuro, por que nos remete continuamente a artigos de três leis anteriores, que passariam a vigorar com ditas alterações. E os que estão contra a MP tampouco explicam porque a rotulam de “retrocesso”. O IPEA preparou notas explicativas e tentou medir o impacto fiscal das MPs 664 e 665, com a ideia de ajudar o debate parlamentar, mas, a julgar pelo tumulto na discussão da MP 665 (sobre seguro-desemprego, abono salarial e seguro-defeso), os deputados ignoraram as notas.[3]
A falta de credibilidade do governo no atual momento político deixa aberto o caminho para motivações e argumentos sem relação direta com o conteúdo do que se propõe. Políticos oposicionistas querem mostrar o estelionato eleitoral, dado o que a candidata reeleita afirmou durante a campanha, querem deixar o ônus político de medidas de ajuste fiscal àqueles que esconderam e negaram sua necessidade na campanha eleitoral que os reelegeu.
Sindicatos atacaram a reforma das pensões porque “ela cria o fator previdenciário para viúvas” (sic). Podiam ao menos ter notado que a MP deixou fora de parte das regras os funcionários públicos, sem explicação. Seria pedir demais que os sindicatos no Brasil, menos ainda funcionários públicos com boas aposentadorias, aceitem que sem o fator previdenciário ficará ainda maior o passivo do governo, e o futuro da previdência ainda mais incerto. Mais uma vez, o fator previdenciário é atacado por imediatistas de todos os matizes.
“Après moi le déluge”. “Depois de mim, o dilúvio.” É o que teria dito Luis XV, diante da perspectiva de morrer, ou talvez Madame de Pompadour, sua amante, tentando consolá-lo de alguma aflição: “après nous le déluge”. O mais provável é que a frase só tenha sido inventada e atribuída no fim do século, depois que seu sucessor, Luis XVI, morreu na guilhotina durante a Revolução Francesa. Em matéria de preocupação com o futuro das aposentadorias e pensões no Brasil, estamos como Luis XV no século XVIII. Pouco importa aos frenéticos opositores de qualquer mínima modificação no regime de previdência social que um dia o déficit chegue a ser tão grande que não haja mais dinheiro para pagar ninguém.
[1] Injustiças tais que em parte explicam a baixa receptividade do livro do jornalista inglês Brian Nicholson, “A previdência injusta” (Geração Editorial, São Paulo, 2007).
[2] Rodolfo Hoffmann, o mais persistente e rigoroso pesquisador da desigualdade de renda no Brasil, afirmou em entrevista a O Globo (27.12.2009) que uma reforma do sistema previdenciário tem maior potencial de reduzir a desigualdade do que a reforma agrária. http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2009/12/rodolfo-hoffmann-desafio-de-uma-geracao.html. Seu trabalho econométrico dedicado mais especificamente à contribuição das pensões e aposentadorias para a desigualdade de renda é “Desigualdade da distribuição de renda no Brasil: a contribuição de aposentadorias e pensões e outras parcelas do rendimento domiciliar per capita”, Economia e Sociedade, Campinas, v.18, n.1, abril 2009.
[3] Essas notas do IPEA estão reunidas em http://bit.ly/1ELWxsY.
Pior, Helga, é que esta pequena reforma que causa tanto tumulto, pela desinformção e manipulação de informações, nao vai salvar o sistema previdenciario do Brasil com uma população em rapido processo de envelhecimento. Principalmente se nao enfrentar as desigualdades que voce cita e promover drasticas mudanças no sistema dos funcionarios publicos. Em vinte e tres anos, a população de idosos no Brasil deve passar de 6,8% da população total (2012) para 15% (estimativa do IBGE para 2035). Se não houver uma ampla reforma, mesmo linera com aumento da idade mínima, e com alteração dos benefícios privilegiados dos funcionarios publicos, em 20 anos vai faltar dinheiro para pagar os benefícios. Para salvar os interesses no presente, estaremos sacrificando o futuro: a juventude paga a conta dos desvios, o Estado perde capacidade de investimentos nas áreas estratégicas e sociais, além de comprometer os próprios beneficios. Mas, como voce mostra no artigo, ninguem está interessado no futuro neste pais. Sergio
Concordo com v., Sergio, que essa pequena reforma não vai resolver. Mesmo assim considero irresponsáveis os parlamentares que votaram contra, só para não assumir um ônus político hoje. Muito especialmente o total dos deputados da bancada do PSDB, que defendeu austeridade e lei de responsabilidade fiscal durante a campanha de outubro de 2014.
PARA DAR O DEVIDO CRÉDITO A ALGUNS DOS OUTROS PESQUISADORES DA DISTRIBUIÇÃO DE RENDA NO BRASIL, DECIDI REPRODUZIR AQUI EMAIL QUE RECEBI DE RODOLFO HOFFMANN. ALGUMA INJUSTIÇA CONTINUAREI COMETENDO, PORQUE HÁ MAIS PESSOAS QUE TRABALHAM COM O TEMA.
Helga
Li. Boa contribuição para o debate!
Obrigado pelos elogios. Ser “ o mais persistente” eu posso aceitar. Mas não posso aceitar “o mais rigoroso”, pois implicaria considerar menos rigorosos todos os demais, e considero Ricardo Paes de Barros, Rosanne Mendonça, Marcelo Medeiros, Pedro Herculano e outros como pesquisadores sérios do tema.
Abração,
Rodolfo