Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque

Gradiva (detail), copy of neo-Attic Roman bas-relief, probably after a Greek original from the 4th century B.C., Vatican Museum Chiaramonti, Rome.

Gradiva (detail), copy of neo-Attic Roman bas-relief, probably after a Greek original from the 4th century B.C., Vatican Museum Chiaramonti, Rome.

A minha condição de romancista e psiquiatra em nada facilita tarefa que me proponho neste artigo.  A exaltada admiração juvenil que a leitura de Freud me despertou ajudou-me a galgar esta dupla posição.  A obra do velho mestre parece-me demasiadamente complexa para caber num artigo. Pequeno é o espaço que disponho para abordá-la. Menor ainda o meu poder de ordenação e síntese de uma miríade de palpitantes lembranças que este trabalho desperta em minha memória. Minha juventude foi definitivamente marcada por sua figura fascinante.

Cinquenta anos antes do nascimento de Freud, ao ouvir a Terceira Sinfonia de Beethoven, Haydn afirmou:

“Acabei de ouvir uma sinfonia cujo tema é o próprio compositor. Apenas não sabia que sua alma era tão ruidosa. A partir de hoje, em música, tudo vai estar mudado.”

O homem que mudou, para sempre, a psicologia humana também encontrou a matéria para a elaboração de sua doutrina dentro dos tumultos de sua própria alma.

Sigmund Freud nasceu em seis de maio de 1856 em Freiberg, na Morávia, hoje República Tcheca. Educou-se em Viena.

Cedo, entusiasmou-se pelas teorias evolucionistas de Darwin. Não foi, no entanto, o interesse pela biologia que o fez cursar Medicina. Chegou á escola médica animado pela leitura do belo ensaio de Goethe sobre o conhecimento da natureza: uma visão romântico-idealista do mundo, unindo ciência e poesia, razão e sensibilidade. Freud era um bom leitor. Deixava-se fecundar pelo que lia.

Na faculdade, realizou pesquisas sobre o sistema nervoso de peixes primitivos. Graduado, não demonstrou maior interesse pela prática clínica. Preferiu pesquisar a anatomia do sistema nervoso. Talvez aspirasse, em secretas fantasias, encontrar o lócus da mente. Trabalhou com Breuer em Viena e depois com Charcot em Paris, no La Salpêtrière. Tanto Breuer quanto Charcot eram neuropsiquiatras e usavam a hipnose no tratamento dos sintomas histéricos.

Especializou-se em neuropatologia por pressões financeiras. Mas seu interesse pela mente humana o transformava em pesquisador obstinado. Tentava realizar seu trabalho com rigor metodológico. Mesmo assim, seu talento literário e sua imaginação prodigiosa, comum aos romancistas, deixaram marcas indeléveis em sua obra.

A minha proposta nesse artigo é analisar a “literariedade” – o que confere qualidade literária a um texto –  em Sigmund Freud.  Uma apreciação ainda que tosca de seu processo de criação literária.

A concepção freudiana do escritor não é inteiramente uniforme. Mesmo ao lidar com obras prenhes de visão interior precursora de suas próprias teorias, Freud acreditava que o artista se distanciava “neuroticamente” da realidade. Fantasiava por não conseguir estabelecer um compromisso com a renúncia à satisfação dos seus sentidos. A qualidade artística de suas criações agradava ao público. Garantia-lhe aceitação social. Mas o afastava de uma cura real.

Mesmo cultivando conceitos tão estreitos, ao ler O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer, Freud afirmou:

“O que o filósofo de Dantzig ali diz sobre a resistência oposta à aceitação de uma realidade penosa coincide tão inteiramente com o conteúdo do meu conceito de repressão que, uma vez mais, devo apenas à minha falta de leitura o poder de atribuir-me um descobrimento. “

Na mesma página de sua História do Movimento Psicanalítico, ele confessa:

“Posteriormente, de propósito, me privei do alto prazer de ler Nietzsche para evitar toda ideia preconcebida na elaboração das impressões psicanalíticas. Isto me obriga a estar disposto – e com prazer estou – a desistir de toda prioridade nos casos em que a investigação psicanalítica não pode fazer mais que confirmar a visão intuitiva do filósofo.”

Desde 1895, com as primeiras observações das grandes expressões da histeria – marcas de uma época –, Freud alinhavava seus conceitos sobre repressão, inconsciente e sexualidade infantil. A vida erótica do menino foi um dos pilares de sua teoria. Parecia projetar nexos associativos encontrados em seus próprios abismos para resgatar a compreensão do psiquismo humano. Ao modo de qualquer romancista. Dentro dos cânones da urdidura da teia romanesca. Ele negava seu espírito criador torturando-se nos rigores do método científico. Tentava pôr rédeas em sua fantástica imaginação.

Por não vê-los certificados pela ciência vigente, não percebia que os conceitos de repressão, inconsciente e sexualidade infantil faziam parte do vasto acervo imemorial da humanidade. Registrados e divulgados pela arte desde todo sempre. Na tradição oral, nas lendas, nas histórias infantis, na grande tradição da literatura.

Em 1914, em sua História do movimento psicanalítico, fala em “descobrimento da sexualidade infantil”, para ele “trabalho psicanalítico legitimamente conquistado”. Surpreendia-se em ver que clínicos conheciam a repressão sexual como fonte de angústia. Registrou seu desagrado quando o doutor Chrobak sugeriu que se prescrevesse para uma paciente, esposa de um impotente:

Penis normalis! Repetatur!

Pensava que só a ele cabia o delicado trabalho de resgatar e sistematizar todo esse material subjetivo, complexo e pleomorfo.  Sendo dele parte profunda, primária e indissociável.

Sua missão foi um trabalho infinitamente mais sutil do que o que coube a Darwin. A obra monumental do biólogo limitou-se à sistematização no tempo das pistas, marcas e registros da evolução das espécies. Pegadas resguardadas pela sabedoria da natureza em forma de concretos ossos petrificados. O objeto da investigação de Darwin vinha à tona exato e contundente.

Já as “evidências científicas” a serem trabalhadas por Freud insinuavam-se na forma de fluidas interpretações. Dados psíquicos resgatados à custa de seu próprio mundo interior e que ultrapassavam os limites do apenas científico. Ele não desejava admitir esta possibilidade. Não reconhecia seu papel criador.

Sob a pressão do processo técnico que usava, a maioria de seus pacientes recordava cenas de sua infância cujo conteúdo era a sua corrupção sexual por um adulto:

(…) Dando fé a estas comunicações de meus pacientes, supus ter achado (…) as fontes das neuroses posteriores. Não estranharei que algum leitor sorria ironicamente, tachando-me de excessivamente crédulo (…) Quando me vi, mais tarde, forçado a reconhecer que as citadas cenas de corrupção nunca tenham acontecido, sendo apenas fantasias que eu mesmo tivesse sugerido, fiquei perplexo durante algum tempo. Chegara às citadas cenas por um caminho técnico que julgara correto. (…) Mas quando consegui me recompor da primeira impressão, deduzi, imediatamente, que os sintomas neuróticos não se achavam ligados a acontecimentos reais, porém a fantasias optativas. Não creio, entretanto, ter podido “sugerir” tais fantasias de corrupção.

Freud defendia-se antecipadamente da crítica que colocaria em risco os alicerces de sua doutrina. Negava a complexidade das relações entre criador e criatura a influenciar as expressões e interpretações dessas mesmas fantasias.

Ele tampouco pôde esclarecer se a criação literária seria um transtorno psíquico ou uma defesa neurótica. Seria o romancista semelhante à criança que reconstrói a realidade para adaptá-la a seu gosto? Não teria sido assim que ele agira algumas vezes? Ou teria sido como o psicótico que mergulha no seu delírio?

Dickens dizia escutar suas criaturas. Que falava de personagens que se apossavam da sua história. Flaubert, consciente de suas identificações projetivas com seus personagens, revelava: Madame Bovary, c’est moi!

A psicanálise afirmou que Fausto, Mefistófeles, Wherter, Meister foram projeções ficcionais de vários aspectos do próprio Goethe. Os quatro irmãos Karamazov, projeções do eu de Dostoievski. Acostumados ao labor literário, sabemos todos que esses fenômenos transcendem as classificações reducionistas das patologias mentais.

Em 1895, ao publicar seus Estudos sobre a histeria, Freud já escrevia muito bem. Sabia conduzir a narrativa. Caracterizava seus personagens e estruturava o enredo dos casos clínicos com segurança. Prendia a atenção do leitor, fazendo-o elemento ativo e participante do desenvolvimento das teorias que defendia. O “leitor intruso” dava graça e vivacidade a seu ensaio

A Interpretação dos sonhos, publicada em 1900, é a primeira tentativa de sistematização de sua doutrina. Sua leitura é agradável. O fluxo narrativo está sob total controle do autor. Ele usa o tempo a seu favor. Passado e futuro não são categorias cronológicas, mas um “antes” e um “depois” na ordem da narrativa. Parece-me influenciado pela leitura de Sterne, ao modo de Machado de Assis. Parte dos detalhes surpreendentes para, em circunvoluções interpretativas apoiadas em convincente humanismo, traçar seus claros labirintos. Um caminho de verdades peculiares – suas próprias, singulares verdades –  entre tantos outros caminhos possíveis à construção literária. Apenas ele não reconhecia o papel de sua própria criação na elaboração de suas teorias.

Em 1909, ao proferir uma notável série de conferências na Universidade de Clark, nos Estados Unidos, afirmou com orgulho que a inspiração literária era “o fator inconsciente da criação”. Esclareceu, surpreendido, que os sonhos fantasiados pelos escritores para seus personagens ficcionais pareciam seguir as mesmas regras observadas nos sonhos verdadeiramente sonhados.

Na época, Freud já trabalhava com a técnica de associações livres que tanto facilitou seu trabalho de ensaísta. Adquiria a maestria da associação, dissociação e recombinação – a marca do espírito literário. Utilizava o processo criador em sua seqüência completa. Desde a “inspiração” até as sucessivas revisões que, no caso de alguns escritores, dão forma á parte genuinamente criadora.

E este era o seu caso. Freud era um escritor incansável.

Com o enorme talento de conferencista – quando cada vez mais, envolvia o público no desenvolvimento do assunto com comentários desafiantes e sedutores –, proferiu palestras na Universidade de Viena nos verões de 1915 a 1917. Esse material foi depois publicado (em 1932) sob o título Novas contribuições à psicanálise. Os dois últimos parágrafos dessa obra discutem a questão da Weltanschaung (visão do mundo) da psicanálise. Afirma que sua doutrina não está em posição de criar uma Weltanschaung própria. Pois, por pertencer à ciência, adota a visão científica “que se limita à verdade e rejeita a ilusão”. Ainda não parecia dar-se conta do papel da criação literária em seus escritos. A formação científica o impedia de considerar o mágico poder da arte que invadia os meandros de sua alma, inundando-lhe a obra.

A partir de 1913 dedicou-se mais especialmente a escrever. Da tentativa de compreensão dos grosseiros fenômenos histéricos, Freud passou a interpretar materiais oníricos. Agora quer entender o mundo a partir das suas premissas doutrinárias. Escreve cada vez melhor.

Reservo aqui alguns instantes para falar de uma novela, talvez destituída de maior brilho, que deixou Freud profundamente transtornado. Ele dedicou páginas inquietas e intrigantes à sua análise.

Trata-se da obra Gradiva de W. Jansen, publicada em 1907.

Logo no início de seu trabalho sobre ela, Freud fala com simpatia dos literatos, sem se dar conta que era um deles:

(…) valiosíssimos aliados, cujo testemunho deve estimar-se muitíssimo, pois soem conhecer muitas coisas existentes entre o céu e a terra e que nossa filosofia sequer presume. Na psicologia, sobretudo, acham-se muito acima de nós outros, pois bebem em fontes que ainda não logramos tornar accessíveis á ciência. (O delírio e os sonhos na Gradiva de W. Jansen)

Gradiva é história de um jovem arqueólogo – com quem Freud se identifica – que, ao contemplar um baixo-relevo em um museu de Roma, apaixona-se pelo passo da mulher ali representada. Volta para a Alemanha com uma cópia em papel da peça. Passa a fazer fantasias sobre a moça, que situa como moradora de Pompéia. A rêverie encorpa-se e Norberto – este era o nome do arqueólogo – dá nome a sua adorada: Gradiva, aquela que avança, anda. Confere-lhe uma ascendência. Garante-lhe moradia. Passa a ter uma “existência delirante” em torno da eleita. Decide então voltar á Itália. Em Pompéia, depara-se com a aparição de Gradiva. Para surpresa de todos, ela fala alemão. Usa roupas do começo do século XX. Tem o mesmo passo elástico da jovem do baixo-relevo. Em uma série de encontros, ela trata “psicanaliticamente” seu apaixonado. Faz interpretações corretas e oportunas. Norberto era, simplesmente, seu vizinho e amigo de infância. Os dois haviam tido um namoro cuja lembrança havia sido enterrada pelo arqueólogo nos confins da memória. Lembrança que estava viva e saltitante na mente da moça saudável e inteligente.

A novela se enriquece com um universo de pequenos detalhes sutis, delicadíssimos, que em tudo se assemelha às minudências pinçadas por Freud nas suas interpretações. Ele se questiona como o escritor, desconhecendo as regras psicanalíticas, pode descrever o desenvolvimento e cura de uma “neurose”. Intrigado, envia um emissário para conversar com Jansen. Profundamente ofendido, o velho novelista responde:

Minha obra não tem outra fonte senão a de minha própria fantasia. Os que não encontrarem nela um gozo estético, não terão outra coisa a fazer senão abandonar sua leitura. (O delírio e os sonhos na Gradiva de W. Jansen).

Jansen faleceu pouco depois, em 1911. Estudos póstumos revelaram que suas novelas anteriores (A sombrinha vermelha, A casa gótica, entre outras) mantinham o mesmo padrão temático e estrutural de sua controvertida Gradiva.

Em 1930 Sigmund Freud recebeu, com muito orgulho, o Prêmio Goethe de Literatura. Seus pares fizeram-lhe justiça. Na ocasião, comentou:

“Creio que este é o clímax de minha vida.”

Em 1939, ano de sua morte, Freud publicou Moisés e o monoteísmo. Seus biógrafos afirmam que se identificava com o velho patriarca. Aquele que não conseguiu chegar à Terra da Promissão. Ouso ir um pouco adiante. Para Freud a Terra Prometida era a posteridade.

Em 2004, Harold Bloom ( Onde encontrar a sabedoria?) classifica a obra de Freud – junto com a de Proust – como as melhores representantes da literatura sapiencial do século XX. Proust desenha toda uma teoria psicológica da memória. No entanto, nunca ousou ou pretendeu sistematizá-la.

Freud desejou influenciar a psicologia com a mesma força com que Darwin marcou a biologia. Não conseguiu. Como afirmou Bloom:

“A literatura preferiu alinhá-lo ao lado de Platão, Montaigne e Shakespeare, e não ao lado dos cientistas que ele, expressamente, buscava emular. “

Como quase todo escritor, Sigmund Freud preocupou-se vivamente com o julgamento da posteridade. Morreu como um escritor. Aliás, viveu e morreu. Mesmo que nem sempre disso tenha tido clara consciência.

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