Paulo Gustavo

Poucos brasileiros não cariocas amarão tanto a cidade do Rio de Janeiro quanto eu. No entanto, costumo dizer que o Cristo Redentor, eleito uma das maravilhas do mundo moderno, é um monumento feio e, salvo melhor juízo, até mesmo medíocre. Não fosse estar no topo do Corcovado, a setecentos metros de altura, mal o apreciaríamos. Sua localização é 99% do seu encanto. No topo do morro, é de fato um deus que nos faz ver seus vastos e belos domínios.

O prestígio da localização vale, como bem se sabe, para muitos imóveis e também para muita gente que se instala nos cargos da República. Muitos desses inquilinos das burocráticas alturas nada seriam sem esse topo onde foram colocados. E assim acontece com o nosso atual presidente, cujo simples currículo jamais o qualificaria para ser o chefe do Estado brasileiro (até de “mau militar” teria sido chamado pelo insuspeito General Ernesto Geisel). Uma vez no topo, o presidente, seja quem for, será, para o bem e para o mal, incontornável.

Em sete meses de governo, ele já disse a que veio e para onde vai. Nesse passo, nota-se que veio não para o que supunham que viesse. Acreditava-se que o topo, a liturgia do cargo, a assessoria militar, a visão do alto (nada mau para um paraquedista como ele) e que tais o fizessem mudar. Alto engano ou autoengano de tantos? O fato é que está a cada dia mais confortável na estressante cadeira presidencial. Essa cadeira, como todos sabem, é móvel duro e velho, mas guarda doçuras secretas. Pois bem, o irascível Bolsonaro vai aqui e ali experimentando essas doçuras e se tornando mais aberto, mais expansivo. Sua língua vai na frente, derrubando as coisas, trombando na própria Constituição. O problema (ou a solução) é, um dia, a própria língua, como uma cobra traiçoeira, se enroscar no seu pescoço.

Uma das últimas do presidente foi criar a perigosa categoria dos “maus brasileiros”. Categoria que pelo visto é majoritária no País, com gente na fila querendo se inscrever para no futuro não passar vexame. Outra, também das últimas, foi dizer que “lamentavelmente, a justiça se mete em tudo”. Enfim, vivemos a era dos disparates em flor. E a paranoia, como a justiça, também se mete em tudo.

Mas meu tema não é língua, nem cobra, nem paranoia, mas o País diante de um agora incontornável problema técnico. Sim, técnico, não político. A secreta pergunta técnica que muitos já se fazem é: o presidente é contornável ou incontornável? Pergunta-se e ouve-se o demônio da realidade a dizer: “Não, não é contornável”. Pelo menos, não com as armas e os métodos habituais. Abaixo as armas, esqueçam-se os métodos habituais. O presidente é irrazoável, desborda da política e do campo democrático. Todavia, até agora só lhe atiramos bolinhas de papel. Tudo vai virando bolinha de papel: as críticas da imprensa, a discreta discordância dos aliados, o horror dos democratas, o espanto dos juristas e do iluminismo acadêmico. Não digo que as bolinhas sejam desnecessárias: vejam o caso da água mole, que nos pede paciência de Jó.

Talvez valha lembrar velha e batida estratégia: não bater de frente, ir pelos flancos, mover outras pedras, e não atirá-las com a mesma ira do capitão irreformável. É preciso contorná-lo com persistência. Nesse sentido, nossa criatividade brasileira há de ser uma grande aliada: afinal de contas, a nação e a sociedade se movem à revelia da frieza do Estado, esse “frio monstro” como escreveu Nietzsche. Também ante a frieza do presidente temos que contrapor o vigor de nossas reservas culturais e de toda a nossa habilidade política. Tudo isso, é claro, não virá de uma hora para outra. Talvez o futebol, o nosso futebol, possa nos ajudar nesta hora difícil. Temos que driblar Bolsonaro. Não me perguntem como. Não tenho e nem penso em receitas prontas. O que não se pode é brincar com fogo.

Por falar em fogo, há poucos dias o jurista Miguel Reale chamou Bolsonaro de Bolsonero. O trocadilho soa bem. O rei não está nu, está em chamas e é ele próprio uma flamívoma criatura, um Midas que inflama o que toca. Então, é preciso que todos os bombeiros da República se unam e entrem em ação. Repito: não tenho nenhuma receita para se contornar Bolsonaro. Mas uma coisa me parece certa: uma nação não arde em chamas por muito tempo.