Fernando Dourado

Agra, India – by Steve McCurry.

Agra, India – by Steve McCurry.

Santa Fé de Bogotá, Colômbia, 1988 – Era para ser uma noite tranquila. Na véspera, tínhamos ido à tourada e fizéramos amizade com umas colombianas divertidas e irreverentes – que fumavam charuto e tomaram manzanilla no gargalo até o fechamento da mansarda Casa Vieja. Preocupado com um encontro que teria com um alto dignatário, fui até o apartamento do então Ministro das Minas e Energia e ex-Vice-Presidente da República, Aureliano Chaves, no Tequendama. Menti para o ajudante de ordens dizendo que era um amigo de Itajubá. Ele me atendeu de pijama, mas foi gentil e disse que nos veríamos no café da manhã com a autoridade em questão. E assim o dia começou. Enquanto eu ameaçava denunciar o Acordo de Alcance Parcial 21 da ALADI por Não-Reciprocidade, nosso ministro, mineiramente, soprava a ferida e tudo se resolveu bem. Lavrei uma vitória. Então um colega sugeriu: vamos jantar naquele francês simpático onde se comem bons escargots e um filé alto com vagem? Quando a dona do local trazia os pratos, porém, veio a explosão. Atiramo-nos no chão por reflexo, mas, felizmente, não houve estilhaços para dentro da casa. Só o deslocamento de ar na rua – pavoroso. Ela ficou petrificada, coitada. Voltaria à cozinha, faria outros filés. Aceitamos para lhe conservar o ânimo, embora já sem apetite. Sob pretexto de equilibrar a adrenalina, pedimos uma garrafa de conhaque. Na saída, o chofer Pinilla nos levou o mais próximo possível da explosão, a boas quinze quadras. Havia uma cratera enorme. Sorte que era tarde e não tinha gente, pois do ministério ficou só o esqueleto espectral. Es Don Pablo, Senõr. Es el diablo. Pinilla sabia das coisas.   

 

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San Salvador, El Salvador, 1989 – Já tinham assassinado o padre Romero alguns anos antes. Graças ao terremoto que destruíra a lavanderia da vez anterior, eu não tinha podido recuperar uma elegante camisa com monograma gravado no bolso que minha mulher me dera de presente, e foi com um amuo que recebi o reembolso em dinheiro daquele hotel de más memórias. Mas o que podia estar acima do dever? Lá estava eu de novo no país barbarizado e desgovernado, cindido por bandidos que loteavam as terras e alugavam milícias. Na piscina do estabelecimento, respirando o ar de begônias e hortênsias, tomava uma piña colada e lia um jornal americano. Então eles chegaram, os sicários. De chapéu de caubói, botas de cano alto, imensos rifles nos ombros, bigodes entrando boca adentro, a modulação lenta e anasalada da região, e com os modos perigosos dos capangas sem pejo, bateram com dois dedos na testa ao me ver: Buenas, Senõr. Então se acomodaram e pediram uma garrafa de rum, sanduíches de galinha, langostinos mariposa  e costelas de porco. Antes loquazes, mas agora num tom baixo, fizeram um balanço da caçada. De quantos tinham matado e quem pretendiam ainda pegar na boca da madrugada. Nunca me perdoarei pela imprudência: com jeito de gringo, como é que ficava lendo uma revista americana ao lado daqueles animais? Mas a curiosidade era maior. Deixaram umas cédulas e saíram com estardalhaço. A garçonete se benzeu ao som da partida. Por Díos, Maria y José.

 

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Bagdá, Iraque, 1990  – Tive que ir com urgência a Bagdá. O presidente da Petrobras ligara para Dr. Antonio Ermírio e foi enfático quanto a um contencioso que tínhamos com a Interbras local – subsidiária comercial do mamute petroleiro – por conta de um acordo barter celebrado pela Volkswagen, capitaneada pelo lendário Wolfgang Sauer, na época da venda dos carros Passat para o Iraque. A Votorantim tinha horror à dependência estatal e, nesse caso, precisávamos do ácido nítrico deles. Tive que viajar para Bagdá de imediato, em pleno agosto, o que era um suplício. Na primeira classe da Air France, num voo que saía de Paris para o Iraque, via Aman, viajou a meu lado a filha de um Ministro-Conselheiro da embaixada. Este me deixou no hotel Rashid – anos depois bombardeado -, e começou a longa espera para me avistar com o Ministro, esclarecer o devido e oferecer uma solução conciliatória para o problema. O Embaixador brasileiro – homem triste que mais tarde se suicidaria no Rio de Janeiro -, me ofereceu um jantar aparatoso. Sim, Saddam Hussein era horrendo. Matara um general que ousara questionar se deveriam continuar a guerra com o Irã. Fizera-o de próprio punho, pistola na mão, diante do gabinete reunido. Pior: matara o pai de uma criança que, inocentemente, lhe dissera numa visita ao jardim da infância que sabia quem ele era. Por que? Ora, porque o pai dela desligava a televisão cada vez que Saddam aparecia. Ah, é? Então seu pai não deve gostar de mim? Não, confessou a criança com um sorriso puro. O tirano assentiu, lhe beliscou a bochecha rosada e disse que precisava conhecer esse bravo homem. Menos um. O pior de tudo foi a visita à Babilônia para matar o tempo. Ainda hoje tenho poeira nos cabelos e, ao rememorar o calor, sonho com a Sibéria.

 

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Multan, Paquistão, 1993 – Quando cheguei àquela cidade remota, um black out a reduziu à treva. Escura e inóspita, como daria cabo da fome noturna que me acomete desde que nasci? Alguém me recomendou um restaurante chinês, o único. Lá fui eu, seguindo as orientações que me davam os passantes. Tateei até chegar à porta ornada de lanternas com velas e sentir um cheiro de fritura que denunciou o lugar. Empurrei a porta com força e, sem me aperceber, atropelei o recepcionista – um anãozinho de um metro e qualquer coisa cuja cabeça enorme mal chegava a meu umbigo. Desculpei-me pela trapalhada, mas como eu próprio fui ao chão, ele também sorriu e disse que já estava acostumado. Mas que não era todo dia que recebia uma carga tão pesada sobre os ombros. Brilhante, o anãozinho. Esperto como todo bobo de corte. No dia seguinte, um jipe enorme veio me pegar para irmos visitar as fazendas de algodão. O dono da propriedade era loiro, de olhos azuis, apesar de paquistanês. Disse que descendia dos soldados macedônios de Alexandre, o Grande. Lá – a caminho da Báctria, hoje Afeganistão – ele tinha deixado trezentos homens com a missão de procriar à farta para melhorar a raça. Não tínhamos pressa de concluir o negócio mesmo porque a logística de escoamento era uma incógnita. Karachi ou Bandar-Abbas, no Irã? Alguém me sugeriu visitar um importante templo muçulmano e, apesar de não gostar do estrépito que o motorista fazia de mão na buzina para abrir espaço, aceitei. Chegando à fila de miseráveis, contudo, fui mal recebido. O motorista me pegou pelo braço e, em pânico, corremos para o carro sob chuva de pedras. Eles não queriam infiéis alí. Ora, por que não disse antes, seu idiota? Sorry, Sir.

 

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Madrid, Espanha, 2003 – Com Luiz Felipe D´Ávila, fui a Madrid encontrar com Juan Luis Cebrián, o todo poderoso do El País. Tínhamos uma proposta para fazer ao grupo Prisa em torno de uma revista de arte e ele colocou na sala Jaime Polanco, talvez a segunda fortuna da Espanha, um cavalheiro de modos aristocráticos e dotado da sagacidade de um mercador de tapetes. A conversa se desdobrou. Por que eles não chamavam Fernando Henrique Cardoso para o Conselho do Prisa? Don Ignácio Santillana se animou. Ele toparia? Acho que sim, garanti. Se quiser, converso com ele a respeito. À noite, jantamos todos num aclamado restaurante basco e, antes de voltar, propus a Felipe que fossemos a Las Ventas, onde o melhor da tauromaquia estaria na arena. O espetáculo era grandioso e falamos de Hemingway antes da função. O primeiro touro foi fulminado com destreza. O toureiro recebeu uma orelha de bonificação e os lenços brancos varriam a plateia eufórica. Mas quando veio o segundo, logo se viu que teríamos problemas. Era um animal enorme e os picadores não conseguiram lancetá-lo no dorso. Duas das banderillas já caíram de cara e os ferimentos superficiais só fizeram irritar o miúra descomunal. O toureiro entrou com responsabilidade dobrada. A banda tocou um acorde uma vez, pedindo pressa. Depois de várias estocadas vãs e de sangrar muito, o animal foi sacrificado no chão, com a língua emaciada estirada sobre a areia e uma facada cirúrgica entre os olhos. Uma carnificina, enfim. Vaias e apupos para o anti-herói. Atrás de nós, vi uma japonesa que chorava profusamente. Para ela, nunca mais. Que lástima.

 

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Londres, Reino Unido, 2005 – Os atentados tinham acontecido há menos de duas semanas, matando 56 pessoas. Foram simultâneos e tinham as digitais claras dos patrocinadores. Morreu gente em Tavistock Square, Russell Square e King´s Cross. Ora, a muito custo eu tinha conseguido que fossemos recebidos pelo braço inglês da maior empresa mundial na área de andaimes, formas e escoras e a reunião não podia ser adiada pois dela dependia a vinda do presidente mundial do grupo ao Brasil, este residente nos Estados Unidos. Sem conexão boa de internet no quarto, fui até um café perto da estação de Paddington. Era um subsolo tranquilo, refrigerado, e várias pessoas faziam dele uma verdadeira estação de trabalho. Tinha acabado de me servir de um chá e estava contente com as notícias que me chegavam. Naquela tarde, visitaríamos com o cliente alguns projetos ligados à organização dos Jogos Olímpicos em que seus produtos estavam expostos, inclusive nas versões mais modernas. O silêncio era total. Mas, num átimo, escutamos um estouro próximo. Ficamos paralisados. Podia ter sido a última explosão. A vida veio toda à mente: Garanhuns, os carvoeiros, os burricos da entrega d´água, as roletas de cigarro no Natal, o carrossel, as barcas e as primeiras cervejas em público com Zé Eduardo. Mas não. Era apenas um gordinho engravatado que deixara cair a pasta no chão de linóleo. Nunca um homem se desculpou tanto. Todos o perdoaram aliviados. Ressurrectos, viramos por meia hora uma só grande família.

 

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Riga, Letônia, 2008 –  Era a primeira semana de janeiro, data do Ano Novo do calendário ortodoxo, logo russo. Poucas vezes voltarei a sentir tanto frio. A área interna da estação rodoviária de Riga deveria estar a zero grau. Sim, falo das salas cobertas e calafetadas, daquelas destinadas aos chamados passageiros bilhetados. Mas lá fora, reinava uns trinta negativos. Talvez quarenta. O vento espanava a poeira da neve e ninguém ousava se aproximar do ônibus até que a porta estivesse aberta. Meu destino era Varsóvia e passaríamos a noite abrindo caminhos ate Kaunas, na Lituânia, e de lá para a Polônia. Era muita neve. Resolvi que seria o último a embarcar. Nessa hora, os guardas chegaram para fechar a estação, pois o nosso era o ônibus derradeiro. Só não contavam com a reação dos bêbados e dos mendigos que queriam ficar ali pela noite. Como é que homens frágeis e desnutridos enfrentam policiais armados para a guerra? É a vodca, ora essa. Parece que dá uma coragem extraordinária e uma grande impulsão à retórica pastosa. Mas foi só completar uma frase para que o porta-voz dos bêbados levasse uma bordoada que o derrubou no chão. Estimulados pelo exemplo que emanava do chefe, os policiais foram impiedosos. Prostrados no chão gelado, alguns dos desvalidos cuspiam os dentes numa poça vermelha sobre o fundo branco. Outros engatinharam até fora dos limites da estação. Antes de o motorista do ônibus terminar de manobrar no pátio, me encostei na vizinha de cadeira que aceitou de bom grado o calor dos dois corpanzis. Era uma russa imensa, dessas que foram bonitas até ontem e que, rapidamente, estão se transformando em babushkas. Em minutos, nos beijávamos sem trocar palavra. Em Kaunas, ela desembarcou sem se despedir e o frio piorou muito.

 

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Darmsala, Índia, 2012 – Éramos só três no carro espaçoso. Lakshimi, o motorista; Lavínia e eu. Viajávamos por Himachal Pradesh, lá pelo norte da Índia, a caminho de Darmsala – famosa por hospedar o Dalai lama e, portanto, conhecida como o Pequeno Tibete. Os sustos no trânsito eram colossais, mas com o tempo passamos a apostar algumas fichas no nosso condutor. O que fazer? É fazer isso ou não viajar. Acaso não temia ele pela própria pele também? Um pouco, sim. O incômodo é que ele achava que teria muitas encarnações, ao passo que nós só acreditamos nessa. À medida que a noite invernal caiu, a temperatura despencou quinze graus em poucos minutos e a paisagem exuberante perdeu o atrativo. Além do mais, aumentava o risco de acidentes na escuridão, varada por faróis solteiros e mal calibrados. Instruí Lakshimi a parar no primeiro hotel que achasse naquele local que parecia deserto e ameaçador. Estacionamos ao lado de uma cimenteira onde havia um hotel horrível, mas aceitável – dadas as circunstâncias. O que Lavínia não transforma com o engenho dela? Peço dois quartos. O gerente olha para o motorista e diz que ele não precisa de quarto. Pode dormir no carro e estacioná-lo junto ao viveiro de emas. Que eu lhe desse 200 rupias e ele ficaria mais feliz do que dormir num quarto de 1500. Ganham todos. Lakshimi ficou tenso e me fez sinal de que estava certo. É um dalit, está acostumado à exclusão e ser visto no elevador pode arruinar a reputação daquela pocilga. Ou ele dorme numa cama ou não ficamos, disse. Não quero saber de seus motivos torpes e vergonhosos. Mas queremos amanhã um motorista descansado, entendeu? Deram um jeitinho: o jugaat local. Na madrugada seguinte, seguimos viagem e Lakshimi cantarolou durante o trajeto todo.

 

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Frankfurt, Alemanha, 2013 – Ficaria um dia em Frankfurt e não queria abusar da amizade do Embaixador Cezar Amaral. Queria um hotel que Lídia recomendara, distante um quilômetro da estação central. Como sou glutão, resolvi ir até lá e comer um joelho de porco grelhado com salada de batata – prato de resistência dos doces tempos estudantis. Como pretendia trabalhar até tarde, não ficaria remoendo a fome. No caminho de volta, de andar um pouco hesitante por conta da neve batida, me apoiei na grade do jardim para atravessar o trecho mais crítico, justamente aquele onde o gelo estava deslizante e a rua escura. Pois foi dali que surgiu um jovem parrudo, rosto de quem não vê água há dias e ar agressivo. “Hast du Feuer?” Senti o perigo e resolvi enquadrá-lo de imediato. Quem era ele para me pedir fogo e muito menos me tratar informalmente, como se estivesse se dirigindo a um amigo ou uma criança? “Nein. Und Sie sollten ja nicht rauchen“, rebati com arrogância, tratando-o de o senhor e ainda o reprimindo por fumar. O fogo era o que menos interessava. Ele queria me sentir; ver se era alemão; se estava vulnerável; se mostrava alguma fraqueza; se ficara com medo. Conclusão: eu já virara caça, e não mais caçador. Então, ele e o comparsa romeno me levariam a dignidade que restasse. Fui paternal: sumam, tem muita polícia por aqui. Fui indultado, enfim. Até quando? O que deve fazer um homem altivo ao perceber que já não inspira nas pessoas o respeito de outros tempos? Matar-se ou esquecer a altivez. Tão simples.

 

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Trapani, Itália, 2014 – Tomo um prosecco no hotel La Gancia e vejo, maravilhado, o pôr do sol no horizonte. Elucubro: logo ali na frente está a Tunísia. Será que terei tempo de incursionar pelas ilhas da região ou vou mesmo me trancar numa villa em Cefalù e lá terminar o que tenho que fazer? Mais abaixo, as arcadas do antigo mercado de peixe. Penso em comer logo mais um atum selado com crosta de gergelim e um vinho branco terroso e provocante. A Sicília é terrível, mas maravilhosa. Ou maravilhosa, mas terrível. Então vejo um séquito de carros civis com sinalizadores luminosos no teto que se aproxima. Do carro do meio – porta pesada e apenas lentamente aberta – assoma um baixinho de metro e meio, barba por fazer, linda gravata azul e terno chique, embora amarfanhado. Ao lado, uma ucraniana – ou moldava – cujo fêmur bate no diafragma dele. Os policiais não tiram os olhos dos passantes, mãos no coldre, e o escoltam até o quarto. Já sei, é o tal juiz que vem para as audiências dos mafiosos. O Moro deles. Tenho orgulho do baixinho – o substituto do Falcone – , é uma honra dividir o endereço. Que coma bem aquela loiraça pois já deve ter sido abandonado pela mulher oficial, certamente temendo pelos filhos. De onde vem essa noção de que vida de criança vale mais do que vida de adulto? Mas será que ele precisava mesmo ficar naquele hotel? Uma ocasião, em Tel-Aviv, um general sérvio chegou com um aparato alarmante. Chamei Ilana, a diretora do hotel e disse: esses caras deveriam ser hóspedes do governo. Jamais se deveria colocar a vida dos hóspedes em risco. Ela deu de ombros. Pobre baixinho: tinha sua loira, mas não sabia o que era tomar um sorvete na pracinha, diante da catedral, ao lado das velhas entrevadas e sorridentes.

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