Camilo Soares (*)

Paris, sexta-feira, 13 de novembro de 2013, entrei numa lojinha que mau dava três metros de largura para comprar um incenso. Vi o vendedor ajoelhado sobre um pequeno tapete vermelho na estreita salinha, fazia sua reza virado pro leste. Escolhi uma fragrância e levantei a mão em sinal para que ele não se apressasse. Quando acabou, paguei e conversamos um pouco de trivialidades. Saindo pensei como era enriquecedor morar numa cidade onde se pode entrar em contato com outras referências culturais sem sair do seu cotidiano (viria ainda na mesma noite, na frente de uma bodega, um ritual hindu de queima de frutas numa bandeja). Um pouco mais tarde, escutei barulho de fogos a uns duzentos metros de onde caminhava; infelizmente, aqueles pipocos se revelariam nada comemorativos. Chegaram então as sirenes, rasgando o silêncio das pessoas que vagavam incrédulas numa cidade que tornara de repente estranha e desencantada. O mundo parecia ter sido irreversivelmente cortado em dois, entre obscurantistas sanguinários e a civilização da liberdade e do progresso. Mas no cair da poeira, da raiva e do medo, pergunto-me até que ponto esses processos seriam historicamente antagônicos ou, pior, se tais extremos não fariam parte de um mesmo sistema.

Sim, os atentados são atos hediondos que não podem ser justificados em hipótese alguma. Contudo, o mais difícil agora é tentar redobrar o discernimento para não cair em simplismos e divisões entre nosso humanismo e a barbárie do outro (mais ou menos como repartia Samuel Huntington em seu famoso artigo “The clash of civilizations”, de 1993, para quem havia povos incapazes por tradições culturais e religiosas de assimilar os valores ocidentais, o que seria inevitavelmente fonte principal dos conflitos da nova era pós-Guerra Fria), até porque os atiradores eram, sobretudo, europeus. Talvez pensando assim possamos tentar entender o processo de radicalização desses jovens a ponto de destruir o que é de mais sagrado no mundo Ocidental, a própria vida. Sem dúvida a estigmatização de guetos de imigrantes nas cidades europeias, nos quais os índices de desemprego são sempre bem mais altos do que a média nacional, é um motivo para a marginalização, a delinquência e o ódio contra uma sociedade que não os acolhe. É bom lembrar que esses jovens terroristas são da geração dos adolescentes que há dez anos queimaram carros na periferia de Paris (e outras cidades da França e da Europa), deixando nas cinzas das chamas mal apagadas indícios de uma crise de identidade e de valores que, parece-me, foram muito bem compreendidos pelos recrutadores dos grupos radicais e suas promessas sedutoras de aventura, fama, pertencimento e uma causa para viver e morrer.

Além disso, essas fronteiras de sociedades parecem cada vez mais borradas, incertas e enlinhadas. Edgar Morin lembra-nos que um certo humanismo que carrega a ideia de progresso e para o qual razão, democracia, moral e avanço técnico-científico-material caminham inexoravelmente inseparáveis, foi o mesmo que desembocou em vários regimes totalitários e em duas Guerras Mundiais. O sociólogo e filósofo francês atina ainda para o fato que tal humanismo sempre foi monopolizado pelo homem branco, adulto e ocidental, que era o único a ter pleno direito da dignidade de Homo Sapiens, os demais sendo tratados de objetos ou serventes, sobretudo até a recente época de descolonização. Tal ideologia serviu de sustentação ideológica para justificar a expansão colonial (premissa denunciada por Michel de Montaigne no século XVI, que já dizia : “chamamos de bárbaros os povos de outras civilizações”), mas também o apoio recente a regimes violentos e totalitários.

Desde a Guerra Fria, as democracias ocidentais revelaram inúmeras vezes suas contradições éticas ao sustentar, por interesses geopolíticos e (é claro) econômicos, o oposto de práticas humanistas, muitas vezes encobertando verdadeiras atrocidades. Tal pragmatismo amoral se resume na mítica frase de Franklin D. Roosevelt sobre o ditador nicaraguense apoiado pelos gringos : “Somoza pode ser um filho da puta, mas é nosso filho da puta.” Pouco importa se a frase é lenda ou verdade, o pensamento pode ser generalizado em tantos outros exemplos de ditaduras apoiadas pelas potências ocidentais na história recente da América Latina, África, Oriente Médio e Ásia : o xá do Irã, Lon Nol do Camboja, Mobutu Sese Seko na República do Congo (Zaire), entre tantos outros. A França, país dos direitos humanos, atualmente apoia Idriss Déby que governa o Tchad com mão de ferro desde 1990 : ele foi chefe militar de Hissène Habré, julgado por crimes contra a humanidade praticados em sua presidência nos anos 1980, e ainda hoje costuma “desaparecer” impunemente com seus opositores. A desastrosa intervenção norte-americana no Iraque, com um posterior massacre dos sunitas (que criou espaço e motivação para a formação do Estado Islâmico), e o apoio ao truculento governo egípcio de Abdelfattah Al-Sissi não fogem da regra. E o que dizer da direção da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas dada à Arábia Saudita, país onde jovens são decapitados e crucificados em praça pública apenas por manifestarem contra o governo.

Tal vista grossa ao terrorismo de estado é mais do constrangedor, é um retrato da crise de um humanismo com duas medidas, dependendo das distâncias aos grandes centros do Ocidente e de interesses expansionistas. Repartir sem critérios étnicos os territórios da África e do Oriente Médio e apoiar ditadores que garantam seus interesses econômicos (como, até recentemente, na Síria com el-Assad pai e filho: as tropas desse último matou 10 vezes mais durante os recentes conflitos do que os Estado Islâmico, cerca de 125 mil civis segundo a Rede Síria pelos Direitos Humanos e a Onu). Há também o negócio mundial de armas (dominado por Estados Unidos, França, Reino Unido, Alemanha e Rússia), que movimenta mais do que 45 bilhões de euros, sem contar o mercado negro que alimenta traficantes de drogas, senhores de guerras e comandos fundamentalistas.

Pelo bem ou pelo o mal, o mundo não pode ser mais separado, globaliza seus trabalhadores mais brilhantes, assim como os refugiados de guerra ou de penúrias, exporta a música pop e o fetiche dos últimos iphones, assim como as insensíveis kalachnikovs e o medo do terror. “Paris não está acostumada com isso. Para nós é quase normal.”, desabafou a libanesa cristã que faz o melhor sanduíche chawarma do bairro onde moro, ao lembrar que um dia antes 43 pessoas morreram (239 feridos) em Beirute decorrente de um ataque do mesmo Estado Islâmico. Não há mais lugar para inocência quando o mundo de lá não fica mais lá longe, mas está aqui batendo à porta, ao lado da mesa de bar, olhando nos nossos olhos. Diante de um risco de encrudescer intolerâncias, devemos, segundo Morin, apegar-nos a um humanismo regenerado que não incite dominação, como pregava o mesmo Montaigne (“Reconheço em todo homem meu compatriota”), ou Montesquieu no princípio de que, se for preciso escolher entre sua pátria e a humanidade, devemos escolher a humanidade. Tal humanismo regenerado deve se tornar planetário para poder contrapor ao terror, suas causas sociais e a ideologia que o sustenta; precisa também estar atrelado a atos, políticas e comportamentos ligados a um sentido de solidariedade-responsabilidade. E na guerra isso não deve ser diferente, visto que ela não acaba no último tiro, sobretudo para a população local.

(*) Camilo Soares, professor de cinema da UFPE, fotógrafo e atualmente faz doutorado em Paris

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