Há um ano, em 17 de dezembro, tivemos a boa surpresa do reatamento das relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos. Houve entusiasmo de ambos os lados, as duas bandeiras juntas desfraldadas. Depois da abertura das respectivas embaixadas, continuaram as negociações em várias frentes. Por ora o avanço é lento, e o impacto econômico não corresponde às expectativas iniciais de ampliação de acesso a bens de consumo e abertura de mercados. A questão que é possivelmente a mais importante, o fim do embargo americano à ilha, depende do Congresso em Washington, que dificilmente decidirá antes das eleições de 2016.
Aumentaram as visitas de homens de negócio a Havana, mas a liberdade de viajar só foi dada a certas categorias, e ainda não existe para o turista americano comum. Resultados concretos dessas visitas comerciais ainda dependem de uma decisão sobre o embargo americano. Paradoxalmente, dobrou em 2015 o número de cubanos que chegaram aos Estados Unidos, perto de 45 mil. Aparentemente há medo de que, com a normalização das relações, vá prevalecer a exigência de visto, e será abolida a legislação dos EUA que permite a permanência de qualquer cubano que chegue a tocar o solo americano. Há notícia de um grande aumento no fluxo de cubanos em trânsito na Costa Rica e na Nicarágua. Segundo o The Economist, ecoa os fluxos na crise de refugiados europeia.
Somente agora, em dezembro, começaram as negociações entre os dois países em outra área complicada, que é a das compensações para imóveis e fábricas de americanos desapropriadas pela revolução de Fidel Castro. Dessas negociações depende, por exemplo, uma normalização dos voos regulares entre Cuba e Estados Unidos. Por enquanto, aviões da Cubana, a companhia de aviação estatal, não podem pousar em aeroportos americanos, pois seriam sequestrados a título de indenização. De outro lado, os cubanos pedem compensação pelos prejuízos econômicos de décadas, causados pelo embargo.
Será que Finca Vigia, a casa de Ernest Hemingway perto de Havana, será incluída entre os imóveis a serem indenizados? O que restará das homenagens a Hemingway? Em Havana Velha está o Hotel Ambos Mundos, que mantém igualzinho ao que era, o quarto na esquina nordeste do quinto andar em que ficava o escritor nos anos 1930, quando não estava no mar – antes de instalar-se a partir de 1939 na sua casa de Finca Vigia, uns 43 mil metros quadrados de terra numa colina com vista sobre o Golfo, a 25 km do centro de Havana.
Cuba cultiva muitas lembranças de Hemingway: além do Hotel Ambos Mundos, o bar Floridita a nove quadras do hotel, sua casa de tantos anos, Finca Vigia, convertida em museu, o iate Pilar, o busto de bronze oferecido a Hemingway pelos pescadores da aldeia de Cojimar, o hotel “El viejo y el mar” junto à Marina Hemingway, onde até há pouco se realizava anualmente o Torneio Hemingway de pesca de peixe espada. Foi numa dessas competições de pesca, logo depois da revolução, que Fidel Castro encontrou Hemingway. Até 2002 ainda era possível encontrar Gregorio Fuentes, o marinheiro que foi o último capitão do iate Pilar, em Cojimar, e ouvi-lo contar das excursões marítimas de “Papa”.
Hemingway viveu em Havana 22 anos no total. Foi onde teve a única residência estável de sua vida e onde escreveu suas obras maiores, Por quem dobram os sinos, Através do rio entre as árvores, O velho e o mar, Paris é uma festa, e Ilhas do Golfo, além de inúmeros artigos de jornal e muitos rascunhos.
Tudo isso é relatado por Norberto Fuentes em um livro fascinante, Hemingway en Cuba, publicado em Havana em 1984 (Editorial Letras Cubanas). São 715 páginas de reflexão, análise de documentos, entrevistas e muitas fotos, que revelam grande carinho pelos personagens centrais, Hemingway, Cuba, e a disciplina de escritor. É possível que algum comentarista mais indignado com a ditadura cubana julgue que o esforço dedicado a escrever o livro tivesse como objetivo mostrar que Hemingway foi simpatizante da Revolução Cubana – ou que pelo menos não foi contra. Na verdade o que transborda do grosso volume é que tanto a alma de Hemingway quanto a de Norberto Fuentes e outros intelectuais cubanos é mais complicada que isso. O esforço de documentação é tão detalhado que o resultado é um tanto confuso. Isso se deve também a que o próprio personagem central, Hemingway, é difícil de classificar com um rótulo ou outro, inclusive nas suas relações com Cuba, e mais ainda na sua última década de vida, antes de seu suicídio em julho de 1961.
A trajetória do escritor Norberto Fuentes tampouco permite rótulos. Parece que escreveu algo que não foi do agrado de Fidel Castro e viveu em Havana mais ou menos no ostracismo. Até que, nos 1970s, se dedicou por sete anos ao livro das relações de Hemingway com Cuba. Este agradou Fidel e seu irmão, e Norberto Fuentes passou uns anos como escritor preferido do regime. Até que de novo escreveu algo que não foi do agrado dos dirigentes. Em 1993, tentou fugir de Cuba, mas foi preso. Foi solto em 1994, depois de uma campanha liderada por Gabriel Garcia Marques. Desde então vive nos Estados Unidos e hoje mantém um blog.
Gabriel Garcia Marquez disse no Prólogo de Hemingway en Cuba que nenhum outro escritor – exceto José Marti – recebeu tantas e tão diversas homenagens em Cuba quanto Hemingway. De imediato, se a gente só sabe de O velho e o Mar ou As neves de Kilimanjaro, ou A breve vida feliz de Francis Macombe, e se detém na imagem ultramachista e aventureira do caçador de leões e bisões, de amigo de toureiros e rinhas, e de colecionador de troféus, não dá para entender bem por que. Mas, no país pequeno tão pertinho do Colosso do Norte (mais colosso outrora), dali separado por menos de 150 km de mar, bloqueado e com mais de uma experiência de ataque armado em sua história, “ter coragem” “não ter medo” “não ser covarde” foi cultivado como parte da psique nacional. E a coragem, enfrentando leões e peixes grandes, mas também na Guerra Civil Espanhola ou durante bombardeios quando foi correspondente na II Guerra Mundial, aparece como valor central na vida e obra do escritor americano.
Nenhum dos aspectos controvertidos de Hemingway foi deixado de lado por Norberto Fuentes: o que fez na Guerra Civil Espanhola e na II Guerra, as muitas mulheres da sua vida e as 4 esposas, seus vínculos com família, irmãos e irmãs, suas limitadas relações com a intelectualidade cubana e da América Latina, sua atitude para com as ditaduras de Machado e Batista, seu amor pelo mar, pela bebida e pelo Bar Floridita, pela caça, por armas, por animais (chegou a ter 57 gatos em Finca Vigia, além dos cachorros e da criação de galos de briga), suas reações ao Prêmio Nobel obtido em 1954, seus encontros com Fidel Castro, as alfinetadas a outros escritores americanos, seus porres e brincadeiras malucas, sua quase obsessão com a morte e a virilidade, o terror ao envelhecimento, as diferenças entre seus psiquiatras, a disciplina imprescindível e as angústias de escrever, e sobretudo suas relações com Cuba e com os cubanos – e como tudo isso se reflete em sua obra.
O próprio Hemingway tentou uma vez responder a uma pergunta de por que viveu tanto tempo em Havana, e falou da brisa em dias de calor, de gatos e lagartixas, de 18 tipos de manga, de tiro ao alvo, e da corrente do Golfo onde podia pescar peixes grandes a 45 minutos de sua casa. Mas de certa forma contradizendo tudo isso, acrescentou que era onde podia trabalhar melhor.
Helga,
Ao ler seu artigo, revirei meus livros à procura do “Hemingway em Cuba”, de Norberto Fuentes. Ainda hoje lembro de exemplar adquirido na livraria Brasiliense, na Barão de Itapetininga, e o quanto adorei a leitura. Mas infelizmente o exemplar se evaporou. Certamente emprestei-o a alguém e nunca mais lhe vi a cor.
Por alguma identidade pessoal, segui os passos de Hemingway em Paris, Cuba, Pamplona, Flórida e até mesmo em Oak Park, subúrbio de Chicago, onde ele nasceu e eu tenho família. Tive momentos de veneração pelo escritor, mas também fases de intolerância ao estilo telegráfico e coloquial. Curiosamente, não curti “O velho e o mar”. Mas apertei a mão de Gregório.
Estou convencido de que Cuba dentro de dez anos será um país no mínimo muito interessante. Embora pífios em muitos segmentos, os ganhos da revolução se farão sentir quando a economia for destravada. É claro que destravar a mentalidade moldada pelo centralismo estatal, serão outros quinhentos. A senha será dada pela partida dos irmãos de sangue galego que dão as cartas.
FD
Não sabia que “Hemingway en Cuba” havia chegado ao Brasil. Ganhei de um amigo cubano em 1996, quando eu estava na CEPAL, Santiago de Chile. Norberto Fuentes havia fugido de Cuba, e é indicador da situação política na ilha o fato de que tenho absoluta certeza de que não devo revelar a identidade de quem me deu o livro. Chegou a haver tradução desse livro? Pois eu já achei Cuba um encanto quando lá estive em 1995, mas era visita oficial, representando a CEPAL, em uma reunião de Ministros de Meio Ambiente da América Latina e do Caribe. Até recepção com a presença de Fidel nós tivemos. Disse a ele que Gert Rosenthal, o secretário-geral da CEPAL, lhe mandava um abraço, e ele reagiu: “que venga el abrazo”, e é claro que foi aquele mistério entre delegações de vários países – “que diabo de mulher é essa dando um abraço no Fidel?!” Não, não estou esquecendo que era uma ditadura. Os preparativo de segurança para chegar onde estava Fidel devem ter sido ensinados por algum agente do estado de Israel….
A julgar por esse editorial do New York Times, de 21/12/2015, é muito grande essa nova onda de cubanos partindo rumo aos Estados Unidos, tentando aproveitar os últimos meses de seu status especial, que permite que lá fiquem os que lá consigam chegar.
http://www.nytimes.com/2015/12/21/opinion/a-new-cuban-exodus.html?emc=edit_th_20151221&nl=todaysheadlines&nlid=43659562&_r=0