O conceito de práxis no marxismo é uma chamada à ação para a transformação da realidade. Brilhantemente desenvolvido por Marx, é fundamentalmente necessário para um tipo de ação revolucionária – onde todas as estruturas existentes e paradigmas culturais são impiedosamente quebrados.
“A práxis revolucionária é então uma atividade teórico-pratica em que a teoria se modifica constantemente com a experiência prática, que por sua vez se modifica constantemente com a teoria. A práxis é entendida como a atividade de transformação das circunstâncias, as quais nos determinam a formar ideias, desejos, vontades, teorias, que, por sua vez, simultaneamente, nos determinam a criar na prática novas circunstâncias e assim por diante, de modo que nem a teoria se cristaliza como um dogma e nem a prática se cristaliza numa alienação” (Fonte Wikipidia https://pt.wikipedia.org/wiki/Pr%C3%A1xis)
Nos dias de hoje, onde a inovação tecnológica vem varrendo as antigas formas de produção e comunicação para o “lixo da história”, motivada por uma irrefreável força humana, o consumo, as revoluções político-ideológicas são pálidas expressões diante do que a tecnologia vem fazendo em nossas vidas.
Diante disso, o pensamento marxista tem ainda alguma validade?
Se contextualizado para o capitalismo moderno, este da sociedade da informação, pode sim ser uma excelente ferramenta de pensamento e ação para o aprofundamento de práticas sociais e políticas.
O desafio é desconstruir certos dogmas enraizados, a ferro e fogo, pela história recente, onde tudo era concebido como uma força antagônica ao capitalismo, o qual, uma vez ultrapassado pelas suas estruturais contradições internas, levaria a humanidade a atingir o nirvana histórico do socialismo. Com o fim da experiência socialista, simbolizada pela queda do Muro de Berlim, restou-nos apenas a democracia, essa, agora, como valor universal.
Mas é universal mesmo? Ou é mais uma utopia que o homem se impõe diante da dura realidade histórica?
Em parte. Creio que essa universalidade democrática deve ser uma meta a ser alcançada, pois, se formos analisar comparativamente os vários países, teremos uma escala que vai do zero – os países onde o fundamentalismo religioso e/ou a pobreza estrema imperam – até as modernas democracias ocidentais com sólidas experiências como EUA, Canadá e os países da Europa, com notas máximas. Nós, aqui embaixo na América Latina, entramos tardiamente nessa escola e, como alunos relapsos, tiramos notas baixas, movidos por correntes ideológicas populistas – as vezes de direita, outras de esquerda, como é agora o gravíssimo caso da Venezuela, ou como foi na Argentina com o peronismo.
Adaptar algumas valiosas categorias do marxismo para a praxis política em um ambiente democrático exige a humildade intelectual para entender que é o marxismo que deve fazer o esforço de adaptar-se e não a democracia que deve recuar e acolher o velho e sábio barbudo e seus seguidores.
Vi recentemente, quando publicamos uma Opinião em favor da anistia política na Venezuela, como passo fundamental para reorganizar a democracia corroída pela a ditadura do bolivarianismo, muitos militantes questionando se “essa democracia” era uma democracia para todos. Tentando, pasmem, justificar as prisões de intelectuais e políticos de oposição, ou seja, prisioneiros de ideias.
Ora, este é o primeiro choque narcísico com o qual alguns marxistas devem saber lidar. Aqueles que acreditaram – e muitos deram a vida por essa crença – serem senhores da história, movidos pelo equivocado conceito do determinismo histórico da superação do capitalismo pelo socialismo, têm que entender que perderam. Precisam, com urgência, destruir os muros de Berlim em suas mentes e visões de mundo. Eita! Que a queda real deste muro foi em 1989. Lá se vão mais de vinte anos! Como tem gente que anda devagar nesse mundo.
A arena é a arena do liberalismo, pai da democracia moderna, e é nela que o jogo deve ser jogado com adversários fortes como a globalização da economia e a inovação, permanentemente modificando nossas vidas com o controle absoluto do modo de produção, e uma ideologia fundada na produção e no consumo.
As regras são claras em uma democracia. Querer relativiza-las, movidos por uma falsa ilusão de que marxismo ainda tem poder de transformação da realidade econômica, social e política é, no mínimo, uma insanidade. Dizem que ainda é possível encontrar militantes que não ultrapassaram as barreiras temporais de 1917. E que estes não se encontram em manicômios!
Quem tiver paciência e curiosidade de voltar a ler, lá em cima, o conceito de Praxis, vai perceber que este poderia estar no manual de formação empreendedora de um Steve Jobs ou outro fodão desses. Pois é isso que eles fazem com suas empresas: sempre se reinventam, jamais se deixam cristalizar em uma ideia ou prática estratégica. E conseguem com as suas inovações fazer com que a história dê saltos que nem o mais maluco dos profetas e visionários poderia imaginar — não necessariamente comprometidos, ou alinhados com o humanismo socialista.
Vamos à luta companheiros! Nada tendes a perder, senão os grilhões mentais que vos aprisionam em um passado que não existe mais!
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João,
parabéns pelo artigo.
Parabéns pelo seu artigo, muito válida a ênfase dada ao conceito de práxis, e já era tempo pois passa da hora dos governantes de todas as espécies, credo e tendências pararem com seus discursos falaciosos sobre democracia e praticarem mais a dita cuja, abandonado a pura e simples vontade de poder e domínio.
João,
a partir do fato de que teoria não é dogma e prática não é alienação, penso que democracia é valor e marxismo é conceito instrumental.
Se assim for, como você diz, o marxismo deve curvar-se à democracia. E não a democracia ao marxismo.
A história parece validar seu argumento. O marxismo, como o liberalismo, a social democracia, são como rios. Passam, correm, e as margens, fincadas na democracia, recebem suas águas contribuintes, alimentando-se delas, fortalecendo-se com elas.
Meu caro João Rego. Por não estar tão habilitado a comentar seu artigo/aula, valho-me de trecho do seu próprio escrito. ….Mas é universal mesmo? Ou é uma utopia que o homem impoë diante da dura ralidade histórica? Complento com o último paragráfo por você escrito. Trovabraço.
Excelente artigo. Especialmente oportuno o resgate da práxis, conforme a conceituação de Marx. Perfeita, a constatação de que o poderoso instrumento de análise há de utilizar-se no contexto democrático.
Teria uma diferença a comentar com o autor, se bem o compreendi, quando opõe (no sexto parágrafo do texto) socialismo a democracia. A este velho escriba parece que a oposição dá-se entre socialismo e capitalismo. E que democracia há de ser (não foi, na experiência da URSS) componente essencial do socialismo. Mas são dúvidas conceituais, que não pretenderia discutir agora.
O que ouso propor ao debate é uma tentativa de caracterizar o populismo, flagelo que vitima particularmente ‘nuestra América’.
João Rego refere-se a “correntes ideológicas populistas — as vezes de direita, outras de esquerda, como é agora o gravíssimo caso da Venezuela, ou como foi na Argentina com o peronismo”. A mim parece que populismo é sempre direita, mesmo se eventualmente origine-se de agrupamentos nascidos à esquerda ou mimetize-se para figurar nessa faixa do espectro político.
Tal é o caso do que chamaria ‘neopopulismo’ latino-americano, herdeiro dos velhos modelos varguista, peronista e outros que superou (emprego o verbo ‘superar’ no sentido de ultrapassar sem negar, antes aproveitar a essência do status anterior). E o melhor exemplo desse neopopulismo está aqui mesmo.
Num rápido, necessariamente simplificado resumo da história, diria que o Pt nasceu de lutas sindicais que coincidiram com o combate à ditadura e no processo atraiu (às vezes à revelia) o que restou dos partidos, grupos e líderes da esquerda dizimada pelo autoritarismo: comunistas e seus dissidentes, demais marxistas, outros socialistas de variada estirpe como os da esquerda cristã, os respectivos aliados e simpatizantes desse conjunto entre jornalistas, artistas, acadêmicos e outros intelectuais então chamados ‘progressistas’.
Muitos dos líderes desses partidos, dissidências e grupos de variado grau de organização (José Dirceu é paradigma) encantaram-se com a novidade do partido nascido ‘de baixo para cima’, como nos velhos cânones; aderiram incondicionalmente e influíram na estruturação e conformação político-ideológica do grupo formador do Pt, carente de quadros intelectuais.
Eles foram decisivos naquele estágio do processo, durante um tempo pareceram haver cooptado os chefes sindicais (Lula, principalmente) e comandaram, no deslanche da nova agremiação, sua caracterização político-ideológica, a estratégia e até movimentos táticos.
Tal hegemonia depois se revelaria episódica mas foi utilíssima ao crescimento do Pt, logo erigido principal partido de oposição à ditadura e ao novo poder resultante da redemocratização de 1985. Durou até a vitória nas eleições de 2002, quando a união (quase unidade) entre a velha guarda sindical e a intelectualidade esquerdista foi unilateralmente rompida por Lula e sua turma — já então encorpada por alguns velhos, desiludidos revolucionários, convertidos ao pragmatismo talvez por cansaço na ingente luta pelo ideal socialista (Dirceu, outra vez, é o melhor exemplo). A ‘Carta ao povo brasileiro’, consta que escrita pelo então marqueteiro de Lula, é emblemática dessa metamorfose.
Foram então desvirtuados, quando não abandonados os projetos da esquerda, mesclados ou substituídos por um ‘realismo político’ que mediante alianças (que se pretendiam eventuais) com o poder econômico tornou o Pt palatável à opinião pública, ajudou na conquista dos votos necessários à vitória no segundo turno de 2002 e garantiu a chamada ‘governabilidade’, com preciosa ajuda de esquemas, digamos, ‘alternativos’ como o aluguel de apoios no Congresso via corrupção sistematicamente organizada (o depois chamado ‘mensalão’, em seguida que substituído e potencializado no ‘petrolão’).
Nessa caminhada tanto o sindicalismo original quanto o partido resultante de sua aliança com a esquerda ‘tradicional’ perderam substância, alijaram ideias, lideranças e assumiram no poder caráter muito semelhante ao dos partidos que combatiam. Buscar e manter o poder pelo poder, relegados os projetos de mudança, foi a estratégia não confessada que então adotaram.
Dessa maneira construiu-se, pragmaticamente, balizado pelo marketing em vez das ideias políticas, o mais bem sucedido esquema neopopulista da América Latina.
O neopopulismo latino-americano, tenha origem na direita como o chavismo e o neoperonismo dos Kirchner, na esquerda como o lulismo ou no limbo ideológico de correas e morales, cedo ou tarde mostra a face e revela o caráter: depende umbilicalmente de um chefe carismático, autoritário, que tudo vê e tudo sabe, impõe-se se preciso pela força e descarta aliados que discordam; assume retórica popular, igualitária, mais ou menos coincidente com a pregação da esquerda, da qual adota alguns projetos — especialmente os de assistência social, que no entanto utiliza para cooptar, anestesiar as massas desvalidas e torná-las exército de reserva eleitoral.
Tais procedimentos desdenham — quando não excluem, por inconvenientes — programas capazes ensejar efetiva progressão dos mais pobres, como os de educação, saúde, mobilidade urbana, segurança et al., que proporcionariam condições para que os desvalidos assumissem, como sujeito e não objeto do processo, os destinos da própria redenção.
Enquanto isso o neopopulismo celebra aliança – que com o tempo torna-se nitidamente estratégica, não apenas tática — com as classes dominantes que finge combater. E novamente o poder petista exemplifica muito bem o resultado: os benefícios concedidos nos últimos treze anos ao capital superam por larguíssima margem os gastos com programas sociais.
Finalmente ensaio, numa frase, a síntese que ofereço à discussão:
o neopopulismo latino-americano apodera-se da retórica da esquerda para atuar efetiva e consequentemente como força da direita.
Ou, em imagem futebolística tão cara a nossa cultura, o neopopulismo finge avançar pela esquerda, desloca-se ao centro e ‘nos finalmente’ descamba decidida e definitivamente à direita, posição da qual atira e faz gols.
Caro Macro Antônio:
Antes quero dizer que seu comentário, tão bem estruturado, já é um prêmio para mim, pois é esse o nosso propósito: estimular o debate acreditando, que somente através da controvérsia pode-se aproximar da compreensão de certos conceitos e fatos.
No caso da sua intervenção, quero apenas me debruçar sobre um conceito, que ao me ver, sofre, desde priscar eras, de uma enviesada concepção e, de tão repetida acaba se cristalizando como um dogma, tosco e perigoso.
Me refiro aqui aos conceitos de esquerda e direita. Se observar, no decorrer do seu texto, você resvalou – e isto não é privilégio apenas seu – para uma perigosa dicotomia: bom, esquerda – ruim, direita.
É certo que a origem destes termos se encontra na revolução francesa, onde a esquerda era caraterizada por mudanças libertárias de correntes seculares de opressão. Acontece que com o andar da carruagem a história nos vem enganando e os fatos insistindo em desconstruírem nossas teorias.
Assim, sem querer me alongar muito em tão minado terreno, para facilitar a compreensão (minha, inclusive) organizei o seguinte esquema:
a.) Ao invés de esquerda, chamo de progressista e, onde era direita de conservador.
b.) Entendo que progressista está sempre quebrando as correntes ideológicas que nos prendem a um passado opressor – quer mais opressão sobre a humanidade do que a ignorância e a cegueira ideológica (política ou religiosa)?
c.) Estas mudanças estão sempre comprometidas com a construção de um futuro idealizado como uma sociedade justa no qual o Estado e a economia atuem para melhorar a qualidade de vida de todos, diminuindo as diferenças sociais e culturais entre os homens;
d.) Um traço fundamental que perpassa todos este pensamento é que ao progressismo deve também ser agregado uma profunda e radical visão libertária sobre o homem, rompendo os preconceitos raciais, religioso, sexuais e de gênero;
Poderia desdobrar ainda mais, mas paro por aqui, pois já deu para perceber, se acreditamos nestes pressupostos, o embaralhamento destas correntes ideológica nos dias de hoje. Cada país, construindo e descontruíndo estes paradigmas, dialeticamente, forjando sociedades com diferentes gradações – com diferentes resultados.
O danado é que a realidade social, neste mundo onde a tecnologias rompem barreiras numa voracidade impressionante, se tornou complexa demais para que apenas uma corrente político-ideológica possa dar conta.
Um forte abraço.
Caro João
Parabéns pela abordagem.
abraço
Glaucio