Fernando Dourado 

Cena de "A Ponte dos Espiões" (2015) S. Spielberg.

Cena de “A Ponte dos Espiões” (2015) S. Spielberg.

 

a) O homem-península; b) Símbolos e contexto; c) Guerra Fria  

 

Até entendo, embora deplore, que pessoas de grande responsabilidade sobre o destino profissional alheio façam pouco caso dos contornos civilizacionais dos povos estrangeiros. Que não estudem os tais outros. Deles ignoram, até mesmo, rudimentos da história e da geografia. Ademais dos traços psicológicos; hábitos; símbolos e padrões de previsibilidade. Para não falarmos das normas e valores que lhes regem o cotidiano. Mas ora, pense comigo: se metade dos norte-americanos jamais botou os pés fora do País e se a imensa maioria dos tablóides ianques mal dedica meia página ao noticiário internacional, não deveria causar espanto que os meios empresariais releguem a compreensão da diversidade cultural a mera curiosidade de rodapé; a um penduricalho que terá pouca serventia à mesa de negociação. Pois bem, eis aqui um grave erro de avaliação. Tendo rodado mundo e trabalhado com pessoas de dezenas de nacionalidades, cedo percebi que as de melhor desempenho são precisamente aquelas que reconheceram as pegadas interculturais das equipes que lhes competiu liderar. Ou que souberam captar os humores dos mercados onde queriam vender cerveja, detergente ou até mesmo construir uma barragem. Isso, bem entendido, para não falarmos da vantagem que têm os mais ilustrados de criar conexão emocional com fatos relevantes e fortuitos do mundo. Desde um terremoto no Chile até uma cena de amor numa rua lisboeta. Assim sendo, sou dos que insistirão sempre que a navegação pelo universo multicultural deveria ser um estado de espírito permanente para todos que desempenham um papel ativo no mundo contemporâneo. Como uma península, mantenhamos um cabo de amarração no cais dos continentes. Ele evitará que nos tornemos tediosas ilhas auto-referentes.

 

À medida que o mérito dessa compreensão perpassa o mundo mercantil, diplomático e geopolítico, é inexorável que também sirva de anzol na hora de desfrutarmos da arte em suas diversas manifestações. O que é a vida sem elas? Estas, aliás, constituem um instrumento poderoso para que possamos trilhar o caminho da empatia de forma prazerosa, quase lúdica. Pergunto: o que será do homem de negócios que vai ao Japão e nada entende da simbologia do sumô – aquela luta que envolve dois contendores corpulentos que tentam arremessar o oponente fora dos limites do ringue? Vou além: como pode um chefe de estado criar proximidade emocional com um embaixador balcânico se, para ele, o interlocutor nada mais representa do que um afável cavalheiro de sessenta anos? Ignorando, no caso, que se trata, essencialmente, de um líder que esteve enfronhado até o pescoço em conflitos fratricidas que lhe custaram a juventude, a família, uma perna e até o otimismo que o embalava quando ainda tinha dezoito anos, vivia numa ilhota do Adriático, via o pai fazer queijos vigorosos e a mãe engarrafar extrato de lavanda? Logo, conhecer o contexto cultural e os traços determinantes da subjetividade alheia é uma maneira de se soldarem relações profundas e, eventualmente, de confiança. Infelizmente, ainda é minoritária a bancada dos que atribuem a essa vertente um valor similar ao que poderia ter o domínio da matemática financeira. Pois bem, onde quero chegar, perguntará o leitor mais impaciente. Respondo como Umberto Eco: se não der para me acompanhar montanha acima nesta introdução, desista desde já e poupe seu tempo. Ou sigamos juntos – opção que prefiro – até reunirmos elementos conclusivos para entender o equívoco de Hoffman.

 

Seguindo adiante, portanto, admitamos que muitos de nós, somos caudatários da geração que viveu os dias mais críticos da Guerra Fria. Se o noticiário podia ser pouco inteligível para uma criança, bastava ler na face dos adultos que nos cercavam as reações – e os sussurros – a indicar que uma ameaça perigosa varria o ar. O mundo parecia estar cindido entre duas potências fortemente armadas que se provocavam mutuamente. Fosse ao lançar cosmonautas rumo ao espaço. Fosse nos tabuleiros de xadrez, em longos torneios na longínqua Islândia, ou até mesmo na hora de posicionar mísseis nucleares no quintal um do outro. Do lado de lá – que era coalhado de simpatizantes pelo lado de cá -, um camponês ucraniano batia com a sola do sapato em fóruns internacionais como forma de mostrar destemor e irreverência. Do lado de cá – que também contava com fiéis incondicionais ao lado de lá -, se denunciavam os tentáculos sinistros de Moscou e se condenavam as intervenções brutais dos soviéticos sobre Budapeste e Praga. Não que tais expedientes fossem estranhos a Washington. Pelo contrário. Suas digitais se espalhavam por boa parte do continente americano onde, de forma escancarada, eles davam apoio a uma gente sinistra que reprimia forças de afã revolucionário – onde quer que elas estivessem. Mesmo em países bojudos como o Brasil. E não só nas republiquetas onde a United Fruit mandava mais do que os próprios oligarcas – aqueles barrigudos que fumavam charuto e se acercavam de sicários. Na África, então, as superpotências se digladiavam a céu aberto em diversos palcos. Angola era de todos os países o mais representativo. No rescaldo desse ar que se cortava a faca, as culturas se entrecruzavam. E tentavam transformar o medo em soberba. Logo os muros cairiam.

*

a) Pu Yi; b) “Crepúsculo na Cidade Proibida”; c) China: quando as pedras falam   

 

Pois bem, dia desses saímos de casa sem planos maiores do que almoçar, coletar os jornais na banca e passar a tarde do fim de semana entregues à brisa tépida do mar, empoleirados num lugar tão alto que, em dias bons – como são quase todos – deveria dar para enxergar uma nesga do continente africano. Já à saída da casa de nossos anfitriões, porém, alguém sugeriu que víssemos um filme. Embora velho conhecido, quem se fartará um dia de assistir ao O último imperador? O que de melhor para dar contexto cultural à China milenar? Se em pouco mais de meio século de vida, o desventurado Pu Yi foi gatilho e espoleta de uma história trepidante que transcorreu em ambos os lados das muralhas da Cidade Proibida, o que não dizer dos mais de cinco mil anos da crônica documentada dos chineses? Como a projeção do filme é bastante longa, tivemos pausas benfazejas para pequenas providências e algumas observações. Comentei com os amigos que se Pequim hoje é um caldeirão onde os vapores tóxicos do escapamento poluem a ponto de todos passearem pelas ruas de máscara, bem diferente era ela no começo da década de 90, apenas alguns anos depois da deflagração da diplomacia do pingue-pongue. Passear pelos aprazíveis hutong era um programa de lei. As bicicletas se contavam às dezenas de milhares; ocidentais eram objeto de discreta curiosidade, mas a Praça da Paz Celestial – espécie de palco nevrálgico da vida chinesa – já estava sob o escrutínio de guardas à paisana, prontos para prender quem hasteasse cartazes clamando por liberdades civis; cobrando o paradeiro de prisioneiros; pedindo independência para o Tibete ou propagandeando a seita de meditação Falu Gong.

 

Nada, portanto, nesse contexto de simbologia eloquente se equipara a uma visita à Cidade Proibida, ali mesmo na extremidade da praça famosa. O acesso a ela se dá por um pórtico relativamente estreito que fica exatamente sob o imenso retrato de Mao Tsé-Tung. No verão, o trajeto pode ser sufocante porque é longo e o ar, muito úmido. Mas no inverno, apesar do frio e da neve frequentes, se pode usufruir a pleno daquelas esplanadas silenciosas onde se divisam os pátios enormes. Ali aconteciam as paradas e as demonstrações de apreço ao pequeno Pu Yi. Tudo é impressionante: os alojamentos dos eunucos; as centenas de quartos para acomodar as concubinas e a sala da coroação. Se o já adolescente imperial sonhava em conhecer o mundo das ruas e dos ruídos, pois bem, este dia chegaria. E quando veio, Pu Yi foi tomado de enorme medo ao deixar os muros espessos do colossal conjunto arquitetônico, como documenta o escocês Reginald Fleming Johnston, em “Twilight in the Forbidden City” – não por acaso seu tutor. Desmoralizado, recambiado para a Manchúria e pouco apto para o comando – mesmo porque mal preparado para viver os dez mil anos que se lhe agouravam – viu a família ser humilhada pelos ocupantes japoneses. Mais adiante, os algozes passaram a ser os próprios chineses. Temerosos de que a pálida figura imperial projetasse sombra na hegemonia do Partido Comunista, o confinaram num campo de reeducação onde foi submetido ao processo de autocrítica caro aos estados policiais. Reeducado – porém inseguro e subserviente – foi levar a vida comum dos compatriotas. Dedicado à jardinagem, montado numa bicicleta pelas ruas da cidade, morreu na eclosão da Revolução Cultural. A permanecer vivo, coitado, passaria por renovada rebordosa.

 

Por paradoxal que pareça, o filme ajuda os resistentes a guardar no coração um ativo intangível: o amor pela China. Foram muitos os ocidentais que conheci que se renderam ao fascínio desse universo de alto contexto, onde gestos substituem palavras. Causará desconforto aos puristas – ou ingênuos – saber que falar de política por lá é patinar sobre gelo fino e que a maioria dos chineses passará ao largo do tema. Ironicamente, isso já não é privilégio deles. Logo ficará evidente até para o mais delirante dos paladinos, contudo, que quem entende de China são eles. Afinal, China – em chinês – é o “Império do Meio”. Nós, os deploráveis “bárbaros do nariz grande”, integramos apenas uma imensa periferia. Ademais de sermos moralmente inferiores. Assim, quando o primeiro embaixador enviado pelo rei da Inglaterra aportou e disse que queria se avistar com o Imperador, foi recebido com sonoras gargalhadas. Quanta petulância. Pois bem, ainda hoje os chineses trazem em si a chama de uma altivez incomum em quaisquer outros povos – japoneses incluídos. Etnocêntricos empedernidos, gostam de dar demonstrações de força e prestígio. Presenteiam generosamente. Oferecem banquetes à base de língua de colibri e sopa de barbatana de tubarão. Predadores assumidos, se regozijam de ver a China ocupar a ribalta financeira e militar, ademais de ser a fábrica do mundo. Se Napoleão vaticinou que a Terra tremeria ao seu despertar, os feitos recentes não dão lugar à dúvida de que, embora multifacetada, há algo de poderoso na marcha concertada desse povo que, se exposto à democracia ocidental, sucumbiria ao caos e ao desgoverno. Que o diga a Cidade Proibida e a vastidão da Praça da Paz Celestial às primeiras horas da manhã. Ali as pedras viram tudo e, com atenção, podemos escutá-las.

*

a)  Coronel Rudolf Ivanóvich Abel; b) Trade-off; c) O credo do Quixote celta e uma expressão nova  

 

Já de pé, a caminho da porta, ainda me refazendo das recordações dos gordos patos pequineses – sinal de que ficara com fome -, eis que alguém comentou que tínhamos outro filme à disposição. Este eu ainda não assistira, mas tinha tudo para encantar. Por que não deixar os jornais para depois e ver A ponte dos espiões, de Spielberg, protagonizado por Tom Hanks? Em temporada de Oscar, ficou difícil resistir ao convite – mesmo sem pipoca. Isso porque o roteiro é a quintessência da Guerra Fria acima aludida. E a compreensão das componentes interculturais ali presentes, tornam dramáticas, quando não hilárias, as interações entre norte-americanos – e seu portentoso aparato legal e militar – com os russos. Estes são bons enxadristas; algo ruminantes e, portanto, bastante cerebrais. No fogo cruzado, assoma uma Alemanha cindida – aquela mesma de que Thatcher dizia gostar tanto a ponto de querer que tivéssemos sempre duas. Não, não frustro nenhuma expectativa ao dizer que um pacato pintor, com patente não admitida de coronel e camuflado sotaque britânico, é aprisionado em Nova York depois de uma Blitz em seu apartamento. Com a frieza digna dos mestres do ofício – Philby, Maclean, Burgess e Blunt -, ele ainda consegue apagar uma prova incriminadora, apesar de cercado por agentes armados. Querendo dar uma fachada de legalidade a um processo de espionagem, o establishment americano deseja, na verdade, torrar o velho Abel na cadeira elétrica. Hanks, no papel do advogado Donovan, aceita fazer a defesa daquele homem discreto, quase gélido, embora espirituoso. Sentindo que ele não escapará da pena capital, vai à Suprema Corte, conversa com o juiz e consegue salvar o pescoço do cliente, para grande decepção dos que queriam vê-lo trilhar o calvário de Ethel e Julius Rosenberg.

 

O argumento de Donovan é lapidar. Se mantivessem o velho Abel vivo, apesar do mutismo do encarcerado, um dia eles poderiam se valer de seu passe para recuperar algum peso pesado americano, flagrado pelos russos com a boca na botija. Em bem-sucedido exercício de premonição, eis que isso logo acontece. E, não contente em efetuar a troca avençada, o advogado resolve estender a barganha a um jovem estudante americano que, bobamente, caíra nas mãos da polícia da República Democrática Alemã. Por que fazer isso? Por que não se contentar em trocar Abel pelo piloto que detinha segredos militares importantes? Por que não deixar o jovem mofar na cadeia à espera de uma troca mais compatível com sua insignificância? E se tanta insistência botasse a perder a operação principal? De onde Donovan tirara essa noção de tudo ou nada? Numa Berlim sob neve pesada em que os néons da Kufürstendamm contrastam fortemente com os prédios destruídos e sombrios do lado oriental, Donovan leva o idealismo a extremos. No seu encalço e querendo que ele fosse mero fantoche das maquinações preto no branco da CIA, assoma a todo momento a figura do agente Hoffman e seu script utilitário e tacanho. Não contente com as sucessivas negativas que ouvira do advogado às suas invectivas, eis que chega o momento inevitável. Na linha de frente da Glienicker Brücke – a ponte dos espiões por onde se fizeram discretas trocas ao longo daquele período – as idiossincrasias de ambos colidem com maior fulgor. E, assim, graças a um roteiro bem concebido, ao gênio do diretor e a dois atores excepcionais, os Estados Unidos ganharam um novo herói. Ainda é tempo de vê-lo antes do Oscar.

 

Em linha com a temática de abertura desse pequeno ensaio, vale dizer que a composição populacional dos EUA – país tão etnocêntrico quanto a China –  abrigou levas sucessivas de quakers, puritanos, hispânicos, asiáticos e de europeus de diversas procedências. Didático, portanto, é o momento em que Hoffman encurrala Donovan e lhe pede para violar segredos profissionais em nome da segurança nacional. É então que se trava o diálogo que sintetiza o filme e deita luz sobre o acervo de valores que rege o contrato de uma sociedade diversa. Quando o agente da CIA lhe diz para não bancar o escoteiro, o advogado alude às origens de ambos: My name’s Donovan, Irish, both sides, mother and father. I’m Irish, you’re German, but what makes us both Americans? Just one thing (…): the rule book. We call it the Constitution and we agree to the rules and that’s what makes us Americans (…), so don’t tell me there’s no rule book and don’t nod at me like that, you son of a bitch. Onde entra a cultura? Ora, Donovan diz que, sendo ele descendente de irlandeses e Hoffman de alemães, é o respeito à Constituição que faz de ambos americanos. Ponto relevante: hoje sabemos que a costa ocidental da Grã-Bretanha – Irlanda e parte da Escócia – foi povoada por levas de errantes que traziam nas veias o mesmo código genético dos Bálcãs e da Península Ibérica. A cultura germânica, por outro lado, se assentou no continente pelo Norte, pisando no permafrost. Há quem fale, portanto, de patrimônios mitocondriais distintos. O que pode ser uma explicação para os comportamentos, embora não a única. Daí o desabafo do celta quixotesco sobre o teutônico. O paradoxo é que o idealista seja o legalista. E que seja o estreito agente da CIA quem propugne violar a lei. Dessa vez, porém, Hoffman bateu na porta errada.

 

******